Economia

Dique rachado

Pontuais e passageiras, as medidas eleitoreiras não desarmam a bomba salarial armada pelo governo

Desfaçatez. Após chamar a PEC de Camicase, o ministro Guedes agora vê virtudes no pacote que aumenta em 200 reais, até dezembro, o Auxílio Brasil. É o vale-tudo da campanha - Imagem: André Coelho/Getty Images/AFP e Carolina Antunes/PR
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A aprovação pelo Congresso na tarde da quarta-feira 12 da emenda constitucional dos auxílios equivale a entregar um cheque de 41,2 bilhões de reais para Jair Bolsonaro usar na sua campanha, a três meses das eleições e na cara da Justiça Eleitoral. A PEC proporcionará um alívio financeiro aos mais pobres com vigência apenas até dezembro e não desarmará a bomba salarial prestes a explodir. Preparado com o auxílio da recessão de 2015-2016, do fundamentalismo fiscal, da pandemia, da inflação e da reforma trabalhista que encaminhou o aviltamento das remunerações dos empregados, o artefato explosivo inclui a demanda por aumentos a funcionários públicos, trabalhadores em empresas privadas e prestadores de serviço informais, contida pela austeridade seletiva do governo e pela resistência dos empresários em mudar um esquema de ganhos que tem por base, precisamente, a redução dos gastos com salários.

Em mais uma demonstração de que é capaz de tudo para manter o cargo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, que no início considerou a proposta uma “PEC Camicase”, por significar suicídio fiscal do governo, mudou de ideia e na véspera da votação na Câmara disse tratar-se de “um exercício de responsabilidade fiscal”. O exercício referido inclui, estranhamente, a aprovação, na PEC, da decretação do estado de emergência, que permite quebrar o teto de gastos, sempre defendido pelo ministro como uma fortaleza inviolável da austeridade.

A PEC eleva o Auxílio Brasil de 400 para 600 reais até o fim do ano, dobra o vale gás, cria auxílios financeiros para caminhoneiros e taxistas, estabelece o transporte coletivo gratuito para idosos e reforça o programa Alimenta Brasil. Mesmo após o aumento, o Auxílio Brasil só é suficiente para comprar uma cesta básica em João Pessoa, Salvador e Aracaju, entre as 26 capitais de estados, mais o Distrito Federal. Acrescentam-se aos benefícios a diminuição do preço da gasolina, resultado da redução da tributação determinada pelo governo e o aumento do emprego há nove meses, um efeito do abrandamento das medidas de controle da pandemia.

O efeito imediato da PEC não compensa o profundo impacto da crise econômica e o desmonte das relações trabalhistas

A tentativa da PEC, de virar o jogo eleitoral em favor do governo ou, ao menos, de adiar a decisão para o segundo turno, talvez tenha chegado tarde. O aumento da aprovação de Bolsonaro para 37% em dezembro de 2020, um recorde, ocorreu cinco meses após o início da distribuição do auxílio emergencial de 600 reais na pandemia. O contexto era outro, o que dificulta comparações de efeitos, mas é preciso considerar que o valor real de um auxílio de 600 reais hoje é inferior àquele de 18 meses atrás por causa da inflação, de cerca de 21% desde o início da pandemia. Para manter o mesmo poder aquisitivo de 2020, o Auxílio Brasil precisaria ser elevado de 400 para 725 reais.

Criado para ofuscar o Bolsa Família, o auxílio tem defeitos graves que limitam a sua eficácia, apontam vários técnicos e economistas. Esses mesmos defeitos, cabe acrescentar, atrapalham o seu uso eleitoral pelo governo. Os critérios do Bolsa Família, de atribuição de valores por família baseados na estrutura demográfica e de geração de renda, foram substituídos, no programa de Bolsonaro, pela simples distribuição uniforme de 400 reais, no início, e de 600 reais a partir da aprovação da PEC. Esse não é o único problema. A atualização dos dados cadastrais das famílias vulneráveis é extremamente baixa, o que impede a checagem ágil da elegibilidade. Tais defeitos constitutivos impedem o programa bolsonarista de acompanhar, com a velocidade necessária, a extrema oscilação da renda do trabalho das famílias vulneráveis. “Os efeitos das medidas sobre a massa de rendimentos existem, mas são em geral pequenos, modestos, passageiros, de curtíssimo prazo, e muito seletivos, mirando em categorias profissionais específicas entre as quais o governo busca manter o apoio em torno da sua candidatura. Mas de forma alguma compensam o profundo impacto que a crise econômica e o desmonte das relações trabalhistas e do mercado de trabalho produziram na renda dos trabalhadores em geral”, afirma o economista Guilherme Mello, professor do Instituto de Economia da Unicamp.

“As medidas compensatórias são atabalhoadas, sem usar a expertise acumulada na gestão das políticas de renda e em atender a enorme demanda social. Foram tomadas apenas para garantir a ida de Bolsonaro ao segundo turno. Elas atenuam por poucos meses os problemas de renda e inflação para uma parcela dos que vivem na vulnerabilidade, mas há cerca de 20 milhões que receberam o Auxílio Emergencial e que não estão incluídos nas medidas”, sublinha Clemente Ganz Lúcio, assessor do Fórum das Centrais Sindicais e ex-diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, Dieese. Não há, diz, projeto de futuro para essas medidas, e esse problema do efeito da inflação na queda da renda do trabalhador e do alto custo de vida “precarizam o mundo do trabalho, aumentam a pobreza e a insegurança alimentar”.

