Economia

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De volta às confissões

A economia é uma ciência moral. Ela nos ensina que não somos deuses, mas humanos, prisioneiros da incerteza

De volta às confissões
De volta às confissões
Lições cinematográficas. A reunião dos ministros das Finanças no filme As Confissões e o frade que desafiou uma poderosa de Wall Street: “Temos ideias diferentes a respeito da civilização” - Imagem: Mares Filmes
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Há tempos, em colaboração com Gabriel Galípolo, perpetramos a ousadia de uma crítica de cinema na coluna que CartaCapital nos concede. No espartilho de nossas limitadas capacidades, ousamos resenhar As Confissões, filme dirigido por Roberto Andò. O filme apresenta o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, Daniel Roché, personagem encarnado pelo ator francês Daniel Auteuil. Na data de seu aniversário, Roché marca uma reunião com os ministros das Finanças dos oito países mais poderosos do planeta em um luxuoso hotel na Alemanha. Estão também no rol dos convidados uma escritora de livros infantis, um músico e… um monge trapista.

Diante dos desencontros, enganos e desenganos das teorias econômicas e de ­suas desastradas recomendações de políticas, confesso que tomei mais inspiração da obra do cineasta italiano que dos ­tró-ló-lós dos “cientistas” da crematística.

Na abertura do jantar de aniversário, o diretor-gerente lembra John Maynard Keynes: a economia é uma ciência moral. Ela nos ensina que não somos deuses, mas humanos, prisioneiros da incerteza, das expectativas e, por isso, não conseguimos compreender todas as consequências de nossas ações.

No capítulo XII da Teoria Geral – Expectativas de Longo Prazo escreveu ­Maynard Keynes: “O nosso conhecimento dos fatores que governarão o rendimento de um investimento alguns anos mais tarde é, em geral, muito limitado e, com frequência, desdenhável. Para falar com franqueza, temos de admitir que as bases de nosso conhecimento para calcular o rendimento provável, nos próximos dez ou mesmo cinco anos, de uma estrada de ferro, uma mina de cobre, uma fábrica de tecidos, um produto farmacêutico patenteado, uma linha transatlântica de navios ou um imóvel na City de Londres se reduzem a bem pouco e às vezes a nada”.

Keynes introduziu na teoria econômica as relações complexas entre estrutura e ação humana

No mesmo capítulo XII, os concursos de beleza promovidos pelos jornais servem de exemplo para descrever a formação de convenções nos mercados de ativos. Os leitores são instados a escolher os seis rostos mais bonitos entre uma centena de fotografias. O prêmio será entregue àquela cuja escolha esteja mais próxima da média das opiniões. Não se trata, portanto, de apontar o rosto mais bonito na opinião de cada um dos participantes, mas de escolher o rosto que mais se aproxima da opinião dos demais. Keynes, desse modo, introduz na teoria econômica as relações complexas entre estrutura e ação humana. Na esteira de Freud, ele cuida das configurações subjetivas produzidas pelas interações entre grupos sociais e seus indivíduos. Estão aí implícitos os processos de individuação mediados pelo objetivo da produção capitalista – a acumulação de riqueza monetária. A busca da diferenciação pelo maior ganho monetário torna todos iguais.

Nos Rougon-Macquart, Émile Zola antecipou-se a Keynes ao apresentar a família como um pequeno grupo que, à primeira vista, parece profundamente diferente entre si, mas a observação cuidadosa os revela intimamente iguais, ligados uns aos outros. No L’Argent, Zola abre a narrativa com a visita de Saccard à Bolsa de Paris. Saccard tinha à sua frente o celebrado Amadieu, que a Bolsa reverenciava, desde o famoso golpe das Minas de Selsis. Quando os títulos caíram para 15 francos, e cada comprador era considerado um louco, Amadieu colocou no negócio a sua fortuna, 200 mil francos, aleatoriamente, sem cálculo ou talento, por uma teimosia de sortudo. Quando a descoberta dos veios de ouro da mina fez com que os títulos ultrapassassem o preço de mil francos, ele ganhou cerca de 15 milhões. E sua operação tola, que deveria tê-lo aprisionado à indiferença, agora o elevou à condição de admirado cérebro financeiro.

Voltemos ao filme. Após a exposição de Roché, os ministros se entreolham, abalados em suas certezas. Certezas que entrariam em pânico depois de uma longa confissão de Roché ao monge. À confissão seguiu-se a morte do diretor-executivo, sufocado em um saco de plástico. Ao pânico sucede-se a suspeita. O monge, perigosíssimo suspeito, poderia saber do plano final, elaborado para terminar com todos os planos e impor a supremacia do saber econômico sobre a vida dos humanos de carne e osso. Pressionado, ameaçado, o monge resiste.

