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Ações do governo e alguns acasos impulsionam a economia, mas há desafios de peso

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Cenário. A inauguração da fábrica da montadora chinesa BYD na Bahia talvez assinale uma mudança de tendência de investimentos. A produção da Petrobras, o pagamento de dividendos e a distribuição de royalties do petróleo pesam nas contas do governo federal – Imagem: Manu Dias/GOVBA e Arquivo/Agência Petrobras
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Pela primeira vez desde 2020, a inflação deve encerrar o ano dentro da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional – 4,75%, segundo a projeção do mercado para o IPCA. O feito, somado à previsão do FMI de que o Brasil deverá se tornar a nona economia do mundo até dezembro, são trunfos de um governo próximo de completar o primeiro ano. Para dar continuidade à sua estratégia econômica, o ministro da ­Fazenda, Fernando Haddad, depende, porém, do destravamento de projetos decisivos no Congresso, da evolução do cenário internacional conturbado e do desfecho da ­disputa entre as políticas monetária e fiscal, marcada pela persistência de taxas de juro inviáveis para investimentos de longo prazo e pela descapitalização da indústria, sobretudo a de máquinas e equipamentos.

O governo acumula avanços e enfrenta obstáculos em profusão. A aprovação de novo regime fiscal, a reforma tributária em andamento, a renovação e a expansão de programas sociais reconhecidos internacionalmente, como o Bolsa Família, a contenção da devastação da Amazônia e o lançamento de ambicioso plano de transformação ecológica, destacados por Haddad no recente encontro de representantes dos países do G-20, contam ponto nas avaliações positivas quanto às perspectivas da economia brasileira. Na direção contrária há as dificuldades no Congresso para aprovação de novas fontes de receita tributária com vista ao cumprimento das metas fiscais, consideradas ambiciosas. É o caso das propostas de taxação dos fundos exclusivos, dos fundos offshore e do fim da isenção sobre os Juros do Capital Próprio. Sobressaem ainda as manobras dos grupos privilegiados para manter seus benefícios na reforma tributária, o que poderá resultar em IVA acima de 25%, o que inviabilizaria a reindustrialização, segundo alerta o economista-chefe da Fiesp, Igor Rocha.

A sistemática revisão das expectativas de crescimento do PIB, para cima, e das projeções de inflação, para baixo, por parte dos profissionais do sistema financeiro ouvidos semanalmente pelo Banco Central, deixa claro que muitos não deram o devido peso a fatores externos e a causas internas determinantes no desempenho positivo da economia. Não entrou no radar desses agentes o efeito, no PIB, tanto do aumento da renda das famílias quanto do gasto público, menos ainda o resultado da redução do pagamento de dividendos e do aumento dos investimentos e da produção por parte da Petrobras. Na segunda-feira 16, a empresa informou ter atingido novo recorde trimestral de produção de óleo e gás, no terceiro trimestre.

Mesmo com endividamento elevado, houve uma expansão do consumo

A alta dos derivados para corrigir a redução eleitoreira dos preços no ano passado empurrou a inflação para cima, mas o movimento foi contrabalançado por queda significativa dos preços dos alimentos. “A gasolina e, indiretamente, o diesel, entre outros preços monitorados, puxam para cima o IPCA este ano. Os preços dos alimentos fazem um movimento no sentido oposto”, destacou a economista Julia Braga, professora da Universidade Federal Fluminense, em apresentação sobre a conjuntura econômica do primeiro ano do governo Lula organizada pelo Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp. A carne é um dos produtos com maior deflação acumulada no ano. “Os preços dos alimentos têm uma tendência de décadas de crescimento, portanto, não se deve minimizar o bem-estar gerado por um processo de deflação nos orçamentos familiares, especialmente para a baixa renda, que se beneficiou de uma queda maior de preços”, ressalta a economista.

Segundo a Carta de Conjuntura do Ipea do terceiro trimestre, a inflação de alimentos foi de 3,79% para as famílias de renda alta e de apenas 2,32% para as de renda baixa, com um viés redistributivo. A análise do Ipea chama atenção para o fato de que a expansão do consumo no ano ocorreu apesar do endividamento das pessoas. Em junho, o serviço da dívida comprometia 28% da renda das famílias, e a taxa de juros era de 102,7% para as compras feitas com cartão de crédito, a linha mais utilizada. O Desenrola Brasil, programa de renegociação de dívidas criado pelo governo, ajuda a aliviar esse peso. Lançado em julho, renegociou um total de 13 a 15 bilhões de reais em dívidas, grande parte de famílias com renda de até dois salários mínimos.

Pela primeira vez em vários meses, houve redução do comprometimento da renda das famílias, de 28,3%, em junho, para 27,6% em julho. Além disso, ocorreu discreto aumento das concessões de crédito para a aquisição de bens, em julho e ainda mais forte em agosto.

