Economia
Curto-circuito
Trinta anos depois da primeira privatização, o setor elétrico acumula poucos êxitos e muitas frustrações


Em julho de 1995, a Escelsa, empresa de energia do Espírito Santo, foi vendida a um consórcio privado liderado pela estatal portuguesa EDP. O leilão foi o pontapé da ampla abertura do setor elétrico planejada pelo governo Fernando Henrique Cardoso que desaguaria no racionamento de 2001 e enterraria o projeto de 20 anos de poder do PSDB. Desde então, sucessivas administrações federais, quatro delas do PT, fora o segundo mandato interrompido de Dilma Rousseff, foram incapazes de reorganizar o sistema, antes estável, barato e integrado. Em vez de discutir uma solução definitiva, o País optou por viver de emendas em emendas regulatórias, cujo único resultado é piorar o soneto.
Diante de um Congresso cada vez mais insensível às medidas técnicas, o sistema caminha rumo ao agravamento de seus defeitos. Os parlamentares defendem, e aprovam, a energia eólica offshore, muito mais cara, termoelétrica a carvão e usina a gás onde não há nem gasoduto. As medidas aumentam a disfuncionalidade da economia brasileira, que precisa de energia confiável e barata, caso queira se reindustrializar, ocupar um espaço mais robusto no cenário internacional do que o que tem hoje e garantir o bem-estar da população. Por essas e outras iniciativas descoladas do interesse público e mesmo da lógica, a promessa de maior competição, tarifas mais baixas e melhor qualidade dos serviços se transformou em um pesadelo para o consumidor, com risco constante de racionamento, entraves ao crescimento do PIB, tarifas exorbitantes e lucros sem retorno social para as controladoras das companhias, punidas de forma branda quando descumprem os compromissos contratuais. “O sistema hoje é muito mais deficiente do que poderia, ambiental e economicamente”, afirma Ildo Sauer, vice-diretor do Instituto Energia e Ambiente da USP.
O sistema está menos confiável, diz Ildo Sauer
O setor, prossegue Sauer, perdeu a confiabilidade na transmissão e distribuição e virou uma plataforma de atração de valor por grupos e lobbies. Queimou dinheiro e poluiu o ambiente. O grande problema foi combinar a privatização com um modelo de preços e de alocação de risco que levou a um desequilíbrio contratual a favor dos compradores e um desestímulo aos investimentos. Quando o risco de falta de energia aumenta, o investidor está protegido pelo preço alto.
A questão de fundo que realmente influencia a tarifa ao consumidor são as cláusulas draconianas dos contratos de concessão dos serviços públicos de distribuição de energia elétrica, sublinha Heitor Scalambrini Costa, professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco, em artigo na plataforma especializada EcoDebate. Os contratos embasam os preços exorbitantes e a impunidade das empresas, por não cumprirem a prestação adequada e contínua do serviço na área de concessão, acrescenta Costa. Apresentadas como “juridicamente perfeitas”, as cláusulas garantem que não haja diminuição dos lucros das companhias. É o sonhado capitalismo sem risco, benéfico apenas para aqueles beneficiados com as privatizações.
Os técnicos do governo classificam o saldo da abertura e privatização como “uma coleção de falências”. O maior problema está na desestatização da geração de energia e no uso de uma lógica de mercado com decisões fragmentadas. Como se trata de um sistema de rede conectado pelo sistema de transmissão, o que garante a eficiência não é a gestão microeconômica, que, segundo o argumento neoliberal, seria muito melhor se realizada por um ente privado.
A matriz elétrica atual não é a mais eficiente nem mesmo do ponto de vista do próprio sistema. Há sobra de energia renovável não armazenável, eólica e solar, durante parte do dia e possibilidade de falta em momentos de pico de demanda, à noite, quando os ventos se tornam mais inconstantes, o sol se põe e as hidrelétricas têm pouca margem para compensar. Antes uma das mais baratas do mundo, a energia brasileira hoje figura entre as mais caras. A situação agravou-se com uma avalanche de subsídios que distorcem ainda mais a operação do setor. A pressão que o repasse da elevação das tarifas exerceu sobre a inflação nos últimos 25 anos foi enorme. Resultou em elevações superiores a 40% dos preços das carnes e a mais de 75% dos laticínios e do pão francês, aponta Fernando Garcia de Freitas, da Consultoria ExAnte, em artigo sobre o assunto. Segundo um estudo da Abrace, associação de grandes consumidores de energia, entre 2000 e 2024, a tarifa residencial subiu 401,4% e o custo do botijão de gás, 756%.
