Economia

assine e leia

Empresas brasileiras solicitam à ANP a revisão das regras que restringem o conteúdo

O movimento defende a abrangência do conteúdo nacional para outros setores além do offshore, como downstream, nuclear, energia e saneamento. E pleiteia uma nova política industrial

Empresas brasileiras solicitam à ANP a revisão das regras que restringem o conteúdo
Empresas brasileiras solicitam à ANP a revisão das regras que restringem o conteúdo
Imagem: André Ribeiro/Agência Petrobras
Apoie Siga-nos no

Em um cenário dominado pela aceitação quase absoluta, por parte dos empresários, das normas ditadas pelo governo, não deixa de ser representativa a iniciativa de indústrias fornecedoras da Petrobras de pressionar a Agência Nacional de Petróleo a revisar os limites, considerados estreitos da participação de bens e serviços de produção local na lista de compras da estatal. A pressão levou a ANP a aprovar a realização de uma audiência pública, precedida de consulta pública, para discutir a proposta de alteração da resolução que estabelece os critérios e procedimentos para execução das atividades de certificação de conteúdo local. O movimento, noticiado na imprensa especializada do setor, foi liderado pelo presidente da EBSE, empresa de engenharia e indústria, Marcelo Bonilha, que defende a abrangência do conteúdo nacional para outros setores além do offshore, como downstream, nuclear, energia e saneamento e pleiteia uma nova política industrial.

A asfixia econômico-financeira das empresas domésticas da cadeia de óleo e gás, a começar pelos estaleiros, retrata uma parte do declínio crônico da indústria local, agravado nos últimos anos. Análises de vários economistas indicam que o governo encurralou o conjunto da indústria ao encarecer financiamentos e insumos, comprimir o mercado consumidor e ampliar o risco de negócio, entre outros efeitos. Segundo projeção do Boletim Focus do Banco Central, o PIB total da indústria não deve crescer mais do que irrisório 0,2% em 2022.

O PIB industrial ficará praticamente estagnado em 2022

“À primeira vista, 2021 foi um ano de recuperação para a indústria brasileira, cuja produção acumulou alta de 4,7% até o mês de novembro, diante do mesmo período do ano anterior. Mas, na realidade, o setor não se saiu bem”, descreve o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial em análise do setor. Muito desse crescimento, prossegue o documento do Iedi, deve-se a bases baixas de comparação e ao carregamento estatístico da reação na segunda metade de 2020, quando medidas emergenciais, a exemplo do auxílio pago às famílias, estavam em vigor.

Os economistas da entidade salientam que a evolução da indústria mês após mês, descontados os efeitos sazonais, “foi majoritariamente negativa” no ano passado, pois dos onze meses para os quais existem dados oficiais do IBGE, nove ficaram no vermelho. A consequência, prossegue o instituto, é que o setor ficou em um nível 7,5% inferior àquele de ­dezembro de 2020, o que anulou tudo o que havia conquistado no segundo semestre e implicou recuo para um patamar de produção 4,3% abaixo do pré-pandemia, isto é, de fevereiro de 2020.

Com o passar do tempo, situações crônicas tornam-se agudas, caso da indústria química, com recorde de importações devido à insuficiência de fornecedores locais. O déficit na balança comercial de produtos químicos totalizou 46,2 bilhões de dólares em 2021, acima de estimativas recentes da Associação Brasileira da Indústria Química e 51,8% superior ao total de 2020, de 30,5 bilhões, e 44,4% maior do que o recorde anterior, de 32 bilhões, em 2013.

Pelo ralo. O setor químico acumula sucessivos déficits comerciais – Imagem: Marcel Crozet/ILO

Cada vez mais dependente das importações, a indústria química está também sob risco jurídico e o responsável é o governo, aponta o presidente-executivo da Abiquim, Ciro Marino, em comunicado: “O Brasil tem domínio técnico e ­expertise empresarial de produção de diversos itens que poderiam ter sua capacidade instalada aumentada ou voltarem a ser fabricados no País, diminuindo a dependência externa em várias cadeias produtivas. Na contramão disso, a medida provisória editada no fim de dezembro, extinguindo, de imediato, o Regime Especial da Indústria Química, cria um ambiente de insuportável insegurança jurídica, uma vez que o Congresso Nacional aprovou, em meados do ano passado, a manutenção do REIQ até 2025 e, assim, ameaça mais de 85 mil empregos”.

Ao que tudo indica, um dos legados mais importantes de Michel Temer e de Bolsonaro na área econômica é a inviabilização da indústria, inclusive por meio do achatamento do poder de compra dos consumidores de manufaturados, que afeta o conjunto das empresas. “O ­País está preso nesse cerco, que está se fechando no sentido de bloquear a possibilidade de a indústria ser minimamente um motor do crescimento e do desenvolvimento”, alerta o economista Antônio Carlos Diegues, professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador do Núcleo Industrial e da Tecnologia, da mesma universidade. Custos energéticos, diz, dependência de insumos importados, custos de insumos importados, endividamento em dólar, financeirização da dinâmica da acumulação, instabilidade cambial, falta de demanda e obsolescência do parque produtivo, tudo isso mina a capacidade da indústria de contribuir para o desenvolvimento em termos estruturais. Essa situação compromete o avanço “no sentido de o País ter uma estrutura produtiva um pouco mais competitiva, com maior produtividade, tecnologicamente mais avançada, com encadeamentos setoriais e capacidade de puxar setores, desempenhar um papel mais no sentido clássico da contribuição da indústria para o desenvolvimento”, sublinha.

