Economia

Concessão é forma de privataria?

Lula e Dilma nada fizeram para combater o modelo neoliberal das agências reguladoras e das concessões ‘lipoaspiradas’ de FHC

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Retorno à minha coluna no pós-carnaval, logo no inicio de fato do ano.

Procurarei contribuir semanalmente, e não mais quinzenalmente. Reinicio com um artigo extenso. Sei que artigos extensos não são lidos, mas creio que o tema exige mais reflexão que a síntese como qualidade jornalística aconselha.

A oposição acusa o governo Dilma Rousseff de uma grande contradição: os discursos do PT e da presidenta sempre se pautaram por críticas às chamadas privatizações ocorridas no governo FHC, mas agora, em especial no caso dos Aeroportos, o governo federal também se utilizaria do modelo privatizante, como que reconhecendo a privatização como uma medida econômica necessária e imprescindível ao desenvolvimento de nossa infraestrutura.

Por outro lado o governo defendeu-se afirmando que concessões de serviço ou bem público não são a mesma coisa que privatização, tratando-se de instituto jurídico e politico de natureza diversa – ou seja, que se transfere ao particular meramente à execução de um serviço público ou o mero uso do bem público, permanecendo sua titularidade nas mãos do Estado. Isso significa que o Estado continua “dono” do serviço ou bem, diferentemente das privatizações em que ocorre a transferência da titularidade do serviço ou bem aos particulares, quando o particular passa a ser o “dono” do serviço.

A questão diz diretamente ao modelo ora adotado no País quanto a gestão das atividades e bens de interesse da coletividade, logo tema absolutamente essencial no tocante ao modelo de Estado que se pretende realizar, se um Estado neoliberal de mínima intervenção na vida social ou se um Estado Social que se responsabilize pela prestação de serviços de interesse coletivo e pela gestão de bens comunitários. Logo, deve merecer da cidadania uma atenção mais detida do que meramente acompanhar o bate-boca entre situação e oposição, pois tal debate afeta diretamente a vida de todos.

No fim do ano passado foi lançado no mercado editorial, de forma demasiadamente discreta, obra fundamental para compreensão rigorosa nos planos jurídico, político e institucional do que se tratou a chamada “onda neoliberal” de privatizações ocorridas no Brasil, suas bases históricas no plano global, sua profunda inconstitucionalidade no caso brasileiro e suas consequências deletérias nos dias correntes.

Não se trata de obra jornalística, com título arrebatador que chame a atenção. Ao contrário constitui-se de sério, erudito e rigoroso trabalho acadêmico. Brilhante tese de doutorado em Direito do Estado apresentada na PUC de São Paulo, sob o vetusto título “Regulação Administrativa à Luz da Constituição Federal” de autoria de, a nosso ver, o mais genial expert jurídico de direito administrativo da nova geração de juristas brasileiros: Ricardo Marcondes Martins.

Com o ônus de simplificar indevidamente aspectos complexos do tema, trato da dimensão politica da questão em termos jornalísticos, por não dever tal debate ficar hermeticamente cerrado nos muros da academia.

Desde as revoluções burguesas americana e francesa foram se constituindo no globo dois grandes modelos jurídicos e políticos de trato estatal com as atividades de interesse comunitário no interior dos países capitalistas.

Um, o modelo inglês – seguido também pelos norte-americanos inobstante seu constitucionalismo rígido e escrito – que tendo por argumento as características próprias de sua tradição jurídica de “comom law”, sistema que se funda não em leis escritas mas em normas conformadas pelas tradições e pelas praticas costumeiras da comunidade, procurava submeter a Administração Publica às regras de direito privado – as mesmas regras aplicadas aos particulares nas atividades de mercado.

