Cultura
Entre a técnica e a natureza
Ao traçar a jornada das sociedades rumo à desigualdade, o economista Oded Galor coloca excessiva ênfase na geografia


Ao investigar a jornada da humanidade, Oded Galor, economista israelense radicado nos EUA, afirma que, não por acaso, as primeiras grandes civilizações surgiram em terras férteis ao redor de grandes rios, como o Eufrates, o Tigre, o Nilo, o Yang-tsé e o Ganges. “Nenhum acontecimento histórico, institucional e cultural aleatório poderia ter desencadeado a formação de grandes cidades antigas longe de fontes de água, ou a criação de tecnologias agrícolas revolucionárias no coração das florestas congeladas da Sibéria, ou no meio do Deserto do Saara”, escreve, no livro agora traduzido no Brasil.
As camadas mais profundas, diz ele, enraizadas na geografia e no passado distante, muitas vezes fundamentaram o surgimento de características culturais e instituições políticas promotoras do crescimento em algumas regiões do mundo.
“Uma análise do impacto duradouro das características geográficas nos levou 12 mil anos de volta no tempo, até o alvorecer da Revolução Agrícola”, prossegue. “Durante esse período, a biodiversidade e a disponibilidade de espécies domesticáveis de plantas e animais, assim como a orientação dos continentes, estimularam uma transição de tribos de caçadores-coletores para comunidades agrícolas sedentárias mais cedo em alguns lugares e mais tarde em outros.”
Vale a pena acompanhar Oded Galor e seus olhares para a humanidade em sua jornada. Minha divergência com o autor está centrada na redução dos elementos definidores das formas históricas assumidas pelas sociedades à sua dimensão “natural” – que, no livro, assume lugar central como definidora dos elementos universais de toda a produção. Peço licença para invocar o grande historiador Carlo Cipolla. Ele escreveu que a vida dos homens atravessou dois momentos cruciais: o neolítico e a Revolução Industrial.
No neolítico, os povos abandonaram a condição de “bandos selvagens de caçadores” e estabeleceram as práticas da vida sedentária e da agricultura. Entre as incertezas e brutalidades da “vida natural”, tais práticas difundiram condições mais regulares de subsistência dos povos e assentaram as bases da convivência civilizada. Podemos afirmar que, ao longo de milênios, as sociedades avançaram lentamente nas técnicas de gestão da terra, desenvolvidas à sombra de distintos regimes sociais e políticos e, portanto, sob formas diversas de geração, apropriação e utilização dos recursos.
A Revolução Industrial, escreveu Cipolla, “transformou o homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada”. A ruptura radical no modo de produzir introduziu profundas alterações no sistema econômico e social. Aí nascem, de fato, o capitalismo, a sociabilidade, a urbe moderna e seus padrões culturais.
A JORNADA DA HUMANIDADE. Oded Galor. Tradução: Antenor Savoldi Jr. Intrínseca (336 págs., 69,90 reais).
A diferença entre a vida moderna e as anteriores decorre do surgimento do sistema industrial que não só cria bens de consumo e os bens instrumentais para produzi-los, como suscita novos modos de convivência e formas de “estar no mundo”.
A indústria não pode ser concebida como mais um setor ao lado da agricultura e dos serviços. A ideia da Revolução Industrial trata da constituição histórica de um sistema de produção e de relações sociais que subordina o desempenho da economia à sua capacidade de gerar renda, empregos e criar novas atividades. O surgimento da indústria como sistema de produção apoiado na maquinaria endogeniza o progresso técnico e impulsiona a divisão social do trabalho, engendrando diferenciações na estrutura produtiva e promovendo encadeamentos intra e intersetoriais.
Além de sua permanente autodiferenciação, o sistema industrial deflagra efeitos transformadores na agricultura e nos serviços. A agricultura contemporânea não é mais uma atividade “natural” e os serviços não correspondem mais ao papel cumprido nas sociedades pré-industriais. O avanço da produtividade geral da economia não é imaginável sem a dominância do sistema industrial no desenvolvimento dos demais setores.
Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços gestados nas entranhas da expansão da indústria. Não há como ignorar, por exemplo, as relações umbilicais entre a Revolução Industrial, a revolução nos transportes e as transformações dos sistemas financeiros no século XIX. São reconhecidas as interações entre a expansão da ferrovia, do navio a vapor e o desenvolvimento do setor de bens de capital apoiado no avanço da indústria metalúrgica e da metalomecânica e na concentração da capacidade de mobilização de recursos líquidos nos bancos de negócios.
A história dos séculos XIX e XX pode ser contada sob a ótica dos processos de integração dos países aos ditames do sistema mercantil-industrial originário da Inglaterra. Essa reordenação radical da economia exigiu uma resposta também radical dos países incorporados à nova divisão internacional do trabalho.
Para os europeus retardatários, para os norte-americanos e japoneses e, mais tarde, para os brasileiros, coreanos, chineses, russos e outros, a luta pela industrialização não era uma questão de escolha, mas uma imposição de sobrevivência. Paradoxalmente, a especialização de alguns países na produção de bens não industriais é fruto da própria diferenciação da estrutura produtiva capitalista à escala global comandada pela dominância do sistema industrial.
Talvez tenha escapado a Galor que, ao longo desse processo de transformação, a redistribuição espacial da manufatura, engendrou o avanço industrial e tecnológico nos “emergentes” vencedores, bem como a desindustrialização e o retrocesso para as atividades de baixa complexidade nos submergentes perdedores. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Entre a técnica e a natureza”
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