Economia

Com o chifre na parede

Juros altos, vendas fracas e a preferência pela renda fixa abalam os investimentos nos chamados ‘unicórnios’

Fonte: LAVCA - Imagem: iStockphoto
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Depois de um glorioso 2021, em que captaram 9,4 bilhões de dólares em investimentos, segundo a plataforma de análise Distrito, o inverno chegou para as startups. Desde o fim de março, as empresas nascentes de tecnologia demitiram perto de 2,7 mil funcionários. O fenômeno atinge em especial os chamados “unicórnios”, empresas avaliadas em ao menos 1 bilhão de dólares. Na terça-feira 5, a Loft, do setor imobiliário, anunciou a dispensa de mais 384 funcionários, além dos 159 demitidos anteriormente. Juntam-se ao grupo a Ebanx (300), Kavak (300), Vtex (200) e Quinto Andar (160), conforme levantamento do site Layoffs Brasil, que recolhe informações dos desempregados de quase 30 empresas desse universo.

A fintech paranaense de pagamentos Ebanx, em nota à imprensa, sintetizou a situação: “A decisão foi tomada com base no cenário atual do mercado de tecnologia como um todo, impactado de forma profunda e veloz pelo ambiente macroeconômico”. Fundada em 2012, a Ebanx atua em 15 países da América Latina, entre eles Argentina, Chile, Colômbia e México. Em junho de 2019, quando obteve um aporte de 430 milhões de dólares (2,2 bilhões de reais), atingiu a marca de 1 bilhão de dólares em valor de mercado, e tinha ambiciosos planos de expansão no hemisfério. A plataforma de comércio digital VTex, que estreou na Bolsa de Valores de Nova York em julho do ano passado, avaliada em 3,75 bilhões de dólares, valia 823,3 milhões na quinta-feira 27 de maio, quando anunciou a demissão de 11% do seu quadro, ou 193 funcionários – ou “colaboradores”, para usar um termo da moda.

Desde março, as principais estrelas do mercado fecharam quase 3 mil postos de trabalho

Maior unicórnio da América Latina, a mexicana Kavak instalou-se no Brasil no ano passado, com um modelo próprio de negociação de carros usados. Em setembro do ano passado, foi avaliada em 8,7 bilhões de dólares, quando levantou 700 milhões de dólares em sua quinta rodada de captação para expandir operações na América Latina. Demitiu ao menos 150 funcionários em São Paulo e no Rio de Janeiro, desde março, afetada pela queda na comercialização de automóveis usados no Brasil – 13% entre maio deste ano e o mesmo mês no ano passado, segundo dados da Fenabrave.

Outro unicórnio famoso, a startup de locação de imóveis Quinto Andar, que patrocinou o Big Brother Brasil, fez uma série de aquisições, anunciou sua migração para Portugal, após captar mais 120 milhões de dólares e passar a valer 5,1 bilhões dólares em capitalização de mercado, admitiu um corte de 4% do seu quadro de 4 mil funcionários.

Todas essas startups, como as demais, se deram bem nos dois anos da pandemia de Covid-19, tanto pelo lado da demanda por seus serviços, potencializada pelas restrições sanitárias à mobilidade, os lockdowns, o trabalho em casa, quanto pela enorme liquidez decorrente de políticas fiscais e monetárias de incentivo à atividade econômica e baixas taxas de juro. “Tivemos um recorde de investimento no Brasil e na América Latina nos últimos anos, que era um mercado pouco explorado”, recorda a vice-presidente da Associação Brasileira de Startups, Ingrid Barth.

Fonte: LAVCA – Imagem: iStockphoto

Entretanto, o panorama mundial mudou drasticamente neste ano, com a reabertura dos negócios graças à vacinação, à guerra na Ucrânia e à aceleração da inflação, que induziu os Bancos Centrais a enxugar a liquidez e subir o ­custo do dinheiro. Os investidores ficaram mais cautelosos e conseguir novos aportes tornou-se mais complexo. Para melhorar o caixa, os cortes de custos, principalmente de funcionários, dispararam. “Estamos em um período de ajustes, com mais cautela por parte dos investidores, por isso as startups reorganizam seu fluxo de caixa”, reconhece Barth.

No ano passado, Brasil e México foram os mercados que mais atraíram capital de risco para suas empresas na última década, informa a consultoria KPMG em seu relatório mundial sobre capital de risco (venture capital) do primeiro trimestre de 2022. Brasil e México, aponta a consultoria, somaram cerca de 12 bilhões de dólares captados por cerca de 570 negócios ou, aproximadamente, 20 milhões, em média, por negócio, valor bem acima do número global, que em 2021 ficou em 17 milhões por negócio, o que representa um crescimento sobre o total alcançado em 2020, de mais de 250% em dólares. A maré virou. A KPMG registrou queda de 42% dos investimentos em venture ­capital no Brasil no primeiro trimestre deste ano em relação ao quarto trimestre do ano passado, para 1,54 bilhão de dólares – o segundo recuo consecutivo, após os aportes desses tradicionais fomentadores de startups terem batido o recorde de 3,01 bilhões de dólares no terceiro trimestre de 2021.

