Economia
Esvaziamento da ONU e ode a Trump: o saldo do discurso de Milei na Assembleia-Geral
A viagem aos Estados Unidos ocorre em um momento delicado para o presidente argentino


O presidente da Argentina, Javier Milei, emulou seu ídolo Donald Trump em parte de seu discurso na Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, nesta quarta-feira 24.
Milei dedicou uma fatia relevante de seu pronunciamento a pregar um esvaziamento da Organização das Nações Unidas, sob a avaliação de que ela tentou, ao longo das últimas décadas, impor um determinado modo de vida aos cidadãos.
Em uma crítica direta à ONU, afirmou que não apoiará “restrição das liberdades individuais ou comerciais, ou a violação dos direitos naturais dos cidadãos dos Estados-Membros”.
Na véspera, em um longo e por vezes desconexo discurso, Trump também disparou contra a entidade. Disse, por exemplo, ter “encerrado guerras” sem o apoio da ONU e a acusou de “criar e financiar” invasões, em mais um capítulo de sua cruzada contra imigrantes. “A ONU não só não está resolvendo os problemas que deveria, como também está criando novos problemas para resolvermos.”
Em uma ode a Trump, Javier Milei elogiou o governo dos Estados Unidos por sua política contra a imigração ilegal e por uma “reestruturação sem precedentes dos termos do comércio internacional” — levada a cabo, porém, por meio de um tarifaço que, no caso do Brasil, se deve a razões eminentemente políticas.
“É uma tarefa que atinge o cerne do sistema econômico global, porque esse sistema estava saqueando o coração industrial de seu país e fazendo com que ele mergulhasse em uma crise de dívida sem precedentes”, disse Milei, reproduzindo acriticamente a versão trumpista para sustentar a guerra comercial.
O argentino também elogiou Trump por supostamente promover uma “limpeza da captura institucional do Estado, porque havia sido infiltrado por facções de esquerda”.
Milei completou seu discurso com uma lista de “sugestões” à ONU que conduziriam, na prática, a um enfraquecimento da instituição. Para ele, a missão central das Nações Unidas deve ser “preservar a paz e a segurança internacionais, e todo o resto deve ser complementar”.
Significa que, em sua concepção, a ONU só deve intervir em um assunto quando se tornar evidente que o problema ultrapassa as capacidades de ação dos países envolvidos. “Em todos os outros casos, a iniciativa deve ser devolvida aos Estados, que possuem legitimidade democrática e são responsáveis perante seus povos.”
Ele defendeu também o encerramento de “programas ineficazes” e a garantia de que a ONU só financie iniciativas condicionadas a “resultados verificáveis”.
Recomendou, por fim, apoiar apenas “iniciativas que não restrinjam a capacidade dos Estados de liberar suas forças produtivas, atrair investimentos e promover o comércio”. Este ponto vai ao encontro da cantilena ultraliberal, que também esteve presente no discurso do presidente argentino na Assembleia-Geral — Milei chegou a falar em “santidade da propriedade e do livre mercado” ao defender sua visão de Estado.
Milei e Trump advogam, a rigor, pela redução da ONU, enquanto líderes como o presidente Lula (PT) instam a entidade a se democratizar e ampliar a influência de mais países, especialmente em seu Conselho de Segurança.
Em seu segundo mandato na Casa Branca, Trump já suspendeu repasses para programas e condicionou a volta do financiamento a uma reforma na ONU. As consequências são imediatas: menos de dois meses depois de o magnata voltar ao poder, por exemplo, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados já advertia que o corte ameaçava a saúde de cerca de 13 milhões de pessoas deslocadas.
Javier Milei tenta se projetar internacionalmente em um momento delicado no cenário interno. Uma pesquisa AtlasIntel divulgada na última quarta-feira 17 mostra que a desaprovação da população argentina ao presidente chegou ao nível mais alto (54%) desde o início do mandato, em dezembro de 2023.
O levantamento ocorreu após o estouro de um possível escândalo de corrupção que atingiu o ciclo mais próximo de Milei, incluindo sua irmã Karina, acusada de ser beneficiária de um esquema de propinas na compra de medicamentos para pessoas com deficiência.
Quando questionados sobre os principais problemas do país, 53% dos entrevistados citaram a corrupção. Entre a sondagem de agosto e a de setembro, houve um salto: no levantamento anterior, a corrupção era apontada como um dos problemas mais importante por 37% dos argentinos.
O momento também é crucial para Milei do ponto de vista eleitoral. Em 26 de outubro, os argentinos voltarão às urnas para o pleito legislativo que renovará metade das cadeiras da Câmara dos Deputados e um terço do Senado.
Em 7 de setembro, o partido A Liberdade Avança, de Milei, sofreu uma derrota retumbante nas eleições legislativas para a província de Buenos Aires: o bloco Força Pátria, dos peronistas, amealhou 47% dos votos.
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