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Com a adesão da Argentina, a Nova Rota da Seda chinesa alcança 145 países

O ambicioso projeto de integração expande a influência de Pequim

Com a adesão da Argentina, a Nova Rota da Seda chinesa alcança 145 países
Com a adesão da Argentina, a Nova Rota da Seda chinesa alcança 145 países
Anzol. Jinping e Fernández assinaram o termo de adesão da Argentina, que terá acesso a financiamento à infraestrutura e investimentos industriais – Imagem: Ministério do Planejamento/Argentina e Presidência Argentina
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A adesão da Argentina à Nova Rota da Seda, ou Belt and Road Initiative (BRI), o maior programa mundial de investimento estrangeiro em infraestrutura, criado pela China em 2013, marca a expansão, na América Latina, dessa estratégia criada para reconfigurar a geopolítica mundial, segundo vários especialistas. Um encontro entre os presidentes da Argentina, Alberto Fernández, e da China, Xi Jinping, formalizou o ingresso do 21º país latino-americano na BRI. “Não se trata apenas de uma assinatura de contrato, mas de um marco relevante nas relações bilaterais, muito importante para a Argentina, que procura se reorganizar economicamente e reencontrar seu lugar no cenário internacional”, explica o economista Bruno De Conti, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Brasil-China, da mesma universidade. Não por acaso, diz, a adesão à Nova Rota da Seda foi acompanhada de um conjunto de outras discussões e acordos que visam o estreitamento da relação entre os dois países.

“É importante destacar” – acrescenta De Conti – “que o governo Fernández acaba de vir de uma importante renegociação de suas dívidas com o Fundo Monetário Internacional, mostrando competência para diálogos bem-sucedidos em todos os lados do ordenamento geopolítico atual. Essa história de escolher só um lado é de uma estupidez sem tamanho, algo que só pode ser visto em um governo pequeno e despreparado, como o brasileiro”, dispara o economista.

Até fevereiro, 145 países assinaram memorandos de entendimento para integrar a Nova Rota da Seda. Calcula-se que, em 2025, os projetos de investimento da BRI deverão superar a marca de 1 trilhão de dólares de financiamento externo à infraestrutura estrangeira, provenientes, em boa medida, de bancos de desenvolvimento e bancos comerciais estatais chineses. Em algumas nações, empreendimentos viabilizados com a integração à iniciativa chinesa constituem o maior projeto de todos os tempos, caso do Mandaraka ­Express Train, no Quênia, que reduziu o tempo de viagem entre Nairóbi a Mombaça por ferrovia de 15 para quatro horas e meia.

O ambicioso projeto de integração expande a influência de Pequim

O Brasil continua à margem da iniciativa em meio a um colossal realinhamento de forças que enfraquece o sistema unipolar comandado pelos Estados Unidos e fortalece uma perspectiva multipolar na qual a China, com a Nova Rota da Seda, e a Rússia, sua aliada, se sobressaem. A recente declaração conjunta dos presidentes dos dois países, Xi Jinping e Vladimir Putin, tem imenso significado geopolítico, nas palavras do ex-ministro Celso Amorim, que a considera o fato mais importante desde o fim da Guerra Fria, por expressar o término de uma era de hegemonia mundial quase absoluta dos Estados Unidos. O documento formaliza o apoio da China à reivindicação da Rússia, de não ingresso da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar entre Estados Unidos e países europeus comandada por Washington, e também o suporte da Rússia à China no que se refere a considerar Taiwan parte integrante do território chinês. Além desse apoio recíproco, a declaração defende a necessidade de se levarem em conta os interesses de países mais fracos, entre outros pontos.

A BRI retoma o espírito da Rota da Seda, malha de vias terrestres que, desde o ano 200 antes de Cristo, conectava a atual Xian, na China, a Antioquia, na Ásia Menor, com inúmeras ramificações. O complexo de estradas constituiu a maior rede comercial do Mundo Antigo, importante para o desenvolvimento do Egito, da Mesopotâmia, da China, da Pérsia, da Índia e de Roma, e impulsionou o início da Era Moderna. “Muitas das principais tecnologias que levaram à Revolução Industrial britânica chegaram da China à Europa por meio de comerciantes ao longo da Rota da Seda por terra e mar”, sublinha o economista P­eter ­Nolan, professor de desenvolvimento chinês da Universidade de Cambridge. Em 2013, diz Nolan, Xi Jinping considerou que uma nova Rota da Seda, por terra e mar, de conexão entre a China e o Ocidente, seria uma parte fundamental das relações internacionais do país.