Ganhos e perdas. O Congresso garantiu o aumento do piso salarial dos enfermeiros. A redução dos impostos mal alivia o reajuste do gás de cozinha – Imagem: Breno Esaki/SS/GOVDF e Redes sociais

Inúmeros dados escancaram um imenso arrocho salarial. O Dieese mostrou que 54% dos reajustes salariais das categorias com data-base em maio permaneceram abaixo da inflação e que 90% dos reajustes superiores ao INPC ficaram, no máximo, 0,5% acima desse índice. Na prática, ao lado de uma maioria com reajuste abaixo da inflação, quase metade recebeu apenas a variação da inflação, portanto obteve somente uma recomposição, sem qualquer aumento real. Além disso, se em 2018 apenas 9% das categorias não haviam conseguido aumento além da inflação, no ano passado o índice cresceu mais de cinco vezes, para 47%, apurou o Dieese. Em uma exceção no contexto de aperto das remunerações, a Câmara aprovou na terça-feira 12 a definição constitucional de um piso de 4,75 mil reais para os enfermeiros.

A maior parte dos funcionários públicos ganha mal e, de acordo com o Atlas do Estado Brasileiro do Ipea, está sem qualquer aumento salarial há mais de três anos. As perdas ocorridas no atual governo chegam a 30%, calculam o Dieese e a Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal. Bolsonaro será, segundo as entidades, o primeiro presidente, em 20 anos, a não conceder reajuste salarial para o funcionalismo.

O arrocho continuado da renda e a piora generalizada das condições de trabalho nos últimos três anos deixaram um rastro de escombros. Segundo uma pesquisa da FGV divulgada no fim de agosto, um total de 63 milhões de brasileiros obtiveram renda mensal inferior a 497 reais, ou meio salário mínimo, em 2021. Naquele mês, a cesta básica custava 650 reais. O aviltamento das condições de vida da população chama a atenção do mundo. De acordo com o relatório da ONU divulgado no começo do mês, a insegurança alimentar afeta mais de 61 milhões no País, que voltou a fazer parte do Mapa da Fome. Segundo a Fundação Getulio Vargas, é a primeira vez que a insegurança alimentar no Brasil ultrapassa a média mundial, depois de aumentar quatro vezes mais que a elevação média mundial de 2019 a 2021. O índice de mal-estar provocado pelo desemprego, empobrecimento, desigualdade, inflação e inadimplência, calculado pelo Instituto de Economia UFRJ, é o mais alto dos últimos dez anos, divulgou a instituição na segunda-feira 11. Em uma escala que começa em zero, na qual quanto mais perto de 1, maior a miséria, o Brasil quase bateu no teto, com o índice 0,95.

Os temores empresariais diante de qualquer perspectiva de se reduzir defasagens salariais foram resumidos pelo fundador da SPX Gestão de Recursos, Rogério Xavier, em declaração à imprensa de que “num eventual governo petista, a tendência é aumentar o salário mínimo e reajustar os proventos dos servidores públicos, ajustes que num primeiro momento trazem crescimento, mas deixam sequelas de mais inflação, aumento de gastos públicos e, consequentemente, de juros quando o modelo se esgotar”.

Caso a oposição vença as eleições, precisará de tempo para recompor as perdas salariais nos setores privado e público

Caso a oposição vença as eleições, precisará desarmar a bomba salarial. “Uma política muito importante é a retomada da valorização real do salário mínimo, ou seja, o salário mínimo voltar a crescer acima da inflação. O governo Bolsonaro será o primeiro governo, após FHC, a entregar um salário mínimo menor, em termos reais, do que era quando ele assumiu o governo”, destaca Mello. O salário mínimo é importante, diz, por ser uma espécie de farol para o conjunto de rendimentos do trabalho, inclusive do informal. O efeito imediato dos aumentos é sentido pelos trabalhadores formais, naqueles que recebem benefícios previdenciários e assistenciais vinculados ao salário mínimo, e isso corresponde a uma porcentagem bastante relevante da população, mas há ainda benefícios indiretos para os trabalhadores informais, além de impactos positivos na demanda da economia.

Além de começar a recuperação do salário mínimo, acrescenta Mello, o próximo governo terá de negociar com os servidores, principalmente com aqueles que tiveram maior perda acumulada e que têm salários mais baixos. “Para tudo isso acontecer, é preciso tempo. Não é possível resolver em um ou dois anos, há necessidade de um prazo para construir uma política de valorização e recuperação, seja do salário mínimo, seja dos profissionais do setor público”, ressalta o economista. Essa política, diz, precisa dialogar com um programa e uma estratégia de retomada do crescimento e do desenvolvimento econômico, que vai dar sustentabilidade ao processo de recuperação das rendas do trabalho. “Sem investimento, geração de emprego e fortalecimento de setores produtivos, dificilmente se conseguirá sustentar essa política”, ressalta.

“Um futuro governo precisará retomar a negociação com a representação dos trabalhadores do setor público e elaborar uma agenda para reconstruir o Estado, o papel dos servidores públicos nesse novo contexto e a gestão das condições de trabalho e salários. As severas restrições fiscais que o atual governo deixará exigirá a elaboração de uma abordagem geral de tratamento do Orçamento, incluindo a agenda da reforma fiscal, do investimento e do financiamento do Estado”, acrescenta Ganz Lúcio. Desafios não faltam. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Dique rachado”

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