Cultura

Dos fronts à recessão: como a Primeira Guerra Mundial redefiniu o capitalismo

Em ‘A ordem do Capital’, a economista Clara Mattei revela suas descobertas sobre a real motivação da naturalização da austeridade

O livro deve ser lançado no Brasil no fim deste ano – Imagem: INET New Economic Thinking
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Após quase dez anos de pesquisa em arquivos ingleses e italianos, Clara Mattei publicou A ordem do Capital, sobre o nascimento da austeridade como a conhecemos. A Primeira Guerra Mundial e os desenvolvimentos dos anos seguintes haviam colocado o capitalismo na posição de maior vulnerabilidade de sua história. Ao instituir a trindade da austeridade – fiscal, monetária e industrial – as autoridades econômicas inglesas produziram, artificialmente, uma grave recessão que, mesmo com aparente irracionalismo, a queda do produto nacional, terminou por subjugar os trabalhadores e destruir suas organizações e seus sonhos de alcançar uma democracia econômica. A pretexto de controlar a inflação e equilibrar as contas do governo, alvos que historicamente não alcança, a trindade da austeridade, segundo a autora, garantiu a sobrevivência do capitalismo e manutenção de suas relações de produção.

Por que razão os trabalhadores, como os mineiros da Grã-Bretanha, chegaram ao pós-Primeira Guerra Mundial organizados e politicamente potentes?

A crença disseminada, no início da Guerra, era que a produção privada e a liberdade de preços garantida pelo mercado seriam suficientes para produzir os insumos necessários durante a guerra: bastava um estímulo governamental aos preços. O que se verificou, contudo, foi uma subida na demanda por parte do governo e alta dos preços, sem aumento na oferta. As empresas privadas direcionavam sua produção para o que se mostrasse mais rentável, por exemplo, bens de luxo e exportações. “Em 1916, o fracasso do laissez-faire e do mecanismo de preços livres era inequívoco”, aponta Clara Mattei.

A fé que o mercado levaria ao necessário acréscimo da oferta tardou a se dissipar, mas a decisão de intervir no “imaculado reino do mercado” – controle da produção e regulação do custo e alocação da mão de obra – teve papel incontestável na vitória dos aliados. Simultaneamente, evidenciou que as relações sociais de trabalho assalariado e produção privada não são frutos da natureza, mas resultados de escolhas políticas. Mattei entende que, ao testemunharem tal processo, os trabalhadores se organizaram para lutar pela manutenção do status conquistado: a guerra havia dado origem a uma “classe trabalhadora nova e bem mais aguerrida”.

Os mineiros ingleses estavam, após conquistarem significativo avanço pelo controle estatal do carvão, organizados e estruturados nacionalmente e contavam, ainda, com a solidariedade de várias outras categorias. Decidiram, em 1919, reivindicar aumento salarial, redução da jornada de trabalho e, principalmente, a manutenção da nacionalização e o controle compartilhado das minas. Não obstante a oposição da maioria dos membros do gabinete ministerial, a decisão foi formar uma comissão paritária (Comitê Sankey) para avaliar as demandas dos mineiros.

Surpreendentemente, “os três representantes dos mineiros e os três especialistas em economia concordavam todos em um ponto básico: o capitalismo de livre mercado tinha que ser denunciado e superado”. O Relatório Sankey, fundamentado nas falhas do sistema de competição anterior à guerra e nas “deploráveis” condições de trabalho, condenou o sistema de propriedade e trabalho na indústria de carvão e indicou que outro sistema deveria substituí-lo. O gabinete ministerial aceitou o relatório. Após protelar por meses, o governo o rejeitou.

Argumenta a autora que “a pressão dos especialistas econômicos do Tesouro pelo fim do controle estatal da indústria a fim de salvaguardar as finanças públicas teve um peso decisivo na rejeição. A partir de julho, o governo procurou explorar o medo dos balanços fiscais deficitários ‘para pintar as reivindicações dos mineiros como excessivas e danosas’ aos cofres públicos.”

A recessão que seguiu a subida das taxas de juros e as políticas restritivas de crédito destruiu a organização dos trabalhadores e minou a coesão entre as categorias. Em 1922, nos ensina Mattei, os salários dos mineiros haviam caído para perto da metade do que eram em 1919.

Os trabalhadores italianos, por seu turno, flertaram com a revolução

Decreto do fim de 1919, dava autonomia às cidades italianas para requisitar terras e passá-las para o controle de cooperativas de camponeses. Ao mesmo tempo, os contratos para obras públicas e as políticas de crédito davam sustentação a cooperativas industriais e de construção.

A Confederação Geral do Trabalho, em 1920, controlava cerca de 800 cooperativas e havia cerca de 500 mil trabalhadores ocupando fábricas por toda a Itália. As regras de gestão eram totalmente democráticas: os membros tinham de ser trabalhadores e o corpo deliberativo era escolhido em assembleia geral em que todos os cooperados tinham direito a voto. A essência do capitalismo estava em questão.

