Economia
Fora de compasso
O governo retomou a iniciativa, mas falta coordenação nas ações para reerguer a manufatura


A estagnação da indústria no primeiro ano de Lula contrasta com a grande quantidade de ações neoindustrializantes lançadas pelo governo federal. Os anúncios quase diários de iniciativas na área são excelente novidade, diante da desindustrialização intensificada no último governo. Em Brasília e na iniciativa privada, cresce, porém, a percepção de que as ações não estão sendo bem articuladas. O descompasso resulta em avanços localizados, para o conjunto da indústria e a economia em geral, e retarda a convergência rumo a uma política industrial capaz de evitar nova derrapagem na tentativa de recuperar a manufatura em termos contemporâneos.
O silêncio do governo sobre as necessidades de investimento em infraestrutura é um sintoma desse descompasso. Especialistas têm sérias dúvidas quanto à possibilidade de um somatório de iniciativas de porte relativamente reduzido encaminhar uma transformação com a envergadura necessária às exigências da atual concorrência industrial global.
Para o economista Luís Felipe Giesteira, diretor do Departamento Nacional de Desenvolvimento da Indústria de Alta Complexidade Tecnológica, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a política industrial deixou de ser um tema maldito e hoje é possível pensar e implementar posições proativas do Estado, liderando a mudança estrutural, mas existe uma fronteira nesse novo consenso que é muito séria para países como o Brasil.
A infraestrutura deficiente continua sendo um obstáculo para o avanço da indústria nacional
Hoje, para entrar na disputa com grandes players, é preciso de um volume de recursos inalcançável na atual estrutura de gastos governamentais, que restringe fortemente o investimento público, sublinhou Giesteira em debate organizado pelo Instituto de Economia da Unicamp. O crescimento exponencial dos aportes na área de Defesa, desde 1980, foi acompanhado por outros setores, como saúde e microeletrônica. “É muito difícil entrar no jogo para valer sem investimentos de grandes somas. Uma série de pequenas ações não nos conduzirá ao catching-up tecnológico”, dispara o economista.
O governo sabe que a adoção de uma política industrial consistente e moderna é essencial, devido ao poder de ampliar a oferta de empregos de qualidade, ao impulso para a inovação, à possibilidade de entrar na competição internacional e, atrelado a esses benefícios, elevar de modo sustentável o salário médio. O País registra diversos casos de sucesso nas últimas décadas, mas eles não conseguiram mudar a cara da indústria.
“Um exemplo é o pré-sal, que não teria sido possível sem um centro de excelência como o Cenpes, da Petrobras, sem um grande apoio do BNDES e da Finep, e conseguiu extrair quase 3 milhões de barris ao dia no meio do Oceano Atlântico, o que não é para muitos”, observa Giesteira, antes de recordar: “Todos os economistas heterodoxos foram contra”. Outros casos bem-sucedidos são o cargueiro KC-390 da Embraer, “quase um puro-sangue de criação do Estado”, e os aerogeradores eólicos.
A convergência razoável entre governo, academia e entidades como a CNI e a Fiesp em frentes como a promoção da digitalização com base na indústria e na pesquisa e desenvolvimento nacionais é um avanço, mas é preciso considerar que as políticas industriais necessitam de cerca de dez anos para ser implantadas, e o trabalho de coordenação precisa levar isso em conta. “Um grande desafio é que nenhuma política industrial profunda, como o Brasil precisa, caberá nos próximos três anos. Por esse motivo, é necessário assegurar uma institucionalidade capaz de manter a continuidade dessas estratégias. Isso tem de estar ancorado não apenas na burocracia pública, mas também em vários segmentos da sociedade, empresariais e de trabalhadores, de modo a carregar essa estratégia de um governo para outro e ir conferindo, com o tempo, o caráter de uma política de Estado”, destaca o economista Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, recriado no atual governo, é “um órgão de estatura elevada dentro da estrutura pública, importante para cristalizar esses compromissos em direção a determinadas estratégias industriais”, sublinhou Cagnin em debate no Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, IREE.
