Economia
Dragão de papel?
O mercado financeiro ensaia pânico diante de um microestouro da meta, que talvez nem chegue a ocorrer


O Boletim Focus, que pesquisa as expectativas dos operadores do sistema financeiro sobre vários indicadores econômicos, cravou na terça-feira 29 que o IPCA alcançará 4,55% neste ano, notícia anunciada com estardalhaço pela mídia como um “estouro” da meta de inflação, de 4,50%. O nervosismo diante da provável oscilação de 0,05 ponto porcentual acima do limite só era comparável, na semana passada, à ansiedade quanto ao pacote de cortes de gastos do governo, um desejo obsessivo do mercado e da mídia e uma imposição do sistema financeiro. O jogo de esconde em Brasília quanto aos números do anunciado arrocho foi apontado como a causa da elevação recorde do dólar e dos juros futuros na mesma terça, mas no dia seguinte, após o anúncio de um acordo entre a Fazenda e a Casa Civil sobre a redução das despesas públicas, aqueles indicadores caíram, em mais um episódio da série atual de especulação financeira crônica.
Sempre em busca de verdades férreas imutáveis em benefício próprio, o mercado e a mídia deixaram de lado a enorme série de erros vergonhosos de previsão do Focus quanto ao crescimento do PIB e correm o risco, mais uma vez, de dar com a cara na parede da realidade no caso da inflação, como se verá a seguir. Pressões altistas não faltam. A dois meses do fim do ano, aumenta a preocupação, dentro e fora do governo, com a aceleração da inflação, pressionada pela alta dos salários, em consequência, principalmente, do crescimento da economia, do aumento da demanda por trabalhadores e da expansão do consumo, segundo a versão do mercado financeiro, ou, de forma preponderante, devido ao agravamento da crise climática e a alta do dólar, de acordo com o governo.
As duas interpretações correspondem a terapias distintas. O mercado propõe, na prática, um freio ao crescimento. Já o governo visa combater a especulação com o dólar, principalmente no mercado de derivativos, para dar conta de uma parte do problema, que depende também da variação da moeda no mercado internacional.
Fatores fora de controle, como o risco climático e a variação externa do dólar, pesam no resultado
O IPCA-15 subiu 0,54% em outubro e atingiu 4,47% em 12 meses. A alta foi generalizada, como mostra o fato de que a aceleração da alta só não aconteceu no setor de transportes, com queda de 0,33%. A única queda ocorreu no item passagens aéreas. Nos itens não comercializáveis no exterior, ou non tradeables, destaca-se a elevação do custo da energia elétrica residencial, resultado do choque climático incontrolável, que acionou a situação tarifária denominada bandeira vermelha.
Dissimulados entre a alta generalizada figuram os itens cruciais para a população, e por esse motivo politicamente mais sensíveis, da carne e dos alimentos fora de casa. A alta da carne já produz memes em torno da inviabilidade da picanha prometida por Lula para os mais pobres.
A inflação dos serviços, tema central do Copom, subiu 0,27%, o que corresponde a 10 pontos dos 54 da alta do IPCA–15, chegando a 4,37% em 12 meses, anotou o economista-chefe do Banco Fator, José Antônio Lima Gonçalves, em informativo da instituição. Mais importante ainda: a alta foi concentrada em serviços subjacentes, os mais sensíveis à política monetária. As altas de serviços subjacentes foram as do seguro voluntário de veículo, refeição fora de casa e o combo de telefonia, internet e TV por assinatura, neste caso com uma elevação de 0,02 ponto porcentual.
Vários economistas concordam que não será fácil o governo manter o compromisso de segurar a inflação dentro da meta definida pelo Copom, mas haveria uma possibilidade de isso acontecer, no limite. O problema é o peso crescente dos fatores fora do controle, como o risco climático, ou com possibilidade de controle parcial, caso do dólar e seu peso nos preços internos. “A resistência dos preços dos serviços e a alta dos preços administrados e dos alimentos sustentam a inflação de 2024 perto do teto da meta. Além disso, os preços industriais aos poucos vão subindo, também pelo efeito do câmbio, que afeta tradeables em geral, inclusive alimentos”, prossegue Gonçalves.
Energia. A crise climática hasteou a bandeira vermelha da tarifa elétrica – Imagem: iStockphoto
A saia justa do governo decorre não tanto da natureza da inflação – se provocada pela demanda, como insiste a Faria Lima, ou pela oferta, como apontam as interpretações que levam em conta as enormes mudanças nas cadeias de suprimentos desde a pandemia e sob efeito continuado de guerras e crises, além da crise climática –, mas dos seus efeitos sobre outros indicadores cruciais. O problema consiste no efeito da inflação sobre os juros futuros, pois “a piora do IPCA-15 vai afetar as projeções do IPCA e aumentar o carregamento para 2025”, diz o economista-chefe do Fator.