O movimento, segundo Mattei, desmascarou os fundamentos das instituições do capital: não se acreditava mais na necessidade de instituições capitalistas, os trabalhadores deixaram de ser vistos como “insumo secundário”, a prática prevalecia sobre a teoria abstrata e a divisão entre economia e política deixava de existir.

A força dos trabalhadores vinha de sua amplitude e organização. Diz a autora, “contra as ordens da liderança oficial, o movimento dos comitês de fábrica praticava duas formas interligadas de ação: greves e controle nas mãos dos trabalhadores”. Gramsci escreveu, em L’Ordine Nuovo, que a aceitação do conselho de fábrica pelos empregadores da Fiat em Turim, em setembro de 1919, “encheu a alma de nossos camaradas trabalhadores de entusiasmo e fervor ativo”.

Não tardou para que liberais, nacionalistas e conservadores se fundissem “na ofensiva armada do fascismo e na agenda de austeridade”, em violenta oposição aos trabalhadores. Milhares de dirigentes e operários de base tinham sido mortos e sedes de associações de trabalhadores tinham sido incendiadas quando se instalou o governo fascista, em outubro de 1922. Mussolini, apoiado por instituições financeiras inglesas e norte-americanas, trouxe para seu lado especialistas em economia que fariam emergir a “austeridade como nova paladina do capitalismo” para enterrar qualquer modelo alternativo de relação de produção.

“Trabalhar mais. Consumir menos”

As reuniões de Bruxelas (1920) e de Gênova (1922), descritas por Mattei, consagraram o lema acima para a classe trabalhadora, equivalente ao nosso “apertar o cinto”. Os participantes das conferências eram majoritariamente  banqueiros e especialistas em economia e finanças. Suas conclusões podem ser enquadradas sob o rótulo de ‘princípios fundamentais da austeridade moderna’, cujos meios eram: recuperar equilíbrio dos orçamentos públicos, cortar investimentos sociais e salários.

A despolitização da economia emerge como objetivo principal da austeridade. Deve-se criar consenso, na opinião geral, de que as forças do mercado são independentes da política, como eventos impessoais, mesmo eventos da natureza. Esta é, sustenta Mattei, a primeira forma da despolitização da economia: transferir as causas da desigualdade, do desemprego, dos baixos salários, do sofrimento enfim dos trabalhadores às forças impessoais do mercado. A esta forma deve-se agregar as instituições independentes de avaliação democrática, como bancos centrais independentes, e a concepções de que a teoria econômica é neutra, racional e objetiva. Esse conjunto conforma a estratégia de reinstalação da separação entre economia e política.

A vigência do receituário da austeridade nos dias de hoje, praticamente 100 anos após seu nascimento, certifica o sucesso do plano elaborado. Como defende nossa autora: as conferências financeiras de Bruxelas e Gênova “representaram um momento marcante na história do capitalismo: a emergência da austeridade em sua forma moderna, de projeto tecnocrático global”.

Quando o consenso não era alcançado, a coerção era ativada: a democracia tinha que se curvar se necessário. É espantoso que comunidades liberais internacionais continuaram a conferir apoio a Mussolini mesmo após a Leggi Fascistisime de 1925-1926. “ A austeridade necessitava do fascismo (…) O fascismo, inversamente, necessitava da austeridade para solidificar seu domínio”, pontua Clara Mattei.

A luta para inocular o ideário da austeridade nas pessoas não deixou de repetir à exaustão o mantra da virtude do empresário e o vício do trabalhador. Umberto Ricci, crucial para a expansão da política econômica fascista, tinha o empresário como um poupador, comedido nas despesas, além de ser um pensador, um calculista. E mais, alguém “que não se alvoroça como um maricas diante da dificuldade iminente”. Mesmo a culpa pela inflação era colocada na conta dos mais pobres. Ralph G.Hawtrey, influente economista britânico, sustentava que “a inflação era a principal ameaça à economia de mercado e as causas da inflação repousavam fundamentalmente nos gastos por parte da população em geral – especialmente os escalões inferiores”.

O paralelismo entre a democracia inglesa e o fascismo italiano

Na Grã-Bretanha, na década de 1920, a coerção dos trabalhadores se deu pelo construção artificial de dura recessão, amplo desemprego e cancelamento dos direitos da seguridade social. Os trabalhadores não tinham outra saída para subsistir a não ser compactuar com a lógica da acumulação imposta pelas políticas do Banco da Inglaterra e do Tesouro. As intervenções do governo italiano lograram dispensar a recessão: a ditadura fascista reduziu nominalmente os salários e aniquilou a representação trabalhista.

Clara Mattei agrega um penúltimo capítulo de estatísticas econômicas que demonstram: o “sucesso” da austeridade foi a restauração das condições ideais de acumulação de capital. Os mecanismos utilizados foram a alta do desemprego, a queda dos salários, o aumento da exploração e, assim, dos lucros. Ela  arremata: “Em uma ordem do capital austera, protestos populares podem surgir, porém os manifestantes enfrentam um cenário político que os enfraquece estruturalmente: é difícil protestar contra a austeridade capitalista quando se depende do capitalismo para sobreviver”.

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