No primeiro trimestre, os investimentos via venture capital no Brasil caíram 42%

Natália Bertussi, coordenadora nacional de startups no Sebrae, nota que juros baixos e liquidez abundante levaram investidores inexperientes a entrar no mercado atraídos pelas notícias dos vários “unicórnios” nos últimos anos, movimento estimulado pelo surgimento de fundos dedicados a esses investimentos. “Assim, de um lado, vemos um excesso de recursos para esse mercado e, de outro, temos diversas startups surgindo, em busca desses recursos, e muitas vezes não preparadas para essa captação. O resultado tem sido um processo de adaptação, em que todos estão adquirindo maturidade. Aos poucos, as startups investidas estão aprendendo a direcionar, de forma correta, suas captações para onde é melhor para seus negócios. Ao mesmo tempo, investidores estão aprendendo sobre valuation, relacionamento e a avaliar as melhores oportunidades.”

Felipe Avelar, fundador e CEO da ­startup Finplace, que conecta empresas que precisam de crédito com instituições financeiras, reconhece que o pior é a ­Selic, a taxa básica de juros, a quase 13,75% ao ano por ora, a desviar recursos de investidores para a renda fixa. O executivo avalia, no entanto: “O dinheiro secou, mas para quem realmente tinha como base de sustentação de sua empresa não o lucro, mas apenas o crescimento do market share”. Segundo Avelar, os próximos balanços vão mostrar se a estratégia deu certo. “Agora é a prova dos noves. Começa o sofrimento, e os grandes vão às compras. Para quem não sofre, ou seja, quem tem fundamentos contábeis realmente bem estabelecidos, agora é a hora de se destacar”, anima-se o CEO, cuja fintech completou recentemente três anos de atuação, com mais de 1 bilhão de reais em crédito transacionado e prestes a concluir uma nova rodada de captação de 10 milhões de reais. É indubitável, destaca Avelar, que o movimento de consolidação vai acontecer pelo único motivo de que agora o preço está baixo. “Só tem um ponto a se ficar atento: o que vai acontecer com a recessão brasileira em razão da política. Este é um ano de estabilização: organize a sua casa, cuide dos critérios fundamentais de contabilidade, como receita, despesa, lucro, e aposte no ano de 2023.”

Adaptação. Segundo Avelar, da Finplace, chegou a hora da “prova dos noves”. Barth, da Associação Brasileira das Startups, diz que o período é de ajustes – Imagem: Arquivo pessoal e Rafael Hupsel

Bertussi concorda que diversas ­startups têm caixa para aquisição e um movimento de consolidação tem sido notado no mercado. “Não é, porém, um comportamento consolidado. Muitas startups ainda focam no próprio crescimento, internacionalização e captação de recursos”, observa. “Diversas startups têm adotado novos modelos de negócios, desenvolvido ideias inovadoras e, assim, crescido de forma estruturada e constante. A consolidação da startup se dá mais pelo crescimento estruturado do que pela ‘força’ do negócio.”

Segundo o Mapeamento de ­Startups do Sebrae Paraná e um estudo da ­Abstartups, de 2021, cerca de 70% das empresas nascentes de tecnologia fecham antes de completar 20 meses de funcionamento, e outras 50% não apresentam resultados. O alto índice de mortalidade dos negócios é causado principalmente pela falta de estruturação e processos definidos. Outras causas compreendem erros no pivotar, desalinhamento entre sócios e investidores, produto ou serviço sem mercado, falta de um modelo viável de negócio, falta de capital financeiro e a concorrência. O diretor de venture capital da Associação para Investimento de Capital Privado na América Latina (Lavca, na sigla em inglês), Carlos Ramos de la Vega, afirmou à agência Bloomberg que a crise afeta, no entanto, mais startups em estágios avançados de investimento e cita fatores promissores para aquelas que estão nos primeiros momentos de captação: maior disponibilidade financeira de fundos locais, maturidade operacional dos empreendedores e várias empresas internacionais de capital de risco a lançar fundos focados na América Latina, sobretudo em São Paulo e na Cidade do México. Tanto que o primeiro trimestre deste ano foi o quarto maior em termos de investimento de VC na região, em que neste ano foram investidos, até o momento, 2,8 bilhões de dólares em 190 transações.  Daniel Cária, sócio-fundador e CEO da fintech mineira Vanq, que volta ao mercado na segunda semana de julho para uma captação estimada em 15 milhões de reais, reforça essa perspectiva: “Nas nossas conversas com outras startups e com investidores, sentimos que o mercado segue receptivo e aberto para investimentos early stage”. Na primeira rodada, realizada no fim de 2021, a startup havia obtido 3,5 milhões de reais para sua operação que visa atender usuários que utilizam três ou mais cartões e que desejam diminuir a quantidade de cartões na carteira, simplificando o controle sobre seus gastos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Com o chifre na parede”

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