Leniência. Problemas de fornecimento como em São Paulo são levemente punidos – Imagem: Paulo Pinto/Agência Brasil
O pior não foi a privatização do controle dos ativos, mas a submissão do interesse público coletivo à lógica de valorização de curto prazo do setor, composto de numerosos lobbies com força suficiente para prorrogar seus privilégios, argumenta um técnico do governo. “A privatização da Eletrobras é o evento mais triste que poderia acontecer no setor”, queixa-se um especialista em energia atuante em um ministério. A tomada da gigante do setor pelo capital privado em uma desestatização altamente questionável provocou danos em série. A única maneira de ter energia barata é obrigar quem gera a vender por um preço que cubra seus custos e lhe dê uma remuneração razoável, mas não exorbitante. Isso só é possível caso exista uma empresa estatal que sirva de ponto de equilíbrio ao conjunto do sistema.
O setor privado nunca vai vender a energia segundo o raciocínio que coloca em primeiro lugar o interesse público. O caso europeu recente demonstra essa ponderação. Os donos de usinas mais competitivas jogaram os preços lá no teto quando veio a crise do gás russo. Ganharam uma fortuna. Tinha comprador para a energia cara. Então o que fez o gerador da opção renovável mais barata? Subiu o preço para um patamar equivalente àquele do gás escasso e caríssimo.
Outro problema da perda da Eletrobras para o setor privado e a submissão à lógica financeira, de maximização permanente do lucro para os acionistas controladores, é que se trata de uma empresa gigante, com capacidade de pesquisa, de financiamento e de investimento, dotada de um centro de pesquisa de excelência reconhecida. A tendência agora é a cúpula da companhia pensar apenas em distribuir o máximo de dividendos aos acionistas. O compromisso com o desenvolvimento do País e investimentos rumo a uma matriz mais equilibrada, em gerar energia e vendê-la por um preço justo passou ao segundo plano.
Entre 2000 e 2024, as tarifas residenciais ficaram 400% mais caras
“A abertura e privatização do setor foi talvez uma das decisões mais danosas ao bem-estar da população e à economia brasileira. O preço da energia poderia ser a metade do que é hoje, para o consumidor de pequeno e médio porte. Houve uma transferência brutal de custos e alocação de risco dos pequenos e médios consumidores para os grandes, via mercado livre. Escolhemos a trajetória errada, com usinas mais prejudiciais do que o necessário”, reforça Sauer.
A rede de transmissão e distribuição foi convertida em um conjunto de centros sem dinamismo, pois a forma de contratação está errada. O dono de uma rede não pode fazer melhorias porque é apenas operador do sistema. “A tal da neutralidade, o dogma de que teria competição pura e perfeita, da teoria neoclássica, que os neoliberais adotaram, nunca funcionou para isso nem para fazer inovação. Porque virou um mero investimento financeiro. A construção de uma rede de transmissão como a da Eletropaulo passa a ser, pelo padrão atual, uma simples opção financeira”, avalia o professor da USP.
Os incentivos estão, portanto, completamente equivocados, prossegue o especialista. A lógica é equivocada e o processo lento e gradual, que começou no fim dos anos 1980 com o governo Collor, consolidou-se e impôs-se no governo FHC e foi, em conceito e substância, mantido em todos os governos seguintes. Isso fez com que o Brasil reduzisse a confiabilidade da distribuição e transmissão de eletricidade, com preços, impacto ambiental e poluição muito acima do necessário. “Tudo por uma escolha ideológica, que nos levou a esse paradigma de absoluto descompasso entre a possibilidade e a realidade implantada.” •
Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Curto-circuito’
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