Além do consumo das famílias, o consumo do governo, com alta de 2% no primeiro semestre em relação a igual período­ do ano anterior, contribuiu para a elevação do PIB além das previsões. O número é calculado com base nos indicadores do serviço público, especialmente de saúde e educação. Para o ano, o Ipea prevê expansão de 2,9% no consumo das famílias e de 1,8% no consumo do governo.

Impactos. A bonança do agronegócio também se deve a desastres climáticos em países concorrentes. A carne foi o alimento que mais barateou neste ano – Imagem: Renato Luiz Ferreira e Fábio Scremin/Portos do Paraná/GOVPR

Apesar do avanço significativo do PIB, surgiu um déficit primário que, segundo a expectativa do mercado, deverá atingir, no fim do ano, perto de 100 bilhões de reais. A contradição, observa Braga, está muito associada à dinâmica das receitas. A arrecadação tributária não administrada pela Receita Federal é o que cai mais, com destaque para a receita da exploração de recursos naturais, inclusive royalties e participação especial. Essa arrecadação, na própria fórmula de cálculo, é influenciada pelo preço internacional do petróleo. Como houve queda desse preço, que no ano passado havia subido muito por conta do conflito da Ucrânia, essas receitas, já descontada a inflação do IPCA, caíram. É de se esperar, contudo, uma elevação dos preços da ­commodity em consequência da guerra no Oriente Médio. Na quarta-feira 18, o preço do barril ultrapassou 100 dólares.

O resultado das contas públicas foi afetado também por uma queda da receita de dividendos da Petrobras, em consequência da distribuição, no ano passado, de dividendos muito acima do que seria justificável a partir do aumento do preço do petróleo. Cabe acrescentar que, se não tivessem ocorrido privatizações de refinarias a partir de 2016, boa parte do petróleo hoje exportado poderia ser refinado para consumo interno, reduzindo a necessidade de importação de derivados.

Os economistas do Ipea constataram também uma queda da receita de impostos sobre o lucro, tanto do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica como da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido. A causa está no setor petrolífero, que no ano passado teve um lucro extraordinário por conta do aumento do preço do petróleo, que alcançou 140 dólares o barril. A conclusão é que a arrecadação tributária administrada pela Receita Federal, mesmo já deflacionada pelo IPCA, também segue a dinâmica dos preços internacionais das commodities. São preços que fogem ao controle dos formuladores de políticas públicas e dificultam previsões sobre a arrecadação tributária.

O preço do barril de petróleo passou dos 100 dólares com a guerra no Oriente Médio

Um destaque no ano é o forte crescimento das dotações orçamentárias das despesas primárias, viabilizado pela Emenda Constitucional 126 que, entre outras medidas, aumentou o teto de gastos da União em 145 bilhões de ­reais em 2023 e definiu novas categorias de despesas não sujeitas ao teto. A mudança permitiu o reajuste do Bolsa Família e a expansão das despesas discricionárias. Essas medidas resultaram em um impulso fiscal que tende a acontecer também no segundo semestre e que foi um dos motivos que levaram o Ipea a ­reajustar as suas projeções de crescimento do PIB deste ano, de 2,3% para 3,3%, com avanços de 15,5% na agropecuária, 2,5% no setor de serviços e de apenas 1,5% na indústria de transformação. Um possível sinal de mudança nos investimentos industriais é a inauguração, na Bahia, da fábrica da montadora chinesa BYD, a ocupar o lugar da Ford, que decidiu deixar o País devido à falta de perspectivas no governo anterior.

Quanto à agropecuária, economistas consideram improvável repetir-se, em 2024, a conjugação de fatores favoráveis ocorrida neste ano, com problemas climáticos nos EUA e na Argentina, que são os principais produtores de soja além do Brasil, e clima favorável no País.

A crise crônica da indústria é um dos motivos da elevada incerteza das projeções de crescimento econômico do próximo ano. “Em relação à indústria de bens duráveis e de transformação, uma hipótese é de que ela tenha passado por um processo de histerese, com perda de capacidade produtiva. (A histerese econômica é a dificuldade de retorno ao estado original após uma crise.) O indicador de estoque de capital, calculado pelo Ipea, aumentava desde a década de 1980, portanto, havia uma dinâmica de crescimento, e a partir de 2016, simplesmente parou de se expandir, algo inédito nas últimas décadas”, destaca Braga. Em especial, o estoque de máquinas e equipamentos não só parou de crescer, como também sofreu queda, ou seja, depreciou a uma taxa superior àquela dos investimentos que provocaram o acúmulo de capital. “Está-se utilizando a capacidade produtiva sobre um estoque de capital menor e, quando isso acontece, perdem-se momentos como o atual, de transformação tecnológica, de adoção de tecnologias mais limpas. Perde-se também a capacidade de ingressar nessa nova onda tecnológica.” •

Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ganhos e perdas’

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