Obviamente tal modelo inicial não prosperou. Não apenas pela influência das ideias do Estado Social, às quais os britânicos e norte-americanos não ficaram imunes, mas também por conta da própria dificuldade de querer se tratar pelas mesmas normas atividades privadas e públicas

Em um Tratado de autoria de Lord Hale publicado em 1787 e num julgado de 1800 lançam-se as bases conceituais do que se chama no direito inglês e norte-americano como “public utilities” e “public callings” – atividades que, por sua natureza são impregnadas de interesse público, o que justificaria submetê-las a normas próprias de um direito público, normas fundadas na noção de superioridade do interesse coletivo sobre o interesse privado.

Entretanto tal modelo realiza esta superioridade do coletivo sobre o privado pela intervenção do Estado sobre atividades privadas – a titularidade de tais atividades é considerada privada, embora sofra a intervenção de normas e comandos estatais para alinhá-las ao interesse público. O particular é portanto “dono” da atividade ou serviço mas sofre condicionamentos do Estado em sua gestão e realização para que  alinhe seu desiderato de ganho ao interesse público.

O segundo modelo referido deu-se nos países de tradição de “civil law”, grosso modo os da europa continental, tendo surgido em suas bases conceituais nos julgados do Conselho de Estado Francês e se conformado com forte colaboração da doutrina jurídica italiana.

Nestes países constituiu-se a noção de serviço público para designar as atividades de interesse declaradas por lei como de titularidade estatal. Ou seja, o Estado é o “dono” de tais atividades, podendo transferir aos particulares sua mera execução ou o mero uso de seus bens, mas mantendo para si a titularidade de tais atividades e bens o que, de fato, implica no exercício pelo Estado de um conjunto de poderes excepcionais de controle e autoridade sobre o conteúdo da prestação mesmo quando realizada por particulares.

Tal relação jurídica-contratual entre Estado titular do serviço ou bem e o particular executante ou usuário é, grosso modo, chamada “concessão publica (concessão de serviço publico ou uso de bem publico conforme o caso).

Nota-se na singela exposição a maior diferença entre o modelo inglês/norte-americano e o da Europa continental, qual seja o aspecto orgânico, a questão de quem é o “dono” do serviço ou do bem público ,se o Estado ou o particular. Se tais atividades de interesse público se entendem como atividades estatais, mesmo quando executadas por particulares, ou se são entendidas como atividades privadas mesmo sofrendo condicionamentos do Estado (ou ate mesmo sendo diretamente prestadas pelo Estado em alguns casos).

Por evidente a diferença de titularidade implica em diferença na extensão e natureza da autoridade do estado e seus poderes em tais modelos de atividade.

Com o fim da guerra fria, a queda do muro de Berlim simbolizando o fim da polarização entre os blocos socialista e capitalista, surge a chamada “onda neo-liberal” capitaneada por ideias de menos intervenção do estado na economia, que no plano das atividades publicas significou buscar modelos de menor ação e poder estatal em tais atividades.

Nos países do “comom law”, de matriz inglesa/norte-americana, buscou-se a desregulação das atividades de interesse publico, as referidas “public utilities”. Isso significa retirar de tais atividades a intervenção nas normas estatais reguladoras de sua realização.

Como destaca Ricardo Marcondes Martins a desregulação nos EUA e Inglaterra atingiu até atividades que mesmo no Estado Liberal eram tidas como estatais.

Milton Friedman,um conhecido defensor da diminuição do papel do estado na vida sócio-econômica e um dos próceres da Escola de Chicago, citou em obra sobre a economia monetarista a existência de cidades e Estados nos EUA que tinham organizações privadas prestadoras do serviço de bombeiro com fins de lucro e que realizavam o trabalho de combate a incêndios com custos menores que quando realizado diretamente pelo estado, mesmo auferindo lucro.

Obviamente o autor não mostra a outra face da moeda, o site The Huffington Post noticiou em 5-10-2010 a inacreditável informação que os bombeiros do condado de Obion, no Estado do Tennessee, não apagaram o incêndio de uma residência porque seu dono, Gene Cranick, não pagou a tarifa devida à organização privada de bombeiros.