África. No Quênia, a nova ferrovia financiada pelos chineses reduziu o tempo de viagem de Nairóbi a Mombaça de 15 para quatro horas e meia e incrementou a economia local – Imagem: Kenya Railways

Fernández encontrou-se com Jinping na condição de novo presidente da Celac, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos que reúne 33 países e foi rejeitada formalmente pelo governo Bolsonaro em 2020. O presidente argentino voltou de Pequim com o compromisso do governo chinês de desembolsar 23 bilhões de dólares em contratos de financiamento de obras e investimentos nos setores de energia, água e esgotos, transportes, construção de habitações, incremento às exportações, cooperação agrícola e usos pacíficos da energia nuclear, tudo dentro do megaprojeto da Nova Rota da Seda.

O aporte de recursos para investimentos no contexto atual de crise pode gerar efeitos importantes para o dinamismo da economia argentina, além de representar um alívio momentâneo na crônica escassez de divisas que acomete o país. Segundo a newsletter argentina Diálogo Chino, “graças aos swaps de moedas entre os Bancos Centrais dos dois países, a China ajudou a aumentar as reservas internacionais da Argentina”.

Superação. Irradiadora da Covid-19, a China sairá mais forte da pandemia – Imagem: Cristine Rochol/Prefeitura de Porto Alegre/RS

O estreitamento dos laços econômicos entre os dois países envolve, no entanto, um problema, que ocorreria também no caso de um processo semelhante em relação à economia brasileira. “Há o risco de acentuar os traços de uma relação comercial na qual a Argentina exporta sobretudo commodities agrícolas, de baixo valor agregado, e importa da China produtos industrializados, de mais alta tecnologia e maior valor agregado”, alerta De Conti. Um perigo, afirma, de toda integração que envolve países ­heterogêneos, de cristalização e aprofundamento de uma relação assimétrica, com termos de troca desiguais. “Tudo isso dependerá dos passos a serem dados a partir de agora, porque, a depender da inteligência estratégica do governo argentino, pode-se atrair investimento chinês industrial, por exemplo, para eletromobilidade, área em que os chineses são muito desenvolvidos”, destaca o economista.

O ingresso da Argentina na Nova Rota da Seda foi antecedido pela adesão de Cuba, há 60 anos sob o bloqueio econômico-financeiro de países do Ocidente imposto pelos EUA. O pacto, assinado em dezembro, contempla um calendário de projetos bilaterais e investimentos em infraestruturas, tecnologia, cultura, educação, turismo, energia, comunicações e biotecnologia. Algumas reações à integração chinesa com países latino-americanos reforçam a percepção de que a Nova Rota da Seda encarna mudanças geopolíticas de enorme alcance. No Congresso dos Estados Unidos, o representante republicano Matt Gaetz, aliado do ex-presidente Donald Trump, advertiu que, enquanto o governo Biden faz soar os tambores de guerra pela Ucrânia, existe uma ameaça muito mais significativa para os EUA, “perto de casa, na Argentina, que acaba de se unir ao Partido Comunista Chinês ao aderir à iniciativa da Nova Rota da Seda”, conforme noticiou o jornal El Clarín. Segundo Gaetz, a “compra de influência e infraestrutura por parte da China na Argentina, para colaborar em atividades espaciais e de energia nuclear, é um desafio direto à Doutrina Monroe”, referência à determinação do presidente James ­Monroe, dos EUA, em 1823, de repelir tentativas de nações de outros continentes controlarem países da América Latina. O ataque continuou no Senado, com a apresentação, pelo republicano Marco Rubio e pelo democrata Bob Menéndez, de um projeto de lei para conter “o impacto desestabilizador e a influência maligna da China e da Rússia na América Latina”.

Em pouco mais de duas décadas, o comércio chinês com a América Latina pulou de 12 bilhões para 450 bilhões de dólares

Quanto ao sentido econômico dessa integração, há maior convergência, sugere esta manifestação do ex-presidente e conselheiro da Siemens, Joe Kaeser, na última edição do Fórum Econômico Mundial. “Os EUA e a Europa devem aceitar o fato de que o equilíbrio do poder econômico está se deslocando para o Leste. Segundo estimativas, a China se tornará a maior economia do mundo até 2030. E com a Nova Rota da Seda, a influência geopolítica chinesa crescerá. Os países que aderiram à iniciativa representam 70% da população mundial e mais de 50% do PIB global”, ressaltou Kaeser. Em 1985, sublinhou o empresário, a Siemens foi a primeira multinacional a assinar um acordo de cooperação com o governo chinês, pacto que “resultou em uma transferência de tecnologia e conhecimento sem precedentes”.