A indústria tem papel central nas políticas dos países ricos

A necessidade de reverter a má situação da indústria é quase um consenso na oposição, mas nem todos consideram que o setor deve estar no centro do processo de crescimento e desenvolvimento, um entendimento essencial, contudo, às políticas industriais, inclusive àquelas desenvolvidas a partir da crise de 2008 nos Estados Unidos, na Alemanha e no Reino Unido, entre outros países. “Não há como avançar ou retomar minimamente um projeto progressista, eventualmente em 2023, sem a indústria como protagonista. Muitos não têm ainda a real dimensão da importância histórica da transformação estrutural da indústria para o desenvolvimento”, dispara Diegues. A explicação para esse papel estratégico é o caráter singular das atividades industriais na promoção do desenvolvimento, “evidenciado pelos retornos crescentes decorrentes da maior escala produtiva e da incorporação do progresso técnico, resultando em maior produtividade e, também, em maior elasticidade-renda da demanda por seus produtos”, escreveu o renomado economista Nicholas Kaldor.

Diegues associa a baixa presença da indústria na economia brasileira ao limite atingido na melhora da distribuição de renda e da qualidade de vida das camadas populares nas administrações do Partido dos Trabalhadores. “Não é possível o País crescer distribuindo renda se não existir uma indústria decente, pois isso impede aumentar a produtividade. A maior parte dos nossos empregos é gerada no setor de serviços no sentido mais amplo, no comércio ou em pequenas e médias indústrias mais intensivas em mão de obra como as de alimentos, bebidas, têxtil e vestuário, com baixíssima produtividade”, destaca Diegues. Sem a indústria como esteio do desenvolvimento, analisa, o limite para ter políticas progressistas é muito estreito, “está ali na esquina”.

Nessas condições, prossegue o acadêmico, se não há um cenário externo favorável, não tem o Lula arbitrando, não existe uma gestão política magistral disso, qualquer faísca dá, por exemplo, em algo semelhante à explosão de junho de 2013, com o movimento contra o aumento das passagens de ônibus que, acrescente-se, foi capturado e desaguou na deposição da presidente Dilma ­Rousseff. “Deu nisso porque não havia base material para sustentar políticas de mais longo prazo de distribuição de renda, de crescimento no sentido civilizatório. Esse ponto é central para se pensar em um projeto a partir da indústria”, ressalta o coordenador do Neit.

Armadilha. Com o atual modelo, o Brasil não atenderá os anseios populares. O BNDES não cumpre mais o seu papel – Imagem: Nelson Almeida/AFP e Fernando Frazão/ABR

Outro aspecto de uma possível ­retomada da centralidade da indústria envolve a relação Estado-setor privado. “O empresário industrial adaptou-se à situação de dependência nas cadeias globais e experiências anteriores não encorajam a apostar no seu protagonismo em um processo de transformação da indústria”, dispara Diegues. Devido ao contexto doméstico e à nova forma de produção com as cadeias globais, ele assumiu uma nova versão do industrialismo periférico. Complementou a sua indústria cada vez mais em direção aos serviços, não aqueles intensivos em conhecimento e de alta produtividade, dos EUA e da Alemanha, mas de comercialização, representação, marketing e financeiros. “Os empresários fazem a maquila introvertida, com importação subsidiada para consumo doméstico, produzem um conteúdo nacional bem ­meia-boca, na maior parte dos casos, e aí, beleza, é uma estratégia de acumulação inteligente muito bem sucedida financeiramente, só que o problema é que isso descola da dimensão estrutural da indústria”, dispara ­Diegues. “Talvez não seja tanto um problema para os donos do grande capital que está ­também na indústria, mas para o País.”

A evolução da Coréia do Sul, uma referência, ao lado da China, de economia que no passado recente foi subdesenvolvida, mas conseguiu avançar, teve por base uma relação simbiótica, que se estabeleceu desde o início, entre Estado e iniciativa privada, “traço que marca suas estruturas política e econômica até hoje”, destaca o economista Leonardo Burlamaqui, professor da UERJ e pesquisador do ­Levy Economics Institute do Bard ­College, em Nova York. O grau de interação entre o Estado e o setor privado varia em cada caso específico, mas uma vasta literatura especializada e a experiência mundial mostram que “o empresário nacional ou o grande capital é uma construção histórica do Estado”, enfatiza Diegues.

A situação imediata está longe de ser confortável. O Índice de Confiança do Empresário Industrial deste mês, apurado pela CNI, mostra que 24 de 29 setores industriais iniciam o ano com nível de confiança inferior ao do ano passado. Um levantamento divulgado pela FGV na quarta-feira 26 revelou que quatro em cada dez indústrias brasileiras sofrem escassez de insumos essenciais. Há, no entanto, perspectivas de avanço. “Um benefício que um eventual novo governo progressista talvez tenha em 2023 é que os ventos mudaram no mundo. Há um renascimento muito forte do debate sobre política industrial e existe a possibilidade de o País surfar um pouco essa onda também”, acredita Diegues. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Barrados na festa”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo