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Freio à cobiça

O sucesso da interrupção da venda de empresas públicas desidrata o discurso do mercado

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Patrimônio público. Na reinauguração da Comperj, afetada pela Lava Jato, Lula criticou a venda de ativos da Petrobras – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
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Agentes do setor financeiro e editorialistas de jornais se desdobraram, nas últimas semanas, em nova escalada em defesa da privatização, mas desta vez tiveram que recorrer a um discurso desidratado dados os evidentes benefícios para a população com o fim do processo de venda indiscriminada de estatais no governo anterior. A interrupção dos prejuízos causados ao País pelas empresas desestatizadas esvaziou o discurso privatista e desnudou seu caráter ideológico, movido a interesses inconfessáveis.

O ganho evidente proporcionado pela estabilização dos preços dos combustíveis refinados pela própria Petrobras na maior parte do País, com o fim da dolarização do preço do petróleo praticada desde a gestão de Pedro Parente na presidência da Petrobras até o governo anterior, contrasta com os valores recordes praticados pelas refinarias privatizadas. Em abril, a Refinaria da Amazônia, vendida ao grupo Atem, comercializava gasolina com preço 15% acima do praticado pela Petrobras. Em julho, a refinaria Clara Camarão, do Rio Grande do Norte, comprada pela R3 Petroleum, vendia a gasolina mais cara dos País, 27% acima dos preços das estatais.

A sanha privatizante não se contenta, entretanto, com a campanha pela venda da Petrobras. Em editorial publicado no fim de agosto, a Folha de S.Paulo propôs a privatização da petroleira, da Caixa e do Banco do Brasil, com críticas a supostos projetos de retorno duvidoso, distribuição de favores e falta de lisura. Os enormes interesses camuflados no discurso privatista, abordados abaixo, não comparecem, no entanto, no editorial.

Duas semanas mais tarde, durante a inauguração do Complexo de Energias Boaventura, o maior centro de processamento de gás da Petrobras, Lula defendeu o papel de empresa pública da Petrobras, que “não serve apenas para lucrar”. Trata-se do antigo Comperj, que teve a construção paralisada indevidamente em 2015, em decisão da operação Lava Jato que extrapolou a prática internacional de sanções em casos de corrupção empresarial. Além de punir indivíduos, mesmo quando não tinham ligação com a Petrobras, caso do presidente Lula, preso e depois inocentado pelo STF, a famigerada operação destruiu parte da cadeia produtiva do petróleo, cometeu inúmeras ilegalidades e prestou-se ao escandaloso aparelhamento político por parte do ex-juiz Sergio Moro e do ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol, entre outros. No mesmo evento, Lula questionou quais benefícios a venda da BR Distribuidora trouxe à sociedade.

A privatização escandalosa da Eletrobras, um golpe do setor privado na Lei das Sociedades Anônimas e no Estado brasileiro, aumentou o risco de colapso e desabastecimento no País, que só não é maior devido à entrada de fontes renováveis adicionais no circuito da distribuição. A União tem quase 43% das ações da Eletrobras, mas no processo de privatização, totalmente manipulado pelo governo anterior e considerado um “escárnio” pelo presidente Lula, ficou com direito de voto correspondente a apenas 10% das ações. Após longas tratativas, o governo e a Eletrobras devem chegar a um acordo sobre o poder usurpado da União na empresa.

Os ataques às estatais, na mídia e nas manifestações das instituições financeiras, ressalvam sempre a importância da Embrapa, empresa pública decisiva para o avanço notável do agronegócio, mas não mencionam as catástrofes provocadas pela Vale após a privatização. A busca da maximização absoluta dos lucros, interligada à redução dos investimentos no aumento da segurança das barreiras de contenção de rejeitos de minérios, conduziu a 289 mortes em Mariana, em 2015, e em Brumadinho, em 2019, ambas em Minas Gerais, e causou danos materiais e ambientais também irreparáveis.

No Brasil e no mundo, desde 1980, a privatização funcionou como ponta de lança para consolidar o poder do setor financeiro no coração dos Estados nacionais. Governos endividados foram forçados a vender o domínio público como uma condicionalidade em troca de crédito para evitar a inadimplência de dívidas bancárias ou dívidas externas, uma política prontamente assumida pelo Consenso de Washington.

Os incentivos para o abuso são muito maiores nos processos de desestatização, diz Stiglitz

Os principais ativos privatizados, lembra o economista Michael Hudson, professor da Universidade do Missouri, são monopólios naturais capazes de extrair renda econômica pelo aumento dos preços dos serviços públicos. Essas rendas tendem a ser pagas como taxas dedutíveis de impostos às afiliadas em centros bancários offshore, a fim de privar as economias anfitriãs de um retorno público sobre suas terras e patrimônio de recursos naturais ou seu imenso investimento de capital em infraestrutura, com frequência financiados por dívidas externas pelas quais os governos permanecem responsáveis. “Os defensores da privatização buscam convencer que isso será mais eficiente do que o investimento público para fornecer serviços básicos a preços baixos. Na verdade, os países que falham na redução do custo dos serviços básicos, evitando pedágios para extração de renda financeirizada, têm um custo de vida e de negócios mais alto, tornando-se menos competitivos nos mercados globais”, sublinha Hudson em seu livro J is for Junk Economics.

Em relação à acusação de que estatais propiciam corrupção, o Nobel de Economia Joseph Stiglitz fez considerações irrespondíveis na coletânea Privatization: Successes and Failures. Disse o economista que entre as razões do impulso à privatização figuram, além de ideologia simplória e preconceitos ideológicos, sem fundamento em teoria ou evidências empíricas, o que se denomina, no jargão econômico, de “interesses especiais”. “Mesmo um processo de privatização ineficiente pode gerar grande riqueza para poucos”, disparou o Nobel de Economia.

Os críticos das empresas estatais argumentam que elas estão sujeitas à corrupção, isto é, que os funcionários do governo responsáveis por gerenciá-las muitas vezes não agem no interesse daqueles que deveriam servir ou seja, o público, sublinha Stiglitz. Mas há um problema ainda mais sério, ressalta o economista, no próprio processo de privatização. O que está em jogo não é apenas o fluxo atual de lucros, mas o valor presente descontado dessas rendas no futuro, muito maior. Conclui-se que os incentivos para o abuso são ainda maiores. Além disso, há uma variedade de maneiras pelas quais o eventual abuso no funcionamento das estatais pode ser monitorado e controlado. Os remédios padrões se concentraram no uso de processos de leilão, mas em muitos países ficou claro que há amplo escopo para que os leilões sejam manipulados por meio da definição de regras, incluindo a “qualificação” dos participantes, destaca Stiglitz. •

Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Freio à cobiça’

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