Economia
Delicado equilíbrio
A nova gestão flexibiliza os preços, mas mantém atraente a remuneração dos acionistas


Em seis meses, a Petrobras conseguiu, tudo indica, equilibrar interesses que no governo anterior pareciam irreconciliáveis, o de abastecer o País com combustíveis a preços acessíveis e o de remunerar generosamente os acionistas. Há, contudo, quem não goste da situação, em especial os investidores que adquiriram as refinarias privatizadas e os importadores. Os últimos, cabe sublinhar, proliferaram apenas porque a companhia optou, desde 2016, pela dolarização dos preços dos derivados. A continuidade do equilíbrio obtido, condizente com a natureza de uma sociedade de economia mista controlada pela União, depende, no entanto, de um aumento substancial dos investimentos em prospecção, refino e transição energética, concordam economistas e fontes da própria empresa.
O lucro da Petrobras, assim como o das maiores competidoras internacionais, caiu no primeiro semestre, mas a distribuição de dividendos, apesar de inferior àquela da administração anterior, continua a ser a maior do mundo, um malabarismo só possível porque a estatal brasileira recolhe menos impostos do que deveria. O lucro recuou 47%, para 28,78 bilhões de reais, e a empresa diminuiu em 39% o pagamento de dividendos a acionistas, para 15 bilhões de reais. Anunciou também a recompra de 1 bilhão de dólares em ações, nos próximos 12 meses.
A companhia pagou aos detentores de ações mais do que as principais concorrentes
A causa principal da queda do lucro da Petrobras não tem a ver, contudo, com o desempenho específico da empresa, pois faz parte de um movimento do mercado e se deve à queda no preço do petróleo, que derrubou o lucro de quase todas as petrolíferas, ressalta o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp. O lucro da Shell caiu no primeiro trimestre deste ano, de 9,6 bilhões de dólares para 5 bilhões, e o da Exxon Mobil, de 11,4 bilhões para 7,8 bilhões. “Outro aspecto importante é que não são os acionistas que pressionam a empresa, mas outros agentes do mercado, com destaque para refinadores e importadores privados, que tentam atacar a empresa pelos resultados do trimestre.”
Ambos os grupos têm interesse em que a Petrobras volte a praticar a política vigente no governo anterior. “Os importadores, em particular, estão lascados, pois na medida em que o preço doméstico fica abaixo do preço internacional, eles passam a operar no negativo, quebram”, dispara Ruas. A situação dos refinadores é diferente, eles têm uma margem que pode ser comprimida. O problema de fundo, diz, é que em torno de 25% do diesel e 10% da gasolina são importados. A empresa aumentou as compras externas para, segundo o noticiário, formar um estoque de segurança e fazer frente a um aumento da demanda provocado pela prolongada defasagem de preços. “Se os importadores não quiserem importar e os refinadores privados começarem a reduzir a oferta, a Petrobras tem estoque de derivados para suprir o mercado doméstico e evitar que eles façam pressões na hipótese de um desabastecimento. Porque, se houver desabastecimento, virão para cima da Petrobras, não de um importador ou uma refinaria que não entrega”, aponta o professor da Facamp.
Alternativa. Redes de postos potiguares cogitam comprar combustível em Cabedelo – Imagem: Docas da Paraíba/GOVPB
O jogo armado para o segundo semestre, prossegue Ruas, é o da disputa entre os agentes privados e a Petrobras. Na medida em que a petroleira bancar essa aposta, precisa começar a aumentar a oferta. No curto prazo, significa importar com prejuízo e com isso o resultado pode piorar. “Ela não vai quebrar nem ter prejuízo, mas a gritaria vai aparecer do lado dos investidores.”
Os investidores não reclamam porque a Petrobras tem distribuído mais dividendos do que as concorrentes do mesmo nível, destaca o economista Saulo Abbouchedid, também professor na Facamp. A Exxon Mobil distribuiu 8 bilhões de dólares no segundo trimestre, sendo 3,7 bilhões em dividendos e 4,3 bilhões de recompra de ações. A Chevron fez uma distribuição de 7,2 bilhões, sendo 4,4 bilhões de dividendos e 2,8 bilhões de recompra. A Petrobras distribuiu 11 bilhões de dividendos e a companhia anunciou 1,4 bilhão de recompra de ações. “Os investidores ainda estão tranquilíssimos com a distribuição de dividendos. A recompra tem efeito parecido com o da distribuição de dividendos, pois aumenta o preço da ação”, complementa Ruas.
O presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, destacou em comentário sobre os resultados do primeiro semestre a geração operacional de caixa, de 10 bilhões de dólares. “É um resultado muito acima das empresas semelhantes. Empresas similares à Petrobras no mundo, como a Shell, a Exxon, a British Petroleum e a Total francesa, têm uma geração operacional de caixa que normalmente corresponde de 16% a 18% da receita bruta. A Petrobras está gerando caixa acima de 35% da receita bruta, mais do dobro das empresas similares”, ressalta Cláudio da Costa Oliveira, economista aposentado da companhia. “A causa principal dessa anormalidade é que a empresa é isenta do pagamento de participação especial na cessão onerosa, onde deveriam ocorrer as maiores taxações. Essa isenção tem de ser revogada imediatamente.”
A anomalia surgiu em 2010, durante um processo de capitalização da Petrobras, quando a União concedeu à empresa o direito de exploração de 5 bilhões de barris de petróleo no pré-sal da Bacia de Santos, em regime de partilha, com vigência de 40 anos. O processo ficou conhecido como cessão onerosa. Além do direito de exploração, foi concedida isenção do pagamento de “participação especial” na área da cessão onerosa. Não há nenhum motivo, argumenta Oliveira, para a isenção. Só no campo de Búzios, o maior do Brasil, dentro da cessão onerosa, no estado do Rio de Janeiro, deixou-se de arrecadar, neste segundo trimestre, perto de 1,2 bilhão de dólares de participação especial. “Metade dos recursos seria distribuída para um fundo social destinado à educação e saúde, e a outra metade para o estado do Rio de Janeiro. Da geração operacional de caixa da Petrobras neste segundo trimestre, de mais de 9 bilhões de dólares, cerca de 4 bilhões estão em exagero”, ressalta.
A privatização de refinarias tem provocado aumentos de preços além do razoável no Nordeste
A nova estratégia comercial da empresa destacada por Prates inclui maior maleabilidade dos preços dos derivados, em substituição à dolarização adotada nos governos Temer e Bolsonaro. Além de ser mais flexível do que a política do Preço de Paridade de Importação, a estratégia, que inclui a ampliação do uso da capacidade das refinarias para os atuais 93%, aumenta a competitividade dos preços, para desespero de refinarias privatizadas e importadores.
Um exemplo do problema das privatizações iniciadas em 2015 e ampliadas até o ano passado é a situação do abastecimento de derivados de petróleo refinados pela Refinaria Clara Camarão, no Rio Grande do Norte. A população desse estado, único autossuficiente em toda a gama de combustíveis, sofre com uma escalada de aumentos, a ponto de redes de postos de abastecimento cogitarem recorrer ao suprimento do terminal da Petrobras no porto paraibano de Cabedelo, a 198 quilômetros de Natal. A Refinaria Clara Camarão, da 3R Petroleum, que tem entre seus maiores acionistas os fundos BTG Pactual, WM Gestão de Recursos e BlackRock, decretou oito aumentos em menos de dois meses e é aquela que pratica o preço de gasolina mais elevado do País, de 3,20 reais o litro, segundo levantamento da Federação Única dos Petroleiros. Em segundo lugar vem a Refinaria da Amazônia (Ream), adquirida pelo Grupo Atem’s, com 3,06 reais o litro, e em terceiro a Rlam, da Bahia, arrematada pelo fundo Mubadala, dos Emirados Árabes, com 3,03 reais. A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte decidiu convidar a 3R Petroleum a dar explicações sobre os aumentos seguidos.
A Refinaria Clara Camarão foi privatizada, no apagar das luzes do governo Bolsonaro, pela metade do preço, segundo alguns cálculos, e ajudou a 3R Petroleum a se tornar a terceira maior produtora de petróleo do País, atrás da Petrobras e da Eneva. Hoje, contudo, é o caso mais eloquente do fracasso da tese privatista, contraditória em si, de que a formação de monopólios regionais no Norte e Nordeste resolveria o problema dos preços, politicamente manipulados, segundo essa concepção, pela Petrobras nos governos do PT. A crise reforça a possibilidade de reestatização de refinarias, agora para atender também a um eventual interesse dos novos proprietários em se livrar de um negócio que se mostrou inviável. Este seria, segundo alguns especialistas, o motivo subjacente à defesa, feita em maio pelo ministro Alexandre Silveira, de Minas e Energia, da recompra da refinaria da Bahia. •
Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Delicado equilíbrio ‘
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.