A Nova Rota da Seda segue uma lógica de expansão da economia chinesa. “Em primeiro lugar, trata-se de um programa que visa o aumento do comércio internacional, para que os produtos chineses cheguem mais rapidamente e com menor custo no mundo todo e, no sentido inverso, produtos importados, sobretudo matérias-primas e insumos industriais, desembarquem mais rapidamente e com menor custo na China. Há também um componente vital para a economia chinesa, que é um acesso mais amplo a fontes de energia, com destaque para petróleo e gás”, ressalta De Conti. Nesse caso, a questão não é apenas barateá-los, mas garantir rotas alternativas para chegarem à China, evitando a extrema dependência de vias sensíveis do ponto de vista geopolítico, como o Estreito de ­Malaca, por onde chega ao país cerca 80% do petróleo importado pela China, rota que pode ser interditada em uma situação de tensão ou conflito com outros países.

A Nova Rota da Seda serve também “para aumentar os investimentos chineses no mundo, que visam dinamizar a economia chinesa, hoje com capacidade ociosa excessiva em muitos setores e, algo que é extremamente importante, ajudar na difusão de padrões tecnológicos chineses pelo globo”. O projeto pode ser útil ainda a um processo de ampliação do crédito de instituições chinesas a estrangeiras e, de modo associado, à internacionalização do renminbi, a moeda chinesa. Por fim, destaca De Conti, atende ao plano de redução das desigualdades regionais, pois a Nova Rota da Seda prevê investimentos importantes no oeste do país, região menos desenvolvida.


A NOVA CARTOGRAFIA DO PODER MUNDIAL, DEFINIDA PELO MEGAPROJETO CHINÊS DE INFRAESTRUTURA

Até fevereiro de 2022, 145 países haviam assinado o Memorando de Entendimentos para fazer parte da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative – BRI)

Fonte: Universidade de Fudan, Shangai


Um aspecto específico, mas relevante, é a política do governo chinês em relação à Covid-19, de tolerância zero ao vírus e de aumento das exportações e doações de vacinas, em especial aos países pobres. A guerra total ao vírus deverá antecipar em cinco anos, para 2028, a escalada da China para o posto de maior economia do mundo, em substituição aos Estados Unidos, segundo a consultoria britânica Centre for Economics and Business Research. Quanto às exportações e doações, elas compõem a chamada “diplomacia da vacina”, canal de facilitação da expansão chinesa no mundo.

Com a expansão do investimento e do comércio chineses, a América Latina tem a oportunidade histórica de sair de seu status de “quintal” dos EUA, subir a escada do desenvolvimento e afirmar uma posição de ator-chave em um mundo cada vez mais multipolar, ressalta ­Kevin P. Gallagher, professor de política de desenvolvimento global na Universidade de Boston, no livro The China ­Triangle: Latin America’s China Boom and the Washington Consensus. ­Gallagher observa que vários governos latino-americanos não consideram mais necessário se submeter ao consenso neoliberal de ­Washington ou suportar a dominação dos EUA, “em grande parte porque acreditam ter uma alternativa na China”.

Na virada do século XXI, sublinha o professor, o comércio com a China representava apenas 1% do total da América Latina, ou 12 bilhões de dólares. Em 2013, era de 289 bilhões e atingiu 450 bilhões em 2021. “Talvez o mais notável seja, entretanto, que a China forneceu enormes quantias de financiamento aos governos latino-americanos para projetos de infraestrutura, mineração e energia.” De acordo com Gallagher, a China canalizou mais de 119 bilhões de dólares em empréstimos e linhas de crédito a governos latino-americanos desde 2003. A região acompanhou o boom chinês e cresceu a uma taxa anual de 3,6% de 2003 a 2013, em forte contraste com as duas décadas anteriores dominadas pelo consenso de Washington, quando a expansão foi de 2,4% ao ano e a desigualdade aumentou, destaca o especialista. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nas asas do dragão “

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