Economia

Déficits, dívidas e espaço fiscal

A margem para o aumento do gasto público, essencial para a retomada do crescimento, está mais restrita. Quais as alternativas?

O desafio é superar as restrições ao investimento público
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A grave crise que vitima a economia brasileira tem suscitado debates sobre qual seria o caminho da sua recuperação. Neste contexto, se identifica a existência de duas posições polares a respeito do papel do setor público na retomada e que tem subjacente uma discussão relativa à concepção sobre os limites da ação do Estado na economia capitalista e de suas articulações com o setor privado.

De um lado estão aqueles de postura liberal, para quem o Estado deveria reduzir substancialmente sua participação na economia, sobretudo via diminuição dos déficits e dívidas públicas, criando um clima de confiança para os investimentos privados. De outro, economistas de algumas correntes heterodoxas para os quais não apenas a ação exclusiva do setor público é essencial para a recuperação, como não estaria constrangida tout court pelo espaço fiscal existente, dado que os limites para realizar déficits e emitir dívidas seriam muito elásticos.

Este texto desenvolve uma tese alternativa: a de que, embora o gasto público seja essencial para a retomada, ele se encontra atualmente restringido pelo encurtamento, mas não pela inexistência, do espaço fiscal. Este último é entendido como o limite concreto, em cada conjuntura particular, para a realização de déficits e ampliação da dívida pública, sem alterar preços macroeconômicos-chave do sistema: taxas de câmbio e de juros.

Para além da operação convencional de uma economia capitalista, submetida a essa restrição, algumas características estruturais da economia brasileira, somadas à profunda crise atual, tornam esses limites mais estreitos, mas não inexistentes. Esses temas serão abordados a seguir em três dimensões: uma teórica, que trata da questão no âmbito do funcionamento de uma economia capitalista em geral, uma histórico-estrutural, que procura olhar a economia brasileira como periférica e emissora de moeda inconversível, portadora de um particular perfil de dívida pública concentrada no curto prazo, por fim, uma dimensão conjuntural, que parte da evolução recente dos déficits e das dívidas para delinear os limites impostos pelo espaço fiscal.

Numa economia hipotética na qual existem dois tipos de riqueza, títulos (securities) e moeda, a sua divisão em duas partes reflete não só a evolução histórica da economia, mas o estado da preferência pela liquidez. Esta existe por que o futuro é incerto e os detentores de riqueza têm opiniões voláteis, em cada momento do tempo, sobre como se comportará a taxa de juros no futuro. Para quem acha que os valores dos títulos vão cair e a taxa de juros aumentar (baixistas), a moeda é um refúgio seguro, para quem pensa que ela vai cair, os títulos são a opção escolhida (altistas).

Nos termos de John Maynard Keynes, aqueles que imaginam que a taxa de juros vai subir no futuro, os baixistas, preferem ficar líquidos no momento e comprar títulos no futuro, enquanto os altistas têm posição contrária. Em várias passagens da Teoria Geral, Keynes afirma que a emissão de moeda pode atenuar as expectativas baixistas sobre o futuro. Há, porém, momentos associados ao baixo patamar da taxa de juros (mas não exclusivamente), no qual esta preferência pela liquidez se manifesta de forma absoluta, ou com muita intensidade.

Em resumo, nem sempre a ampliação do estoque de moeda pela compra de títulos públicos de menor maturidade implicará em redução da taxa de juros longa. A exacerbação da preferência pela liquidez impede a arbitragem ao longo da curva de juros, promovendo o empoçamento da liquidez e sua não utilização para adquirir títulos mais longos.

É possível imaginar casos menos extremos do que o da preferência absoluta pela liquidez como determinantes da rigidez à baixa da taxa de juros, ou mesmo do seu aumento.  Se a incerteza se refere à trajetória futura da taxa de juros, situações como o rápido crescimento da dívida pública, mesmo secundada pela monetização posterior, podem levar a esta consequência, por uma exacerbação da posição baixista.

A moeda adicional pode simplesmente ser encaixada enquanto tal, devido a uma maior preferência pela liquidez decorrente da incerteza quanto à trajetória da dívida e da sua remuneração. Note-se que não é necessário haver desintermediação financeira ou fuga da dívida, muito menos da moeda; o ajuste se faz pelo aumento da taxa de juros.

