Crédito virtual, ganho real

De toneladas de créditos de carbono ao patrocínio de escolas de inglês para alunos pobres, cabe tudo nos ativos financeiros tokenizados que começam a ser cada vez mais usados para substituir os instrumentos tradicionais, como debêntures, certificados de depósitos ou letras imobiliárias. “Operações mais tradicionais são muito custosas, a operação com token é muito mais simples e mais barata. Então, via tokenização, é possível fazer operações inviáveis por meio de outros instrumentos. Viabiliza mais emissões e também facilita a vida do investidor”, explica João Paulo Pacífico, CEO da securitizadora Gaia.

A Gaia acaba de encerrar o Token de Impacto – Raiar, produtora de ovos orgânicos abastecida por 60 agricultores familiares. Foram colocados 54,4 mil tokens, num total de 1,36 milhão de reais, a 25 reais cada um. Os 61 investidores receberam de volta, há cerca de um mês, o montante integral, mais 8% ao ano. Agora, a securitizadora oferece, também a 25 reais, o token da 4YOU2, escola de inglês inclusiva, com professores estrangeiros e voltada alunos das periferias.

Token é uma fração digital de qualquer ativo que tenha valor, o qual, ao ser comprado, confere ao titular direitos específicos sobre esse ativo, cujas características são criptografadas e registradas no blockchain (o livro caixa virtual conhecido por abrigar o ­bitcoin e outras criptomoedas). Além de conferir segurança aos tokens, o registro no blockchain possibilita sua negociação e liquidez a qualquer hora e dia, em qualquer parte do mundo. “Sem a existência da blockchain certamente o investimento seria validado por meio de documentos em papel ou mesmo por meio digital, mas com alguma burocracia”, diz Arthur Farache, CEO da Hurst ­Capital, plataforma de investimentos em ativos reais. “Com a tecnologia ­blockchain, essa validação é automática, uma vez que o token tem estrutura para inserção dos chamados smart ­contracts, nada mais que um código programado para se autoexecutar conforme determinadas regras. Ele permite que comprador e vendedor realizem uma transação diretamente, sem intermediários”, explica Farache. Dessa forma, afirma, qualquer tipo de ativo pode ser tokenizado, de precatórios a royalties musicais, além de obras de arte, tanto físicas quanto digitais, ativos empresariais e imobiliários.

No caso da 4YOU2, cédulas de crédito bancário dos franqueados da escola de inglês servem de lastro da aplicação e rendem 11% ao ano, com amortizações mensais, ou seja, no decorrer do projeto o investidor recebe o valor investido acrescido da remuneração, conforme o cronograma. O dinheiro aplicado servirá para financiar as franquias de impacto e desenvolver o empreendedorismo social. O retorno financeiro será pago pelos franqueados por meio da receita com mensalidades. Da mesma forma, cada tonelada de carbono gerada por 106 mil hectares de vegetação nos estados do Amazonas, Mato Grosso, Pará e Rondônia dá origem a um Token de Preservação Greener (TPG), fruto da parceria entre a startup britânica-brasileira DaX Green – que processa a ­tokenização –

A tokenização facilita o acesso de pequenas empresas e startups ao crédito

e a Reag Investimentos, uma das maiores gestoras independentes do País, que oferece o token de crédito de carbono a empresas interessadas em compensar suas emissões de gases de efeito estufa. Esse primeiro lote de tokens da DaX Green é lastreado em ativos de carbono do estoque da Golden Green S.A., originados na conservação de cerca de 390 mil hectares de florestas nativas localizadas no bioma amazônico daqueles estados. Detalhe, 216 produtores privados conservam as florestas.

O presidente do conselho da DaX Green, Felipe Russowsky, destaca que uma das questões mais relevantes nesse mercado é a rastreabilidade do ativo: “É garantir que as toneladas de carbono disponibilizadas no mercado, que é este ativo aqui, não são vendidas a um terceiro, que também vai usar e resultar numa dupla contagem, o que, sobretudo pelo aspecto moral, está errado. Daí tratamos de criar uma plataforma de registro em que cada tonelada imputada nesta plataforma é individualizada mediante um código. O que queremos é fomentar esse mercado, a aquisição desses ativos para compensação das suas pegadas”. A expectativa é o TPG contribuir para a conservação de 34 milhões de metros cúbicos de floresta e a circulação de 74,2 milhões de toneladas de ativos de carbono verde, resultantes do processo de preservação ambiental.

Para o presidente da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi), ­Edgard Cornachione, as oportunidades criadas pela nova tecnologia deveriam constituir uma política de governo, na medida em que a tokenização pode contribuir para dar escala aos proprietários de florestas no mercado internacional. “Essa tecnologia tem o atributo de democratizar o investimento para quem quer aplicar dinheiro na operação, como uma oportunidade enorme aos que detêm o ativo e procuram viabilizar sua captação.”

Cornachione vislumbra, entretanto, dois desafios ao avanço da ­tokenização. O primeiro é a regulação. “Não há regulação alguma, nem aqui nem no mundo. A gente vê a Comissão de Valores Mobiliários se movimentando nesse sentido, em relação às plataformas, o ­blockchain. Mas é preciso ponderar, porque, de um lado, ela traz conforto, principalmente para o investidor de varejo, e, de outro, ela pode inibir as operações.” O outro desafio é a escassez de capital humano para dar conta do desenvolvimento galopante dessa tecnologia. “Do ponto de vista de desenvolvimento, estamos muito carentes de mão de obra qualificada. O hiato entre a demanda de mercado e a oferta de programadores para essas plataformas de blockchain, smart contracts é tão grande que os salários nos Estados Unidos para esses profissionais chegam a 350 mil, 500 mil dólares por ano. Mostra que isso vem com muita força, uma velocidade absurda, e não é mero modismo.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.