Se nos EUA e Inglaterra a tarefa do neoliberalismo foi tentar acabar com a regulação estatal das atividades de interesse publico, nos países da Europa Continental foi tentar acabar com o serviço publico, transformando-o em atividade privada regulada pelo estado – no caso, o modelo adotado pela Inglaterra/EUA no período anterior a onda neoliberal.

De uma atividade cujo dono é o Estado, o serviço publico, transformou-se a atividade de interesse publico numa atividade de titularidade privada, cujo dono é o particular, meramente regulada pelo Estado. Fim do serviço público, tornando-o atividade privada regulada.

O que se observa é que tanto no modelo inglês de atividade privada regulada quanto no modelo europeu continental do serviço publico a tarefa neoliberal foi diminuir sensivelmente os poderes estatais nas atividades de interesse publico em favor da iniciativa privada.

No primeiro desregulando as atividades de interesse público, no segundo extinguindo a figura do serviço público, acabando com a titularidade estatal sobre as atividades publicas.

Na Europa continental a tarefa política neoliberal de extinção do serviço público foi facilitada juridicamente pelas mudanças constitucionais que a maioria daqueles países tiveram de realizar para aderir à Comunidade Europeia.Com tais mudanças empecilhos jurídicos às metas neoliberais foram subtraídos.

O Brasil, em sua Constituição de 1988, adota o modelo europeu continental do serviço publico para realização de suas atividades publicas.

A tarefa neoliberal de extinção do serviço público como modelo no Brasil encontrou um auxilio e um grande empecilho.

Como auxílio, contou com a ampla critica publica ao gigantismo paquidérmico das empresas estatais criadas durante o regime militar. O regime militar criou estatais centralizadas, gigantes e ineficientes, em total inobservância a nosso sistema federativo de distribuição geográfica do poder político, que possibilitaria a prestação de serviços estatais por organizações estatais locais, menores e certamente mais eficientes por estarem mais próximas do controle direto da comunidade.

Além de prestar serviços públicos de forma centralizada, inchada e ineficiente, o modelo econômico do regime militar transformou em publicas atividades que abertamente não deveriam estar sob prestação estatal, tais como fotografia aérea, fabricação de ônibus, etc. Absurdos destinados a gerar empregos e corrupção para apadrinhados do regime.

A colaboração da atividade privada, salvo raras exceções, não se dava pelo modelo de concessão, mas por contratos de mera prestação de serviços e realização de obras.

Embalado pela crítica adequada ao gigantismo paraestatal dos militares, os neoliberais cunharam discurso prenhe de adjetivos como “modernidade”, “modelo gerencial” etc para fazer realizar seu desiderato de domínio privado sobre os serviços e bens públicos. Para combater o gigantismo das estatais propunham jogar fora o bebe junto com a agua da bacia, acabar com a figura do serviço público, entregar suas atividades a titularidade privada.

A exemplo do que foi feito na Europa continental substituir a figura do serviço público pela da atividade privada regulada. Essa a verdadeira “privataria” promovida pelo modelo de gestão publica de FHC, retirar do Estado a propriedade do que é publico.

Ocorre que ao contrario da Europa, onde a adesão à comunidade europeia provocou mudanças nas Constituições dos países que facilitaram o ataque ao serviço publico, aqui no Brasil a Constituição de 1988 claramente adotou um conjunto de princípios e regras conformadores de um Estado fortemente social, ao menos no plano jurídico-normativo,e portanto absolutamente indisposto com qualquer ataque a figura do serviço publico em nosso sistema de gestão

Assim o modelo neo-liberal, no Brasil, foi constituído por reformas constitucionais e leis ordinárias em essência atentatórias ao disposto na Constituição originaria e seu plano valorativo e ,como toda ilegalidade, praticada a sorrelfa e contando com ampla produção de “pareceres” e doutrina favoráveis, lendo o que se queria na Constituição e não o que nela estava escrito

O modelo de privataria praticado teve dois grandes vértices:

1- Transformar inconstitucionalmente alguns serviços públicos em atividades privadas reguladas por Agências reguladoras. Agências reguladoras, conforme posto pela própria critica neoliberal ao regime de regulação dos EUA, facilmente cooptáveis pelos interesses privados, compostas por técnicos “independentes da politica”, mas cuja vida profissional é evidentemente ligada às empresas privadas cuja atividade lhes cabe regular.