Transformação. O pré-sal é mais um caso de sucesso, mas não conseguiu mudar a cara da indústria nacional – Imagem: Agência Petrobras
O dever de casa da neoindustrialização é amplo e complexo, e os técnicos de vários ministérios priorizam ações que não dependam do Congresso, onde é grande a chance de “virarem um penduricalho total, parecido com as desonerações tributárias”, sublinha Giesteira.
Na avaliação da economista Samantha Cunha, gerente de política industrial da Confederação Nacional da Indústria, o plano da entidade para a retomada do setor, encaminhado ao governo, aponta, entre outros itens, para a necessidade de alinhar a indústria local ao novo paradigma produtivo e tecnológico de digitalização e descarbonização, de levar em conta o contexto geopolítico de aumento de conflitos, disputa tecnológica entre EUA e China e rearranjo das cadeias globais de valor, além do alinhamento da política industrial às políticas de ciência, tecnologia, inovação e comércio exterior.
A política industrial requer ainda medidas para aumentar a competitividade sistêmica, como uma política de forte investimento em infraestrutura. O Brasil investe, porém, apenas 1,7% do PIB no setor, quando o mínimo necessário seria de 2,4% do PIB, sublinha Igor Rocha, economista-chefe da Fiesp. A participação privada na infraestrutura, ao contrário do que costuma alardear a oposição, é gigantesca, de 70%, o oposto dos demais emergentes e muito acima da Inglaterra e dos EUA, aponta Rocha. O investimento em infraestrutura, é importante destacar, tem efeitos multiplicadores que contribuem para um desempenho econômico superior e é um importante veículo para o desenvolvimento da indústria.
As vantagens do Brasil no campo da energia renovável favorecem a atração de investimentos
Além de superar a defasagem histórica dos investimentos, é preciso levar em conta a necessidade de resiliência da infraestrutura às mudanças climáticas, ressalta Cagnin. Não por acaso, o primeiro eixo do Plano Biden, nos EUA, foi a infraestrutura. Segundo o Banco Mundial, 50% dos ativos de infraestrutura estão sob risco de chuvas extremas – que devem aumentar em 20% até 2040 no Brasil –, 65% do sistema de transporte rodoviário de carga pesada está exposto a inundações e deslizamentos, e 55% dos aeroportos e 94% das hidrovias estão sujeitos a riscos provocados pelo calor extremo.
As dificuldades, inclusive políticas, para implantar políticas industriais, aumentaram muito, mas o contexto geral é mais favorável. Após anos de ostracismo, a política industrial voltou ao centro das estratégias de desenvolvimento de praticamente todos os países. Com a justificativa da transição energética, há um movimento dos países avançados para um afrouxamento de regras na OMC quanto ao uso de instrumentos como subsídios, o que antes era recriminado. É possível utilizar as imensas vantagens do Brasil no campo da energia renovável, como moeda de troca para atrair investimentos, tecnologia de empresas e países que queiram descarbonizar seus processos produtivos, chama atenção Samantha Cunha.
Uma alternativa diante do risco de pulverização de ações de pouco impacto, destaca Cagnin, é fazer do hidrogênio verde um eixo fundamental. “Esse eixo tem interações muito fortes com as agendas do saneamento, da gestão de resíduos sólidos, da mobilidade urbana”, enumera. O economista ressalta que o hidrogênio verde também resulta da produção de amônia, que pode reduzir a dependência do agronegócio brasileiro da importação de fertilizantes. “Há muitas interações nessa agenda e, a partir desse tema, é possível construir uma estratégia transversal para algumas atividades. É importante descarbonizar setores fundamentais para o Brasil, como a siderurgia, a mineração e a indústria química. Isso tudo passa pela geração do hidrogênio verde, da amônia e de outros derivados.” •
Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.
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