Depois do provável suicídio, são cada vez mais frequentes as reuniões entre os senhores das finanças, na tentativa de espantar os temores da revelação de um plano terrível para ajustar as economias depois da crise financeira de 2008. Em um dos conclaves, a ministra do Canadá narra as conversas que manteve com Roché à vespera de sua morte. O diretor- executivo do FMI teria dito: “Estamos privando o mundo da esperança. O mínimo que podemos fazer é dar ilusões em troca”.

No embalo das ilusões, Roché contou uma piada à ministra:

“Um homem precisa de um transplante de coração. O médico diz: ‘Posso lhe dar o coração de uma criança de 5 anos’”.

O paciente recusa. “Jovem demais”.

O médico reflete e diz: “Que tal o coração de um gerente de Hedge Fund de 40 anos?”

“Não, obrigado, ele não tem coração.”

“E o coração de um diretor de Banco Central de 60 anos?”

“Eu aceito!”

“Por quê?”

“Porque nunca foi usado.”

Nas cenas finais, o frade é submetido a uma teleconferência para sofrer os vitupérios de uma dama, Senhora do Universo de Wall Street. “O senhor é uma ameaça à civilização.” Mansamente, o religioso retruca: “Temos ideias diferentes a respeito da civilização”.

Avant la lettre. Zola decifrou o “gênio” do mercado – Imagem: Acervo do Museu de Arte de Los Angeles

No Fausto, Goethe simula o diálogo entre Mefistófeles e o Bobo para apresentar a magia da criação do dinheiro.

O CHANCELER (lê): Que saiba todo aquele que o desejar: Esta tira de papel tem o valor de mil coroas. Fica-lhe assegurada, como lastro certo, a infinidade de bens enterrados no império. Tomou-se providência para que o rico tesouro, tão logo extraído, sirva como resgate.

O BOBO (pergunta, enquanto contempla um “papelucho”): Veja só, isto aqui vale dinheiro?

MEFISTÓFELES: Com isso consegues o que goela e pança desejarem.

O BOBO: E posso comprar terras, casa e gado?

MEFISTÓFELES: É claro! Faze uma oferta e não falharás.

O BOBO: E castelo, com mata e reserva de caça e riacho piscoso?

MEFISTÓFELES (zombeteiro): Acredita! Quero ver-te ainda como senhor bem situado!

O BOBO: Hoje à noite esbaldo-me em propriedades!

MEFISTÓFELES (para si mesmo, em aprovação): E quem duvida ainda da esperteza do nosso Bobo?

O Bobo – como de costume, o único que tem algum juízo.

Os defensores da estabilidade financeira pensam que o corpo social e a matemática pertencem à mesma esfera

A segunda parte de Fausto traz a afirmação explícita de que a riqueza tem sua fonte não apenas no trabalho, cuja importância não pode, claro, ser negada, mas também na magia – uma magia que cria valores excedentes inexplicáveis pelo esforço humano. O ponto de partida do processo alquímico em Fausto é o plano de criar papel-moeda, que Mefistófeles submete ao Imperador (em nome de Fausto) para libertá-lo de suas dificuldades financeiras. É um projeto para emitir notas de dinheiro que serão lastreadas pelos recursos em ouro enterrados, legalizadas pela assinatura do Imperador. O plano dá certo: todos se dispõem a aceitar notas como dinheiro, e o Imperador livra-se de suas dívidas. A criação do dinheiro é explicitamente chamada de “química”, outra expressão para “alquimia”. A alquimia do dinheiro é o enigma mais enigmático da chamada ­Teoria Econômica, outrora chamada Economia Política. Em torno desse mefistofélico quebra-cabeça, os economistas batem as testas nos muros da incompreensão.

Diz bem o filósofo Franco Bifo Berardi: os enunciados dos praticantes da sabedoria econômica são, na realidade, enunciados performativos, comunicações sociais submetidas às formas tecnolinguísticas da economia. “A ciência e a epistemologia contemporâneas estão em conflito com a metodologia reducionista da economia. A fé no ‘equilíbrio financeiro’ imposta às populações tem como base um mal-entendido filosófico: os defensores da estabilidade financeira pensam que o corpo social e a matemática pertencem à mesma esfera. Eles estão errados, uma vez que a realidade não é matemática e que a matemática não é a lei da realidade, mas apenas uma linguagem cuja consistência não se relaciona de maneira alguma com a consistência multifacetada da vida.”

Vale recordar as observações de Einstein a respeito da tentativa de Schroedinger de formular um modelo que teria superado a Teoria da Relatividade: “A última tentativa do professor Schroedinger deve ser julgada apenas por suas qualidades matemáticas, mas não do ponto de vista da ‘verdade’ e congruência com os fatos da experiência”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De volta às confissões”

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