Não há uma teoria para precisar se, quando e em qual magnitude a taxa de juros será alterada. Isto depende, na linguagem keynesiana, do estado das convenções. Contudo, na medida em que os mercados secundários geram uma nova taxa de juros, ela servirá de parâmetro para as emissões primárias, seja de dívidas do setor público, seja do setor privado. Se o setor público decidir não respeitar esse novo valor da taxa de juros, oriundo da negociação das suas dívidas no mercado secundário, ele se obrigará a monetizar a rolagem da dívida vincenda e os eventuais novos déficits.

Qual o destino dessa liquidez ampliada? Mesmo que este processo não implique, imediatamente, numa intensa fuga dos títulos públicos – com vendas massivas, quedas de preços e aumento de taxa de juros, ou mesmo fuga da moeda – ele levará a uma desvalorização significativa da dívida pública e da moeda. Até onde a dívida pública, enquanto parte da riqueza privada, possa ser substituída por ativos privados ou externos, o processo subsistirá à custa de uma ampliação da incerteza nos mercados financeiros e na economia.

Postos esses princípios mais gerais, cabe discutir como a questão se coloca para o caso brasileiro, levando em consideração duas especificidades: a inconversibilidade da moeda e o caráter de curto prazo da nossa dívida pública. A noção de inconversibilidade é complexa e multifacetada, mas para o nosso propósito basta assinalar que a nossa moeda não denomina contratos – comerciais ou financeiros – no âmbito global e muito menos constitui uma reserva de valor. Na hierarquia monetária internacional o real ocupa uma posição subordinada. Isto significa que os ativos nele denominados, tem que pagar um diferencial de taxa de juros ante os ativos de igual classe denominados em moedas mais fortes, sobretudo os emitidos na moeda reserva. Esta é uma condição sine qua non para que haja demanda por esses títulos do ponto de vista global.

A inconversibilidade monetária gera uma arbitragem particular entre a moeda inconversível e os títulos nela denominados – em especial os títulos públicos que são, no caso brasileiro, a principal e quase única forma de riqueza financeira – e as moedas conversíveis e os títulos de igual qualidade nela denominados. Há aqui dois determinantes principais para mover essa arbitragem: os ciclos de liquidez global, ou seja, mudanças nas taxas de juros nas moedas conversíveis (em particular na moeda reserva) e variações no prêmio de risco pago pelos nossos títulos soberanos nos mercados globais, o “risco-país”.

Deixando de lado o ciclo de liquidez internacional, completamente fora do nosso controle, e considerando apenas o risco-país, pode-se decompô-lo em duas partes: um risco de crédito associado à percepção do risco da dívida pública em moeda doméstica, e um risco cambial, ou de preço, associado às variações das condições de conversão da riqueza da moeda inconversível para a conversível. Este último está dissociado do risco do crédito e se refere apenas a uma eventual escassez de divisas e flutuação da taxa de câmbio.

O ponto a ser explorado é que um deslocamento da taxa de juros internacional ou do risco-país pode determinar operações de arbitragem. Assim, coeteris paribus, a arbitragem corresponde a uma espécie de preferência pela liquidez que se manifesta no plano da escolha entre moedas. Se ela aumenta, a taxa de juros doméstica terá que aumentar, ou deixar que essa preferência se manifeste o que redundaria em venda de reservas ou na alteração da taxa de câmbio. No primeiro caso, o efeito sobre a dívida líquida pode ser neutro, às custas da redução do ativo público em moeda forte, podendo conduzir à fragilização cambial.

O deslocamento do risco-país pode ocorrer tanto por razões relativas ao balanço de pagamentos e a expectativa de escassez de divisas, quanto pela percepção de deterioração do risco de crédito da dívida pública. Assim, a intensidade das variações dependerá das expectativas dos detentores de títulos relativamente à deterioração da posição cambial e/ou fiscal.

Olhando a rolagem da dívida em termos estritamente doméstico, a especificidade da dívida pública brasileira estaria no seu caráter predominantemente de curto prazo. Isto tem importante implicações. Numa economia com dívida pública distribuída ao longo de vários vencimentos, inclusive de longo prazo, a manifestação da preferência pela liquidez baixista supõe um risco para os detentores de títulos e a possibilidade de perda de capital, dependendo do aumento da taxa de juros. Esse ganho ou perda de capital depende da diferença entre a perda de rendimentos dos títulos vendidos vis a vis o ganho de rendimentos dos títulos com a nova taxa de juros.

