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E o rabo abana o cachorro

O Brasil virou um aparelho a serviço do agronegócio

Disfunção. Metade do crédito público para o setor é despejada no cultivo da soja. Até mesmo agrotóxicos banidos na Europa surfam nas renúncias fiscais – Imagem: iStockphoto
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A intensificação do debate sobre os subsídios ao agronegócio após a avalanche de execrações aos subsídios previstos no novo plano de política industrial, lançado há duas semanas pelo governo, talvez contribua para lançar luz sobre a realidade dissimulada dos grandes interesses do setor agropecuário, articulado ao setor financeiro e à mídia. O que mais chama atenção não é tanto que o agronegócio tenha se agigantado no País, mas o fato de o Brasil ter-se transformado, em diferentes etapas desde a ditadura, em uma colossal máquina econômica, política e ideológica movida pelos interesses de uma parcela ínfima de proprietários rurais e empresas conexas.

É o que mostram os números e as avaliações de abalizados economistas e outros analistas. É inegável a eficácia do agronegócio como um aparelho de geração de divisas, mas as disfunções do mecanismo não são de todo evidentes e precisam ser desvendadas, sublinham. Segundo Sérgio Sauer, professor da UnB e coordenador do Observatório Matopiba, o subsídio, no sentido de apoio estatal a setores econômico-produtivos mais vulneráveis, não é um problema. Compensações e apoios estatais, tanto para diminuir vulnerabilidades quanto para fomentar investimentos, devem existir, mas precisam, necessariamente, resultar em ganhos e retornos para a sociedade, como o crescimento econômico e a geração de empregos.

Por ter maturado plenamente como setor por excelência em que o Brasil atinge “níveis globalmente impressionantes de produtividade e competitividade”, o agronegócio pode abrir mão, ao menos parcialmente, de subsídios explícitos, implícitos e renúncias de receitas para a geração e consumo desses produtos, sugerem os economistas Samuel Pessôa e Bráulio Borges, da ­FGV-Ibre. Borges estima em 85 bilhões de reais anuais o volume de renúncias que poderiam ser redirecionadas para tentativas bem pensadas de política industrial, com metas e limites bem estipulados de diversificação produtiva. “Em princípio, pode parecer uma recomendação indevida, já que esses são setores em que sabidamente o apoio governamental ‘deu certo’. Mas o ponto dos pesquisadores é precisamente esse.”

Subsídios não são um problema, mas devem resultar em ganhos e retornos para a sociedade

Segundo a OCDE, o Brasil não está entre os países com maiores volumes de subsídios e há um coro de economistas que concorda com essa conclusão, mas no que se refere ao aspecto fundamental, deixado de lado nessa corrente de análise, que é o do custo-benefício para o País, o setor deixa muito a desejar. A própria organização aponta o fato de o subsídio agrícola recorde atrapalhar a adaptação do País à mudança climática.

O economista André Roncaglia, professor da Unifesp, chama atenção para o fato de que a agropecuária representa 7,9% do PIB e míseros 3% dos empregos formais da economia, mas paga menos de 1,5% da arrecadação total de tributos. “É o único setor que abocanha uma fatia dos benefícios tributários, de 13,5%, maior do que a sua contribuição ao PIB. Por comparação, a indústria representa 12,9% do PIB e 15% dos empregos formais, sendo responsável por 31% dos tributos arrecadados e 12,5% dos benefícios tributários”, dispara o professor da Unifesp. No período de 2023 a 2024, serão 435 bilhões de reais em crédito subsidiado, que permite ao agro pagar juros de apenas 7% a 12% ao ano, diante de 20% do piso para a indústria. Os recursos mobilizados para a Nova Política Industrial, é importante ressaltar, serão de 300 bilhões de reais ao longo de três anos, sendo a menor parte subsidiada, com subsídios já existentes.

Uma evidência da influência desmesurada do agro no direcionamento da economia é a aprovação, na reforma tributária, de dispositivos de proteção aos interesses do setor, em alguns casos contra o que seria melhor para o País, sob pena de o agro boicotar a votação do projeto. A organização entende que as alterações no projeto de reforma tributária foram custos políticos necessários para sua aprovação, mas considera algumas concessões “grandes demais, com custo muito alto para o Brasil e para as futuras gerações”. A Lei Kandir, sancionada em 1996, no primeiro governo FHC, quando o Brasil “precisava desesperadamente de dólares” para dar sustentação à política econômica do perío­do, foi integrada à reforma tributária.

Clima. O avanço das fronteiras agrícolas sabota o esforço para reduzir o desmatamento – Imagem: iStockphoto

Esse instrumento, prossegue a Oxfam, criou um diferencial competitivo falso para o setor agrícola em relação ao setor industrial, que gera produtos de maior valor agregado e empregos de maior qualidade, e por isso teria efeito mais positivo no desenvolvimento do País. “Na disputa política dentro dos diferentes governos dos últimos 30 anos, os interesses do agronegócio foram privilegiados”, sublinha a instituição.

