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De olho no retrovisor

Hegemônica, a visão liberal-financista é ultrapassada e sabota o futuro do País, alerta Rafael Lucchesi

De olho no retrovisor
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“Por que temos um spread bancário de 27% e no Peru é de apenas 7%?” – Imagem: Gilberto Sousa/CNI
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O setor rural paga pouco imposto e representa fatia pequena do PIB, mas tem força no Congresso e recebe muito subsídio anual. Os bancos e o “mercado” controlam um caminhão de dinheiro e o debate na mídia. E a indústria, locomotiva do Brasil no passado e da China no presente? Representante do setor, a CNI acaba de lançar uma espécie de manifesto a favor de políticas industriais, tema da moda no mundo, conforme o FMI. Bandeira difícil de tremular, dada a hegemonia da visão liberal-financista. Superar um modelo que levou o País ao “fracasso” é uma necessidade, segundo Rafael Lucchesi, diretor de Desenvolvimento Industrial da CNI e presidente do conselho de administração do BNDES. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao repórter André Barrocal. A íntegra, em vídeo, está disponível no canal de CartaCapital no YouTube.

Por que política industrial

O Brasil está no momento de fazer escolhas de futuro. Temos três mudanças acontecendo no mundo. A primeira é a ascensão de um novo paradigma técnico-econômico: a economia digital. A segunda são os extremos climáticos, a transição ecológica, a transição energética. Após 200 anos de Revolução Industrial, pagamos a conta das interferências humanas no meio ambiente. A terceira é na geopolítica. A ascensão da China criou enorme pressão sobre os EUA. A Guerra da Ucrânia e o que acontece na Faixa de Gaza, que não dá para dizer que é uma guerra, pois só tem um exército atuando sobre uma população civil, mostram uma situação dramática e um desacoplamento do Ocidente com relação ao Oriente, especialmente dos EUA em relação à China. Contabilizamos em torno de 12 trilhões de dólares em políticas industriais explícitas no mundo.

Onda protecionista

O Ocidente percebeu que precisava reagir ao offshore, a lógica liberal que fez da China a grande manufatura. Quando Deng Xiaoping visitou Jimmy ­Carter nos EUA, em 1979, o PIB da China era 1% do PIB dos EUA. Em 2000, era 12% e, hoje, é 70%. Os EUA se sentem ameaçados em sua liderança geopolítica. Fazem ajustes rápidos e sem coloração ideológica, é pragmatismo. Os atos são bipartidários. Começam com Obama, seguem com Trump e se aprofundam com Biden, mais de 2,5 trilhões de dólares em reindustrialização. A União Europeia não fica atrás, mobiliza recursos com o Green Deal. Japão, Coreia do Sul e, obviamente, a China participam também. Há uma agenda clara de política industrial no mundo. Os emergentes ficam em situação difícil, sobretudo se olharem pelo retrovisor.

“A China está onde está porque não adotou o Consenso de Washington”, avalia diretor da CNI

Consenso de Washington

Dos anos 1930 até o fim dos 1970, o Brasil foi o país que mais cresceu. Como? Substituição de importação, impulsionada pela industrialização. É desonestidade intelectual dizer que política industrial significa ideias velhas que não funcionam. A indústria brasileira, em 1980, era maior que a chinesa e a sul-coreana somadas. E o que aconteceu a partir dali? Com o default da dívida externa, entramos nos programas do FMI, muito conservadores. Vem o período de hiperinflação até o Plano Real, quando aderimos ao Consenso de ­Washington, modelo de ajuste para economias latino-americanas e do Leste Europeu. Liberalização, financeirização, privatização. O Brasil foi o que mais perdeu complexidade produtiva. O desemprego cresceu, as taxas de crescimento foram muito baixas, tivemos desindustrialização precoce e massiva, sobretudo a partir de 2014. Esse modelo não deu certo em nenhum lugar. A China está onde está exatamente porque não adotou o Consenso.

Mídia e “mercado”

Há grupos de interesse que hoje lideram e dominam a agenda de política pública. Quando foi lançado o programa Nova Indústria Brasil, saíram editoriais nos principais veículos falando sobre o custo fiscal, o risco fiscal, com informações absolutamente incorretas. Os EUA têm uma dívida pública maior, do ponto de vista da relação com o PIB, assim como qualquer europeu e o Japão, onde se aproxima de 300%. Não é razoável que a dívida pública brasileira, de 70%, 80% do PIB, seja uma ameaça tão grande. E o grande debate em todos os noticiários fala de problema fiscal, de reduzir o gasto previdenciário ou o tamanho do Estado. Ninguém fala que o Brasil gasta muito pagando os juros da dívida para que, assim, super-ricos paguem pouco imposto e ajudem menos o País a se desenvolver. O Congresso, a sociedade e os meios de comunicação precisam fazer um debate atualizado.

Juros e concentração bancária

A Selic está em 10,5% e a taxa de juros de equilíbrio do próprio Banco Central é de 4,5%. Essa diferença entre uma e outra é o quanto você tem de taxa restritiva. Vai ter menos emprego, menos renda, menos desenvolvimento. Há uma vontade permanente, e dos veículos de comunicação que noticiam muito o interesse desse grupo organizado, de criar instabilidade. Há um controle dessa narrativa por aquelas pessoas que se beneficiam, que são os super-ricos e os bancos. Por que temos um spread bancário de 27% e no Peru é de 7%? A concentração bancária é uma grande explicação. Os bancos brasileiros são os mais lucrativos do mundo e são “desfuncionais”. As empresas e as famílias empobrecem para termos bancos extremamente lucrativos. Precisamos resolver esse problema.

Taxar compras até 50 dólares

Em 2009, o volume de remessas postais era de 9 milhões de volumes. Para este ano, a previsão é de 230 milhões. A origem disso é a legislação sobre remessa postal, de pessoa para pessoa, normalmente familiares que estão no estrangeiro mandando mercadorias para brasileiros. Criou-se uma fraude a partir disso, que não foi coibida pela Receita Federal. Essa fraude é um crime. O Brasil naturalizou uma fraude e um crime como se fosse um direito. E note bem: quem consome mais esses produtos (vendidos por sites através de remessa postal) são pessoas que ganham mais de cinco salários mínimos. E os mais impactados? Como essas atividades econômicas, de vestuá­rio, de calçados, são indústrias intensivas em mão de obra, a maior parte dos trabalhadores dessas indústrias ganha de um a dois salários mínimos. Essas empresas estão sendo destruídas por uma injustiça tributária. Há uma discussão muito rebaixada comandada por redes sociais e fake news. •

Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De olho no retrovisor’

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