O falseamento em termos de marketing ideológico é evidente. Política é vista como sinônimo de corrupção enquanto a “técnica” é vista como atividade imparcial e pura.

Óbvio descuramento com a verdade. Técnicos são corrompíveis por sua relação de dependência profissional com a atividade empresarial que tem por tarefa regular, a atividade politica é mais complexa e fundamentalmente mais democrática e, portanto, mas passível de controle pela sociedade. Nas agencias reguladoras o déficit democrático em geral acaba por redundar em déficit ético.

2 – Onde não foi possível transformar o serviço publico em atividade privada regulada, tratou-se de mudar a lei de concessões de tais serviços, “lipoaspirando” os poderes estatais que haviam em tal modelo de contratação.

Nos serviços públicos é possível, e muitas vezes desejável, que a iniciativa privada colabore exercendo o papel de executora de tais serviços, como concessionaria deles. Mas o Estado em tais contratos permanece com o papel de dono do serviço, chamado de poder concedente, gozando de prerrogativas contratuais exuberantes, ou seja podendo usar de autoridade na execução contratual de forma o obrigar o particular executante a atender o interesse publico a par de seu desiderato de lucro.

Ocorre que na legislação produzida no governo FHC e mantida nos governos Lula e Dilma os tais poderes de concedente detidos pelo Estado nas concessões de serviço público, foram sensivelmente reduzidos em favor do concessionário privado. Houve algo, portanto, como uma “privatização” da relação contratual de concessão. Este o segundo grande eixo neo-liberal de privatização das atividades publicas no Brasil.

Por tudo isto quando a oposição afirma que a concessão de aeroportos é uma forma de privatização esta errada, mas apenas parcialmente. O governo quando se defende dizendo que concessão não é privatização e assim não se compara ao realizado no governo FHC está certo também apenas parcialmente.

Realmente concessões de serviço público são forma não privatizantes de contratação da iniciativa privada pela Administração Pública, pois não transferem a titularidade do serviço publico concedido ao particular ,mas sim sua mera execução.

Ocorre que a manutenção pelo Estado de tal titularidade transforma-se em mera ficção formal se não implicar na real possibilidade de manter reais poderes de autoridade na relação contratual – com poderes para impor unilateralmente ao particular condutas necessárias ao atendimento do interesse público, podendo puni-lo unilateralmente e até extinguir a contratação em caso de descumprimento grave das condições contratadas.

E a lei de Concessões de Serviços públicos produzida por FHC e mantidas nos governos posteriores “lipoaspirou” tais poderes estatais nas concessões brasileiras.

Lula e Dilma nada fizeram para combater o modelo neoliberal das agências reguladoras e das concessões “lipoaspiradas” implantado por FHC, mesmo depois da crise de 2008.

Assim quando o governo procura se distanciar do neoliberalismo do governo privatizante de FHC, sob argumento de realizar concessões e não privatizações, não fala a verdade em sua inteireza ,pois ainda se utiliza de um modelo de concessão publica em que resta ao estado poderes anêmicos, onde o Estado é o dono formal dos serviços e bens ,mas lhe carece a posse  de instrumentos plenos de controle e autoridade dos serviços e bens concedidos.

A cidadania deve estar mais que atenta. Se o governo Lula foi socialmente o melhor da nossa história, se acertou imensamente em sua politica exterior, manteve-se tímido, acovardado no enfrentamento do modelo privatizante ainda existente, não criou a privataria mas se utilizou dela.

O governo Dilma, infelizmente, trilha o mesmo caminho, nada fazendo para alterar a legislação vigente e inclusive encaminhando ao Congresso projetos de lei que consolidam o modelo neoliberal de gestão pública, tema este para um futuro artigo.