O governo reafirma a manutenção da inflação dentro da meta, com teto de 4,5%, mas o mercado de apostas oscila entre a manutenção da inflação pouco abaixo do nível atual, perto do teto da meta, e um estouro da meta, politicamente complicado independentemente da sua magnitude efetiva.
“O principal reajuste nas tarifas de energia e dos bens administrados já foi feito e não se esperam altas adicionais significativas até o fim do ano. Portanto, na ausência de novos eventos climáticos extremos e se ocorrer a manutenção da taxa de câmbio no patamar atual, a inflação acumulada do ano tem tudo para ficar abaixo do teto da meta”, ressalta o economista Rafael Ribeiro, professor de Economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG.
A inflação dos bens comercializáveis, prossegue Ribeiro, que são mais sensíveis às variações no preço do dólar, manteve-se estável devido à relativa estabilidade da taxa de câmbio ao longo do ano. Em contrapartida, os eventos climáticos extremos, como as fortes chuvas no Rio Grande do Sul, queimadas e a longa estiagem em várias regiões do País, tiveram um impacto significativo na alta dos preços, em especial na inflação no grupo de alimentos e bebidas e no grupo de habitação.
A alta de outubro foi generalizada, só não aconteceu no setor de transportes
Em setembro, essas categorias registraram as principais altas, com a elevação da tarifa de energia, um dos componentes do grupo de habitação, que foi um fator importante devido à escassez de chuvas e à consequente redução na geração de energia. Enquanto a estabilidade do dólar ajudou a controlar a inflação dos bens comercializáveis, os choques climáticos foram determinantes na recente alta dos preços, ressalta o economista.
A inflação de serviços tem subido de modo sistemático nos últimos meses, a refletir a recuperação da economia e o aquecimento do mercado de trabalho. O aumento dos salários pode contribuir para a inflação quando não é acompanhado por um aumento equivalente na produtividade, relembra o professor do Cedeplar–UFMG. No Brasil, a produtividade tem se mantido estagnada há muito tempo, o que significa que os aumentos salariais acabam pressionando os preços. No entanto, a política monetária restritiva do Banco Central, ao controlar a demanda agregada e reduzir os salários, também pode prejudicar o crescimento da produtividade.
A elevação dos juros tende a desestimular o investimento produtivo, a modernização do maquinário e o investimento em inovação tecnológica e, com isso, perpetua a estagnação da produtividade. “Enquanto o aumento dos salários pode ser um fator inflacionário, a solução não está apenas em conter os salários, mas também em promover políticas que incentivem o aumento da produtividade”, ressalta Ribeiro.
Falatório. Campos Neto acende duas velas, uma para Deus e outra para o diabo. Haddad assegura que a inflação fechará o ano dentro do limite da meta, de 4,5% – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil e Washington Costa/Ministério da Fazenda
Para o economista Saulo Abouchedid, professor da Facamp, a probabilidade de a inflação deste ano fechar dentro da meta, ainda que no teto permitido de variação, é elevada. O motivo é que os fatores que explicam a alta da inflação, medida pelo resultado do IPCA–15, são pontuais. É o caso da crise do clima, do fenômeno El Niño, da bandeira tarifária da energia elétrica, do próprio efeito do dólar. No contexto da política monetária restritiva, o aumento da Selic contribui para a entrada da moeda estadunidense.
Abouchedid, que não acredita em uma depreciação muito forte do real até o fim do ano, considera que o temor do mercado em relação à inflação de serviços não se justifica do ponto de vista empírico. “Claro que há alguns riscos conectados à disseminação da alta desses preços sobre os demais, portanto há um potencial de difusão. É o caso da energia elétrica, que afeta outros preços, principalmente de serviços. Pode existir, portanto, uma pressão, muito mais pelo lado dos custos do que pelo lado da demanda, até o fim do ano”, afirma o professor da Facamp. “Vou um pouco na contramão do que o BC preconiza. Essa preocupação do Campos Neto em relação à inflação de serviços carece de embasamento empírico.”
Apesar de repiques recentes, a inflação brasileira deve fechar o ano dentro de 4,5%, teto da meta, reafirmou há uma semana o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Durante evento em Londres, na terça-feira 29, o presidente do Banco Central deu a impressão de acender uma vela para o diabo, outra para Deus. Campos Neto ressaltou as suas preocupações com os altos preços no setor de serviços e a lentidão da inflação no processo de convergir à meta de 3%, em acordo com os mandamentos do sistema financeiro. Mas disse ver um exagero nas críticas à política fiscal do governo, pois o resultado primário do Brasil está na média dos países. •
Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dragão de papel? ‘
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