Economia
De olho no mercado continental, startups latinas invadem o Brasil
Empresas como Kavak, RecargaPay e Decolar são atraídas também pelas similaridades com seus mercados nacionais. E por um ambiente de negócios e regulatório mais favorável à tecnologia e à inovação


Bem depois da chegada das pioneiras e hoje bilionárias Mercado Livre (67,7 bilhões de dólares), argentina, em 1999, Nuvemshopp (3,5 bilhões de dólares), também argentina, em 2015, e Rappi (3,5 bilhões de dólares), colombiana, em 2017, uma flotilha de startups latino-americanas aproveita a maré alta dos financiamentos via fundos de venture capital para desembarcar nos mercados brasileiros. Elas são atraídas basicamente pelas dimensões continentais do País e pelas similaridades com seus mercados nacionais, tanto quanto por um ambiente de negócios e regulatório mais favorável à tecnologia e à inovação.
Um breve levantamento da consultoria KPMG mostrou que 14 startups latino-americanas com presença ou entrada recente no Brasil realizaram captações de recursos entre 2019 e 2021: as argentinas Digital House, Agrofy, Despegar (Decolar) e RecargaPay, as mexicanas Merama, Clara, Grow Mobility (Grin Scooters), Kavak, Bitso, Incode e Casai, a colombiana Adelante/Addi, a chilena Notco e a uruguaia DLocal. Sem falar no mega-IPO do colombiano Nubank. “Qualquer empresa que queira realmente crescer na América Latina precisa estar no Brasil”, afirma Roger Laughlin, CEO da Kavak Brasil. “A expansão da Kavak para Argentina e Brasil nos permite competir em um mercado estimado em 180 bilhões de dólares. México, Argentina e Brasil são responsáveis por cerca de 70% do mercado regional de venda de carros usados.”
Em outubro passado, a Kavak superou a marca de mil carros vendidos por mês no Brasil, número que demorou quatro anos para alcançar na matriz mexicana. Segundo Laughlin, a Kavak passou os últimos anos a aperfeiçoar o modelo no México e na Argentina, e no mercado brasileiro tem caminhado para implementar um cenário mais ágil e menos burocrático em termos de emissão de documentos e regulação, com algumas propostas que visam facilitar os procedimentos de transferência. “Ainda sim”, diz o executivo, “há mais similaridades que diferenças”, sobretudo a negociação entre pessoas físicas, de muita informalidade e risco de fraudes. Daí sua proposta de “revolucionar” mercados cuja estrutura permanece a mesma há meio século, com uma solução calcada na segurança e rapidez do processo.
Laughlin, da Kavak: “Qualquer empresa que queira realmente crescer na América Latina precisa estar no Brasil”
A estratégia de atuar no segmento de carros seminovos e usados no Brasil e mirar outros mercados emergentes, que também sofrem com os mesmos problemas, conjuga com a proposta do SoftBank de investir em startups com muita tecnologia “embarcada” para serem escaláveis e resolver um problema que possa ser replicado em escala global. O conglomerado japonês constituiu um fundo dedicado à América Latina, em 2019, com patrimônio de 5 bilhões de dólares, motivado por considerar os problemas históricos de infraestrutura, consumidores mal atendidos e desafios praticamente seculares da América Latina, “uma grande oportunidade de investimento que nunca foi aproveitada por um fundo de investimentos que se especializasse na região”, segundo nota enviada a CartaCapital. No ano passado, reportou um retorno de 4,5 bilhões de dólares sobre investimentos de 3,5 bilhões, o que levou o SoftBank a aportar mais 3 bilhões, totalizando um patrimônio de 8 bilhões de dólares.
Fundos de venture capital têm se firmado como um instrumento-padrão de financiamento. Entre 2010 e 2021, seu valor global acumulado cresceu 14 vezes, de 48,6 bilhões de dólares para mais de 670 bilhões, ou de uma média de 5 milhões para 17 milhões de dólares por negócio, segundo a empresa de software e dados financeiros PitchBook Data. O sócio de captação de Equity da consultoria KPMG, Rodrigo Guedes, observa que a capacidade do Brasil de criar startups e, com isso, atrair capital dos fundos VC é outro diferencial que magnetiza as empresas nascentes argentinas, colombianas, chilenas e até mexicanas. “Só para ter uma ideia, o México recebeu 3,5 bilhões de dólares em 2021, menos da metade dos 8,2 bilhões investidos no Brasil”, salienta Guedes, explicando que isso é fruto da maturidade do ecossistema de startups do País, decorrente do incentivo ao empreendedorismo por entes governamentais e entidades empresariais. O analista cita os serviços eletrônicos públicos – o e-government, que tem crescido demais e ajuda muito as startups –, as novas leis para os Microempreendedores Individuais, o Programa de Apoio à Micro e Pequena Empresa – Pronampe, as iniciativas do BNDES de apoio ao universo de startups que prestem serviços a pequenas e médias empresas, a desburocratização de forma geral, facilidade de abrir e fechar empresas. “Tudo isso cria um ambiente regulatório, competitivo, cada vez mais eficiente”, frisa.
“O Brasil tem se destacado na região como um país avançado na questão regulatória, chegando até a se tornar referência para os nossos vizinhos”, acrescenta Diego Perez, presidente da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), citando a série de mudanças para democratizar o acesso e ampliar a concorrência no sistema financeiro, que culmina com o Open Banking e o Pix. O CEO da N5, uma plataforma de software para digitalização de negócios financeiros, o argentino Julián Colombo, assina embaixo: “O Brasil é um dos mais dinâmicos do mundo, com inovação em nível mundial, reguladores modernos e enorme disponibilidade de talentos”.
Ao lembrar que muitos desses empreendedores latino-americanos vêm para o Brasil atrás do universo de algo como 6 milhões de pequenas e médias empresas, o sócio da KPMG é otimista com as perspectivas de investimentos para o ano “desafiador” de 2022, com eleições, inflação e juros altos. “Eles têm poder de fogo e têm apetite. Basta ver o que aconteceu no último trimestre, quando foram investidos 2,7 bilhões de dólares, só abaixo dos 3,1 bilhões do terceiro trimestre. E seguem com apetite, porque o nosso ecossistema está se desenvolvendo bastante, as empresas, num cenário difícil, vão demandar soluções mais baratas e ágeis. Vão querer investir menos em suas infraestruturas e recorrer mais à prestação de serviços de tecnologia.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Soy loco por ti “
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