Retorno à minha coluna no pós-carnaval, logo no inicio de fato do ano.

Procurarei contribuir semanalmente, e não mais quinzenalmente. Reinicio com um artigo extenso. Sei que artigos extensos não são lidos, mas creio que o tema exige mais reflexão que a síntese como qualidade jornalística aconselha.

A oposição acusa o governo Dilma Rousseff de uma grande contradição: os discursos do PT e da presidenta sempre se pautaram por críticas às chamadas privatizações ocorridas no governo FHC, mas agora, em especial no caso dos Aeroportos, o governo federal também se utilizaria do modelo privatizante, como que reconhecendo a privatização como uma medida econômica necessária e imprescindível ao desenvolvimento de nossa infraestrutura.

Por outro lado o governo defendeu-se afirmando que concessões de serviço ou bem público não são a mesma coisa que privatização, tratando-se de instituto jurídico e politico de natureza diversa – ou seja, que se transfere ao particular meramente à execução de um serviço público ou o mero uso do bem público, permanecendo sua titularidade nas mãos do Estado. Isso significa que o Estado continua “dono” do serviço ou bem, diferentemente das privatizações em que ocorre a transferência da titularidade do serviço ou bem aos particulares, quando o particular passa a ser o “dono” do serviço.

A questão diz diretamente ao modelo ora adotado no País quanto a gestão das atividades e bens de interesse da coletividade, logo tema absolutamente essencial no tocante ao modelo de Estado que se pretende realizar, se um Estado neoliberal de mínima intervenção na vida social ou se um Estado Social que se responsabilize pela prestação de serviços de interesse coletivo e pela gestão de bens comunitários. Logo, deve merecer da cidadania uma atenção mais detida do que meramente acompanhar o bate-boca entre situação e oposição, pois tal debate afeta diretamente a vida de todos.

No fim do ano passado foi lançado no mercado editorial, de forma demasiadamente discreta, obra fundamental para compreensão rigorosa nos planos jurídico, político e institucional do que se tratou a chamada “onda neoliberal” de privatizações ocorridas no Brasil, suas bases históricas no plano global, sua profunda inconstitucionalidade no caso brasileiro e suas consequências deletérias nos dias correntes.

Não se trata de obra jornalística, com título arrebatador que chame a atenção. Ao contrário constitui-se de sério, erudito e rigoroso trabalho acadêmico. Brilhante tese de doutorado em Direito do Estado apresentada na PUC de São Paulo, sob o vetusto título “Regulação Administrativa à Luz da Constituição Federal” de autoria de, a nosso ver, o mais genial expert jurídico de direito administrativo da nova geração de juristas brasileiros: Ricardo Marcondes Martins.

Com o ônus de simplificar indevidamente aspectos complexos do tema, trato da dimensão politica da questão em termos jornalísticos, por não dever tal debate ficar hermeticamente cerrado nos muros da academia.

Desde as revoluções burguesas americana e francesa foram se constituindo no globo dois grandes modelos jurídicos e políticos de trato estatal com as atividades de interesse comunitário no interior dos países capitalistas.

Um, o modelo inglês – seguido também pelos norte-americanos inobstante seu constitucionalismo rígido e escrito – que tendo por argumento as características próprias de sua tradição jurídica de “comom law”, sistema que se funda não em leis escritas mas em normas conformadas pelas tradições e pelas praticas costumeiras da comunidade, procurava submeter a Administração Publica às regras de direito privado – as mesmas regras aplicadas aos particulares nas atividades de mercado.

Obviamente tal modelo inicial não prosperou. Não apenas pela influência das ideias do Estado Social, às quais os britânicos e norte-americanos não ficaram imunes, mas também por conta da própria dificuldade de querer se tratar pelas mesmas normas atividades privadas e públicas

Em um Tratado de autoria de Lord Hale publicado em 1787 e num julgado de 1800 lançam-se as bases conceituais do que se chama no direito inglês e norte-americano como “public utilities” e “public callings” – atividades que, por sua natureza são impregnadas de interesse público, o que justificaria submetê-las a normas próprias de um direito público, normas fundadas na noção de superioridade do interesse coletivo sobre o interesse privado.

