Economia

Fato ou Fake? A fada da confiança e o jornalismo econômico da Rede Globo

Seguir a cartilha de reconstrução da confiança não é apenas um mau conselho. A austeridade pode empurrar os cidadãos para o colo dos golpistas

O economista Guilherme Mello, representante do programa econômico do PT, na GloboNews
Apoie Siga-nos no

A confirmação da exclusão da candidatura Lula e sua substituição por Fernando Haddad levaram a uma disputa sobre o programa econômico de um eventual governo petista. Como mostrei em artigo anterior, o próprio Haddad foi objeto de um ataque especulativo envolvendo o mercado financeiro e a imprensa para comprometê-lo com a agenda de restauração da confiança do mercado por meio da austeridade.

A tentativa de extrair uma admissão dos erros da política econômica de Dilma e um compromisso com a austeridade começou em agosto com o “debate” entre os jornalistas da GloboNews e o economista Guilherme Mello, representante do programa econômico do PT.

Neste debate, como já mostrei, a narrativa da Globo chegou ao ponto de distorcer os dados para defender o absurdo de que a recessão começou em 2014 e não em 2015 com Joaquim Levy. Além disso, um jornalista nos assegurou que, ao contrário do que dizia Guilherme, não foi a desaceleração econômica que provocou a perda de confiança empresarial. Ao contrário, segundo ele, foi a perda de confiança empresarial com o excesso de gastos do governo Dilma que provocou a desaceleração e a crise.

O intuito político do diagnóstico é estender no tempo a promessa da austeridade: cortar o gasto público para restaurar a confiança empresarial. A hipótese (nem sempre explícita) é que mesmo que a contração da demanda pública prejudique diretamente as vendas das empresas privadas, os empresários vão investir o suficiente para compensar este efeito negativo porque ficarão mais confiantes. Nesta narrativa, seria a confiança na trajetória da dívida pública, e não a demanda efetiva, que conduziria as decisões de produção e investimento privado.

Leia também:
Checagem de fatos e Fake News no jornalismo econômico da Rede Globo
O que é a austeridade? E por que os neoliberais a defendem?

Esta é a hipótese teórica de “austeridade expansionista” que justificou os cortes precoces do estimulo fiscal nos EUA e na Europa em 2010 e que já foi desacreditada teórica e empiricamente em vários estudos acadêmicos. Apelidada de “fada da confiança” pelos economistas Paul Krugman e Joseph Stiglitz já em 2010, ela é cada vez mais residual no jornalismo econômico no resto do mundo.

Os jornalistas econômicos da GloboNews não têm o dever de conhecer a bibliografia econômica internacional, mas deviam pensar duas vezes antes de questionar publicamente economistas que têm este dever.

No caso brasileiro, o problema é que a hipótese de que a desaceleração ocorrida no governo Dilma ocorreu depois da perda de confiança provocada pela “gastança” não resiste ao que deveria ser a tarefa primeira do jornalismo: a checagem dos fatos.

Para começar, veremos em um artigo seguinte que, se comparado aos governos de Lula e FHC, não houve gastança no governo Dilma. Ademais, os primeiros anos dos governos Dilma Rousseff (2011 e 2015) permitem refutar a hipótese de austeridade expansionista.

O impacto da contração fiscal do primeiro ano do governo Dilma foi devastador sobre o crescimento e totalmente contrário ao esperado pelos defensores da restauração da confiança e do gasto privado através da austeridade.

De fato, a política fiscal foi fortemente contracionista em 2011. Em valores reais (de 2015), o superávit primário aumentou 56 bilhões de reais entre 2010 e 2011, nada menos que 1,28% do PIB, acompanhado por elevação de juros e contração do crédito. Não por mera coincidência, a economia rigorosamente estancou entre o terceiro trimestre de 2011 e o segundo de 2012.

O crescimento de trimestre a trimestre era superior a 1% desde o segundo trimestre de 2009 até o segundo trimestre de 2011, e caiu muito abruptamente para uma média próxima de zero (0,04%) pelos três trimestres seguintes. A confiança industrial também caiu.

Isto não foi resultado da “nova matriz econômica”, mas do acirramento da “velha matriz econômica”. Ocorreu porque a austeridade afeta negativamente a demanda efetiva sem que isto seja compensado por qualquer efeito positivo no gasto privado decorrente do aumento da confiança na trajetória da dívida pública.

É verdade que, em seguida, a nova matriz não conseguiu trazer todo o ritmo de crescimento anterior ao aguçamento da velha matriz. No entanto, a economia voltou sim a crescer quando a austeridade foi relaxada. A confiança industrial também se recuperou junto com a “nova matriz”, pelo menos até junho de 2013. Os que foram às ruas não foram para reclamar da “nova matriz”, mas da carência de investimentos públicos, um problema tanto da nova quanto da velha matriz cuja solução parecia encaminhada no segundo governo Lula.

Veremos em um artigo futuro que “nova matriz” tem vários problemas (cujos principais não são os apontados pelos jornalistas da GloboNews). No entanto, não foi ela quem criou a mudança de patamar de crescimento entre o segundo governo Lula e o primeiro governo Dilma.

Untitled.png Pelo contrário, a recessão enfraqueceu politicamente o governo Dilma. Sinal que seguir a cartilha de reconstrução da confiança dos mercados financeiros de curto prazo não é apenas um mau conselho econômico. Sob acusação de estelionato eleitoral, a austeridade pode empurrar os cidadãos para o colo dos golpistas de todos os matizes.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo