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A Cemig ameaça dar calote em oito fundações de previdência que financiaram a hidrelétrica de Santo Antônio

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Devo e nego. A Cemig quer forçar uma renegociação das opções em poder dos fundos de pensão. Estes apostam que a arbitragem lhes dará razão
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Oito fundos de pensão cobram cerca de 600 milhões de reais da Cemig, empresa de energia mineira, referentes a uma opção de venda lançada pela estatal para financiar sua participação na Hidrelétrica Santo Antônio Energia, no Rio Madeira. A companhia recusa-se a honrar o contrato e alega que “as premissas e condições que fundamentaram o investimento e a estrutura jurídica dos diversos contratos firmados para esse fim ­sofreram modificações substanciais que resultaram em desequilíbrio nas ­opções”, conforme nota enviada a ­CartaCapital e que simplesmente reproduz um parágrafo de suas Demonstrações Financeiras de 2020. No mesmo balanço, a companhia afirma que “tentou, por meio do mecanismo contratual da Via Amigável, uma negociação com as entidades de previdência complementar dos termos de valoração e pagamento das opções”. Sem acordo, a disputa foi levada à Câmara de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil Canadá.

“A Cemig não ofereceu proposta de acordo”, rebate o presidente da  Fundação Assistencial dos Empregados da Cesan-Faeces, Luiz Carlos Cotta, porta-voz do grupo de entidades de previdência complementar, que inclui ainda a Fundação de Seguridade Social ­Braslight, Fundação Atlântico de Seguridade Social, Fundação de Seguridade Social do Banco Econômico (Ecos), Fundação de Seguridade Social da Arcelor Mittal Brasil (Funssest), Fundação Forluminas de Seguridade Social (Forluz),  a Caixa de Assistência e Previdência Privada Fábio de Araújo Motta (Casfam), e a Fundação BDMG de Seguridade Social (Desban).

A alegada “via amigável”, diz Cotta, resumiu-se a “contatos com a ideia de reavaliar o ativo e não o valor devido pelo exercício da opção”, sem que a Cemig fizesse qualquer proposta efetiva. “Não se falou, por exemplo, em números do tipo ‘o ativo perdeu x% do valor e vamos renegociar em X bases para reduzir esse prejuízo’. A Cemig limitou-se a dizer que era preciso reavaliar, mas não propôs algo como: ‘Vamos pagar a vocês, mas em condições diferentes, com valores menores e em prazo maior’. Nada sequer parecido”, enfatiza.

A história começa em 2014, quando a Cemig abordou os fundos para captar recursos e investir na construção da hidrelétrica. Para dar segurança a um investimento tido como de alto risco para entidades de previdência complementar, o Banco Modal estruturou dois FIPs (Malbec e Melbourne) constituídos por uma opção de venda (ou put, como é mais conhecida no mercado) outorgada pela Cemig, que garantia IPCA + 7% ao ano, caso o investimento não atingisse esse desempenho O vencimento seria em setembro de 2021. Um ano antes, em setembro de 2020, o Modal renunciou à administração e gestão dos fundos, para concentrar esforços no banco digital modalmais, segundo nota da instituição enviada a CartaCapital. Pelo contrato, no caso de renúncia do administrador, a Cemig e os fundos nomeariam outra instituição num prazo de seis meses. Segundo as fundações, foi realizada uma assembleia específica dos cotistas com a companhia, em agosto de 2020, mas a companhia elétrica votou contra a indicação do novo administrador. Seis meses depois, as fundações, conforme o contrato e as regras dos FIPs, notificaram a Cemig que iriam exercer antecipadamente a opção de venda. “Mas, quando os investidores exerceram a put por conta da renúncia do Modal, a Cemig, de forma surpreendente, adotou uma nova narrativa, a de que o ativo objeto teve péssimo desempenho e de que queria discutir a validade da put”, relata o porta-voz das fundações, sublinhando que “desde o início da operação os valores estavam provisionados nos balanços da Cemig, e em valores muito próximos àqueles entendidos como corretos pelas fundações. Constavam dos relatórios de auditoria e serviram como base para emissão de rating (classificação de risco) pelas agências especializadas para o mercado de capitais”.

A negativa da empresa transforma o caso em “risco sistêmico”, diz Luis Ricardo Martins, da Abrapp

De fato, a apuração do valor das cotas dos FIPs Malbec e Melbourne consta dos balanços da Cemig desde 2014. E nas Demonstrações Financeiras de 2020 a companhia registra “um passivo no valor de 572,49 milhões de reais, referente à diferença entre o valor justo estimado para os ativos em relação ao preço de exercício”, passivo que, “considerando a liquidação antecipada dos Fundos, e o vencimento da opção de venda, (…) foi transferido para o passivo circulante”.

Cotta assevera que as fundações fizeram avaliação “criteriosa” do investimento, baseadas em pareceres e análises de consultorias independentes e renomadas e de agências de classificação de risco. Além disso, o recurso à opção de venda “tranquilizou os tomadores de decisão, visto que era o terceiro produto lançado pela Cemig com essa formatação e tanto o balanço quanto o histórico da companhia reforçaram a confiança no investimento”. Uma opção de ­venda dá ao seu titular (no caso, as oito fundações) o direito de vender ao lançador da opção (aqui, a Cemig) um determinado ativo (neste caso as cotas dos FIPs) pelo preço acordado quando a opção foi outorgada. “As fundações levaram em conta também que foi firmado contrato claro e inequívoco tendo como contraparte uma empresa sólida, bem classificada pelas agências de rating, com investimentos em todo o País, e com um contrato de put option muito bem estruturado e formalizado. A taxa oferecida pelo Modal era aderente ao prêmio de mercado na época da emissão, dado o baixo risco da Cemig e a rentabilidade acima da meta atuarial de cada entidade”, sustenta o porta-voz das fundações.

A Santo Antônio Energia andou, no entanto, mal das pernas desde 2014, quando registrou prejuízo de 2,2 bilhões de reais. Só apresentou lucro no ano seguinte (34 milhões de reais). Em 2016, a perda foi de 483,9 milhões. Em 2017, de 1,07 bilhão. O prejuízo chegou a 1,684 bilhão em 2018, 933 milhões no ano seguinte e 1,42 bilhão em 2020. A hidrelétrica custou 20 bilhões de reais.

As entidades estão certas de que a decisão da câmara de arbitragem lhes será favorável. “Mas, se isso não vier a acontecer, os prejuízos serão muito elevados”, salienta Cotta. A Associação das Entidades Privadas de Previdência Complementar afirma acompanhar o caso com toda a atenção, até porque, diz seu presidente, Luis Ricardo Martins, a negativa da Cemig transformaria o caso em um “risco sistêmico”. “Qualquer alteração ou não cumprimento de uma obrigação contratualmente assumida pode trazer insegurança para o investimento. Não podemos deixar que os participantes sejam afetados diretamente. A postura da ­Cemig tem de ser revista.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: SANTO ANTÔNIO ENERGIA

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