Entretanto tal modelo realiza esta superioridade do coletivo sobre o privado pela intervenção do Estado sobre atividades privadas – a titularidade de tais atividades é considerada privada, embora sofra a intervenção de normas e comandos estatais para alinhá-las ao interesse público. O particular é portanto “dono” da atividade ou serviço mas sofre condicionamentos do Estado em sua gestão e realização para que  alinhe seu desiderato de ganho ao interesse público.

O segundo modelo referido deu-se nos países de tradição de “civil law”, grosso modo os da europa continental, tendo surgido em suas bases conceituais nos julgados do Conselho de Estado Francês e se conformado com forte colaboração da doutrina jurídica italiana.

Nestes países constituiu-se a noção de serviço público para designar as atividades de interesse declaradas por lei como de titularidade estatal. Ou seja, o Estado é o “dono” de tais atividades, podendo transferir aos particulares sua mera execução ou o mero uso de seus bens, mas mantendo para si a titularidade de tais atividades e bens o que, de fato, implica no exercício pelo Estado de um conjunto de poderes excepcionais de controle e autoridade sobre o conteúdo da prestação mesmo quando realizada por particulares.

Tal relação jurídica-contratual entre Estado titular do serviço ou bem e o particular executante ou usuário é, grosso modo, chamada “concessão publica (concessão de serviço publico ou uso de bem publico conforme o caso).

Nota-se na singela exposição a maior diferença entre o modelo inglês/norte-americano e o da Europa continental, qual seja o aspecto orgânico, a questão de quem é o “dono” do serviço ou do bem público ,se o Estado ou o particular. Se tais atividades de interesse público se entendem como atividades estatais, mesmo quando executadas por particulares, ou se são entendidas como atividades privadas mesmo sofrendo condicionamentos do Estado (ou ate mesmo sendo diretamente prestadas pelo Estado em alguns casos).

Por evidente a diferença de titularidade implica em diferença na extensão e natureza da autoridade do estado e seus poderes em tais modelos de atividade.

Com o fim da guerra fria, a queda do muro de Berlim simbolizando o fim da polarização entre os blocos socialista e capitalista, surge a chamada “onda neo-liberal” capitaneada por ideias de menos intervenção do estado na economia, que no plano das atividades publicas significou buscar modelos de menor ação e poder estatal em tais atividades.

Nos países do “comom law”, de matriz inglesa/norte-americana, buscou-se a desregulação das atividades de interesse publico, as referidas “public utilities”. Isso significa retirar de tais atividades a intervenção nas normas estatais reguladoras de sua realização.

Como destaca Ricardo Marcondes Martins a desregulação nos EUA e Inglaterra atingiu até atividades que mesmo no Estado Liberal eram tidas como estatais.

Milton Friedman,um conhecido defensor da diminuição do papel do estado na vida sócio-econômica e um dos próceres da Escola de Chicago, citou em obra sobre a economia monetarista a existência de cidades e Estados nos EUA que tinham organizações privadas prestadoras do serviço de bombeiro com fins de lucro e que realizavam o trabalho de combate a incêndios com custos menores que quando realizado diretamente pelo estado, mesmo auferindo lucro.

Obviamente o autor não mostra a outra face da moeda, o site The Huffington Post noticiou em 5-10-2010 a inacreditável informação que os bombeiros do condado de Obion, no Estado do Tennessee, não apagaram o incêndio de uma residência porque seu dono, Gene Cranick, não pagou a tarifa devida à organização privada de bombeiros.