Outro ponto problemático no texto da reforma refere-se à inclusão de insumos agropecuários e de aquicultura que também foram colocados na lista de regime diferenciado, recebendo 60% de redução na alíquota, sem discriminação. Vale, inclusive, para agrotóxicos banidos na União Europeia.

O aparelhamento pró-agronegócio inclui o financiamento da mídia, não só a jornalística. A Globo transmite hoje a terceira novela seguida em horário nobre dedicada à glamourização do agronegócio.

As distorções são abundantes. Cerca da metade do crédito público anual para o setor agropecuário, os recursos do Plano Safra, é destinada para empréstimos com juros subsidiados para o cultivo de soja. De acordo com dados do Censo Agropecuário 2017, em torno de 240 mil estabelecimentos declararam cultivar soja, e o mesmo censo estima em torno de 5 milhões os estabelecimentos rurais no Brasil. Além de beneficiar 5% dos produtores, a soja consome a metade do crédito subsidiado destinado a todas as atividades agropecuárias, mas não é uma cultura intensiva em mão de obra, portanto, não gera muitos empregos, salienta Sauer.

De 2023 a 2024, serão 435 bilhões de reais em crédito subsidiado ao agro. O novo plano industrial terá 300 bilhões em três anos

Chama atenção também que a produção e exportação de soja e outras ­commodities subsidiadas impacta o preço das terras, tornando mais caro implementar políticas fundiárias e garantir direitos territoriais no Brasil. “Apoios e incentivos são importantes, mas é fundamental ocorrerem redefinições nos subsídios aos grandes produtores”, ressalta o professor.

Segundo estudo do pesquisador Sergio Wulff Gobetti, publicado pelo Observatório de Política Fiscal do ­IBRE-FGV, entre 2017 e 2022 a renda dos mais ricos no País subiu inimagináveis 49% acima da inflação em cinco anos de estagnação econômica, mas nos estados dominados pelo agronegócio, que são Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, ­Tocantins e Goiás, a renda dos mais ricos cresceu o dobro dessa exorbitância.

O questionamento da relação entre o custo e os benefícios para o País das vantagens abundantes do agronegócio tornou-se imperioso diante da emergência climática. “A necessidade urgente de medidas mitigatórias para enfrentar a crise ambiental coloca o agro brasileiro no centro do debate”, destaca Sauer. É fundamental, acrescenta o especialista, entender que a transformação do uso da terra, isto é, desmatamento e expansão da fronteira agrícola e as atividades agropecuárias, é responsável por mais de 70% das emissões totais de gases de efeito estufa brasileiro.

Tributação. A reforma aprovada pelo Congresso conserva privilégios ao setor – Imagem: Lula Marques/ABR

A consequência dessa constatação é que incentivos ao agro devem, necessariamente, ser acompanhados de condicionantes ambientais. Não só diminuir o desmatamento, mas também adotar medidas concretas para reduzir o uso de insumos químicos, inclusive venenos, adubos e corretivos do solo, recuperar áreas degradadas e investir na restauração ambiental.

Cabe ressaltar que a maior parte dos integrantes do agronegócio não cumpre a legislação e não mantém e nem recupera a Reserva Legal. Além de adotar métodos e formas ambientalmente sustentáveis, é fundamental investir em pesquisa e desenvolvimento de técnicas mais sustentáveis.

“É preciso ver o sistema agro não propriamente como uma solução para os problemas nacionais, mas como uma equação à dependência externa do Brasil, mantendo essa dependência. Do ponto de vista econômico, isto se faz com uma quantidade muito grande de subvenções, que são escondidas de forma muito sistemática pela grande mídia”, alerta o economista Guilherme Delgado, pesquisador aposentado do Ipea e diretor da Associação Brasileira da Reforma Agrária. O agronegócio não paga três tributos-chave: o Imposto de Exportação, o Imposto de Renda, onde conta com uma redução substancial, com alíquotas na faixa de 10% a 12%, e o Imposto Territorial Rural, reduzido a praticamente nada.

Outro problema é que a expansão física já realizada e a expansão calculada como sendo necessária para manter a dinâmica das exportações levam o mercado de terras a invadir o espaço de terras públicas pela grilagem, criando a figura, que as estatísticas nem conseguem levantar, das terras degradadas, que foram matas queimadas e transformadas em pré-pastagens e que devem ir ao mercado para atender à expansão das áreas de cultivo e das áreas de exploração pecuária, aponta Delgado.

Até agora o agronegócio foi visto mais como uma grande solução, o que de fato é. Mas não é menos verdadeiro que também gera imensos problemas e parece ter chegado a hora de o País encarar de frente esse lado negativo, a pesar cada vez mais sobre o conjunto da sociedade brasileira. •

Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.

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