No caso brasileiro, como a maior parcela da dívida gira no curto prazo, parte inclusive indexada à taxa do overnight, as perdas de rendimento, quando se exerce a preferência pela liquidez, são mínimas. Na prática, isto faz com que a rolagem da dívida pública vire uma aposta polarizada para o aumento da taxa de juros.

À luz desses marcos gerais cabe discutir o espaço fiscal na atual conjuntura da economia brasileira. O primeiro ponto a destacar é que os dois conceitos de dívida (bruta e líquida), cuja trajetória era declinante até o primeiro trimestre de 2014, passam a subir rapidamente desde então. A dívida bruta cresce vinte pontos percentuais, entre março de 2014 e março de 2017, passando de 52% do PIB para 72% do PIB e a líquida, dezoito pontos percentuais indo de 30% do PIB para 48% do PIB no mesmo período. O fator primordial do impulso das dívidas foi o déficit nominal com crescimento de oito pontos percentuais, evoluindo de 3% do PIB para 11% do PIB e declinando levemente, desde meados de 2016. O mais importante, todavia, é que o déficit nominal é comandado pelos juros e pela desvalorização cambial, com o déficit primário desempenhado um papel menor no seu crescimento: seu valor, no pico, foi de aproximadamente 2,5% do PIB, o que representou apenas um quarto do déficit nominal.

Voltando aos termos da discussão inicial, constata-se que a dupla preferência pela liquidez está na base do crescimento dessas dívidas e se expressa na desvalorização cambial, traduzida no custo dos swaps e na carga de juros. Embora se possa admitir uma certa simpatia do Banco Central para como os detentores da dívida, não cabe desconhecer o aumento da incerteza e da preferência pela liquidez que passa a se manifestar a partir de 2014. Assim, por exemplo, o risco país, medido pelo CDS de 5 anos, vai de cerca de 130 pontos em meados de 2014 para cerca de 500 pontos no primeiro trimestre de 2016.  Dada a inconversibilidade da moeda e a liquidez da dívida pública, a opção de elevar a taxa de juros, diante da intensa desvalorização cambial, era inexorável. Pode-se questionar, todavia, a sua magnitude, já que a taxa doméstica foi mantida significativamente acima do rendimento total dos títulos soberanos equivalentes durante o período.

Do ponto de vista do espaço fiscal, a discussão inicia pela possibilidade de aproximação da taxa de juros interna à externa. A despeito de essa última ter se reduzido nos meses recentes, ainda há espaço para sua queda, em razão da magnitude da taxa de juros doméstica da dívida pública vis a vis a taxa externa. Num primeiro momento, este ganho de redução da carga de juros não deveria ser utilizado para reduzir o déficit nominal, mas para ampliar o déficit primário. Esta parece ser uma das únicas alternativas para estimular, via gasto público, a recuperação da renda e evitar um declínio mais acentuado do PIB. A composição desse gasto tem que privilegiar aqueles de maior multiplicador, como investimentos e transferências aos mais vulneráveis.

Muito provavelmente o aumento do déficit primário não será suficiente para estimular isoladamente a economia, dada a magnitude da recessão atual. Isto cria uma dificuldade, pois o déficit nominal estará rodando na faixa dos 8,5% do PIB ao final do ano, fazendo a dívida, já na faixa dos 70%, continuar crescendo a uma velocidade significativa. Para evitar acelerar ainda mais o aumento desta última, despertando a desconfiança dos investidores e o deslocamento da preferência pela liquidez, a alternativa estaria em buscar estímulos provenientes do setor público para o setor privado, sem alterar a trajetória já pressionada da dívida pública. Nos termos da proposta desenvolvida em artigo anterior (O Colchão do Crescimento), isto poderia vir da utilização do excedente de reservas internacionais, para criar um fundo de investimento em infraestrutura. Isto mudaria a composição do ativo do setor público, sem afetar o montante das dívidas e ademais, reduziria a carga de juros e o déficit nominal.

Diante da forma de operação das economias capitalistas, das especificidades de uma economia periférica e da conjuntura brasileira atual, este nos parece um caminho para colocar o setor público como ator central da recuperação, mas que admite uma restrição relativa, advinda do espaço fiscal. Para aqueles ortodoxos e heterodoxos descrentes da pertinência ou eficácia da proposta, só nos resta afirmar: a prova do pudim é comê-lo.

* Professores do Instituto de Economia da Unicamp

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