Se nos EUA e Inglaterra a tarefa do neoliberalismo foi tentar acabar com a regulação estatal das atividades de interesse publico, nos países da Europa Continental foi tentar acabar com o serviço publico, transformando-o em atividade privada regulada pelo estado – no caso, o modelo adotado pela Inglaterra/EUA no período anterior a onda neoliberal.

De uma atividade cujo dono é o Estado, o serviço publico, transformou-se a atividade de interesse publico numa atividade de titularidade privada, cujo dono é o particular, meramente regulada pelo Estado. Fim do serviço público, tornando-o atividade privada regulada.

O que se observa é que tanto no modelo inglês de atividade privada regulada quanto no modelo europeu continental do serviço publico a tarefa neoliberal foi diminuir sensivelmente os poderes estatais nas atividades de interesse publico em favor da iniciativa privada.

No primeiro desregulando as atividades de interesse público, no segundo extinguindo a figura do serviço público, acabando com a titularidade estatal sobre as atividades publicas.

Na Europa continental a tarefa política neoliberal de extinção do serviço público foi facilitada juridicamente pelas mudanças constitucionais que a maioria daqueles países tiveram de realizar para aderir à Comunidade Europeia.Com tais mudanças empecilhos jurídicos às metas neoliberais foram subtraídos.

O Brasil, em sua Constituição de 1988, adota o modelo europeu continental do serviço publico para realização de suas atividades publicas.

A tarefa neoliberal de extinção do serviço público como modelo no Brasil encontrou um auxilio e um grande empecilho.

Como auxílio, contou com a ampla critica publica ao gigantismo paquidérmico das empresas estatais criadas durante o regime militar. O regime militar criou estatais centralizadas, gigantes e ineficientes, em total inobservância a nosso sistema federativo de distribuição geográfica do poder político, que possibilitaria a prestação de serviços estatais por organizações estatais locais, menores e certamente mais eficientes por estarem mais próximas do controle direto da comunidade.

Além de prestar serviços públicos de forma centralizada, inchada e ineficiente, o modelo econômico do regime militar transformou em publicas atividades que abertamente não deveriam estar sob prestação estatal, tais como fotografia aérea, fabricação de ônibus, etc. Absurdos destinados a gerar empregos e corrupção para apadrinhados do regime.

A colaboração da atividade privada, salvo raras exceções, não se dava pelo modelo de concessão, mas por contratos de mera prestação de serviços e realização de obras.

Embalado pela crítica adequada ao gigantismo paraestatal dos militares, os neoliberais cunharam discurso prenhe de adjetivos como “modernidade”, “modelo gerencial” etc para fazer realizar seu desiderato de domínio privado sobre os serviços e bens públicos. Para combater o gigantismo das estatais propunham jogar fora o bebe junto com a agua da bacia, acabar com a figura do serviço público, entregar suas atividades a titularidade privada.

A exemplo do que foi feito na Europa continental substituir a figura do serviço público pela da atividade privada regulada. Essa a verdadeira “privataria” promovida pelo modelo de gestão publica de FHC, retirar do Estado a propriedade do que é publico.

Ocorre que ao contrario da Europa, onde a adesão à comunidade europeia provocou mudanças nas Constituições dos países que facilitaram o ataque ao serviço publico, aqui no Brasil a Constituição de 1988 claramente adotou um conjunto de princípios e regras conformadores de um Estado fortemente social, ao menos no plano jurídico-normativo,e portanto absolutamente indisposto com qualquer ataque a figura do serviço publico em nosso sistema de gestão

Assim o modelo neo-liberal, no Brasil, foi constituído por reformas constitucionais e leis ordinárias em essência atentatórias ao disposto na Constituição originaria e seu plano valorativo e ,como toda ilegalidade, praticada a sorrelfa e contando com ampla produção de “pareceres” e doutrina favoráveis, lendo o que se queria na Constituição e não o que nela estava escrito

O modelo de privataria praticado teve dois grandes vértices:

1- Transformar inconstitucionalmente alguns serviços públicos em atividades privadas reguladas por Agências reguladoras. Agências reguladoras, conforme posto pela própria critica neoliberal ao regime de regulação dos EUA, facilmente cooptáveis pelos interesses privados, compostas por técnicos “independentes da politica”, mas cuja vida profissional é evidentemente ligada às empresas privadas cuja atividade lhes cabe regular.

O falseamento em termos de marketing ideológico é evidente. Política é vista como sinônimo de corrupção enquanto a “técnica” é vista como atividade imparcial e pura.

Óbvio descuramento com a verdade. Técnicos são corrompíveis por sua relação de dependência profissional com a atividade empresarial que tem por tarefa regular, a atividade politica é mais complexa e fundamentalmente mais democrática e, portanto, mas passível de controle pela sociedade. Nas agencias reguladoras o déficit democrático em geral acaba por redundar em déficit ético.

2 – Onde não foi possível transformar o serviço publico em atividade privada regulada, tratou-se de mudar a lei de concessões de tais serviços, “lipoaspirando” os poderes estatais que haviam em tal modelo de contratação.

Nos serviços públicos é possível, e muitas vezes desejável, que a iniciativa privada colabore exercendo o papel de executora de tais serviços, como concessionaria deles. Mas o Estado em tais contratos permanece com o papel de dono do serviço, chamado de poder concedente, gozando de prerrogativas contratuais exuberantes, ou seja podendo usar de autoridade na execução contratual de forma o obrigar o particular executante a atender o interesse publico a par de seu desiderato de lucro.

Ocorre que na legislação produzida no governo FHC e mantida nos governos Lula e Dilma os tais poderes de concedente detidos pelo Estado nas concessões de serviço público, foram sensivelmente reduzidos em favor do concessionário privado. Houve algo, portanto, como uma “privatização” da relação contratual de concessão. Este o segundo grande eixo neo-liberal de privatização das atividades publicas no Brasil.

Por tudo isto quando a oposição afirma que a concessão de aeroportos é uma forma de privatização esta errada, mas apenas parcialmente. O governo quando se defende dizendo que concessão não é privatização e assim não se compara ao realizado no governo FHC está certo também apenas parcialmente.

Realmente concessões de serviço público são forma não privatizantes de contratação da iniciativa privada pela Administração Pública, pois não transferem a titularidade do serviço publico concedido ao particular ,mas sim sua mera execução.

Ocorre que a manutenção pelo Estado de tal titularidade transforma-se em mera ficção formal se não implicar na real possibilidade de manter reais poderes de autoridade na relação contratual – com poderes para impor unilateralmente ao particular condutas necessárias ao atendimento do interesse público, podendo puni-lo unilateralmente e até extinguir a contratação em caso de descumprimento grave das condições contratadas.

E a lei de Concessões de Serviços públicos produzida por FHC e mantidas nos governos posteriores “lipoaspirou” tais poderes estatais nas concessões brasileiras.

Lula e Dilma nada fizeram para combater o modelo neoliberal das agências reguladoras e das concessões “lipoaspiradas” implantado por FHC, mesmo depois da crise de 2008.

Assim quando o governo procura se distanciar do neoliberalismo do governo privatizante de FHC, sob argumento de realizar concessões e não privatizações, não fala a verdade em sua inteireza ,pois ainda se utiliza de um modelo de concessão publica em que resta ao estado poderes anêmicos, onde o Estado é o dono formal dos serviços e bens ,mas lhe carece a posse  de instrumentos plenos de controle e autoridade dos serviços e bens concedidos.

A cidadania deve estar mais que atenta. Se o governo Lula foi socialmente o melhor da nossa história, se acertou imensamente em sua politica exterior, manteve-se tímido, acovardado no enfrentamento do modelo privatizante ainda existente, não criou a privataria mas se utilizou dela.

O governo Dilma, infelizmente, trilha o mesmo caminho, nada fazendo para alterar a legislação vigente e inclusive encaminhando ao Congresso projetos de lei que consolidam o modelo neoliberal de gestão pública, tema este para um futuro artigo.

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