Economia
CNI celebra – de forma equivocada – redução do custo do trabalho
Achatar salários significa comprimir o poder de consumo do trabalhador e se houver uma adesão em massa das empresas, todas venderão menos
O destaque dado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) à queda do custo unitário do trabalho na indústria brasileira, de 16,1% em 2018 na comparação com 2017, na mesma semana em que o IBGE revelou uma explosão de desigualdade de renda no País, diz muito sobre a visão da elite industrial quanto à perspectiva de desenvolvimento inclusivo. O indicador representa, segundo a CNI, o custo em dólar com o trabalho para a produção de uma unidade de produto calculado segundo os resultados da produtividade no trabalho, do salário médio real pago aos trabalhadores e da taxa de câmbio.
Com a redução, o Brasil ficou em segundo lugar no critério entre 11 países. Considerando-se os principais parceiros comerciais, apenas a Argentina, com queda de 27,1%, apresentou “desempenho superior ao brasileiro”, diz o estudo.
Do outro lado da muralha da desigualdade, o 1% mais rico teve aumento de 8,4% na renda do trabalho em relação a 2017 e o rendimento médio mensal de trabalho desse grupo foi quase 34 vezes maior que o da metade mais pobre em 2018, constatou o IBGE na última pesquisa PNAD Contínua. “Isso significa que a parcela de maior renda arrecadou 27.744 reais por mês, em média, enquanto os 50% menos favorecidos ganharam 820 reais”, sublinha a instituição. As rendas do trabalho constituem 75% das rendas totais.
A PNAD mostrou ainda que a proporção de domicílios que recebiam rendimentos do Bolsa Família caiu de 15,9% em 2012 para 13,7% em 2018. O rendimento médio mensal domiciliar dos beneficiários do programa também diminuiu, de 368 reais para 341 reais (o pico foi 398 reais, em 2014).
A julgar pelo posicionamento da CNI, os chamados capitães da indústria sobreviventes da abertura do mercado desde 1990 não levam em conta que achatar salários é comprimir ao mesmo tempo o poder de consumo dos seus empregados. Se as demais empresas fizerem o mesmo, todas venderão menos. Em sentido figurado, dão tiro no pé.
Até mesmo a economista ortodoxa Monica De Bolle, em um tuíte que poderia muito bem ser assinado por algum colega desenvolvimentista, pondera que a desigualdade crescente talvez explique a insuficiência de demanda, pois os últimos dados mostram que, enquanto a renda dos 5% de trabalhadores mais pobres sofreu um declínio de 3%, aquela do 1% mais rico teve um aumento de 8,5%.
Movimento na 25 de Março na semana do Natal. Foto: Paulo Pinto/FotosPublicas
Apostar na elevação da competitividade a partir essencialmente da compressão dos salários indica a opção dos industriais por uma inserção nas cadeias globais de valor limitada aos setores de produção de alimentos, bebidas, têxteis e calçados, menos dinâmicos e tecnologicamente mais precários, intensivos em mão de obra, nos quais os salários têm grande peso no preço final dos produtos, mostra o trabalho “Desenvolvimento, Competitividade e Reforma Trabalhista”, do Cesit, da Unicamp. É um segmento com competidores estabelecidos, entre eles Indonésia, Bangladesh, Vietnã e Paquistão.
A própria CNI admite, no levantamento “Competitividade Brasil 2018-2019”, que o êxito em comprimir salários não significa que o País se tornou mundialmente mais competitivo. Apesar de brilhar no quesito arrocho salarial, ele ocupa a penúltima posição no ranking geral na comparação com 17 países entre desenvolvidos e emergentes e só ganha da Argentina, considerados nove fatores de competitividade. A pesquisa incluiu ainda Austrália, Canadá, Chile, China, Colômbia, Espanha, Indonésia, Índia, Coreia do Sul, México, Peru, Polônia, Rússia, Tailândia, Turquia e África do Sul. O Brasil ficou em 6º lugar em disponibilidade e custo de mão de obra e esta foi a posição mais alta que conseguiu conquistar. Nos demais quesitos, foi de mal a pior, com o 8º posto em tecnologia e inovação, 11º em educação, 12º em estrutura produtiva, escala e concorrência, 15º em infraestrutura e logística, 15º quanto ao peso dos tributos, 16º em ambiente macroeconômico, 16º em ambiente de negócios e 18º lugar, a última posição, em disponibilidade e custo de capital. Neste item, chama atenção o fato de perder até para a Argentina, mergulhada em profunda crise crônica, financeira e econômica.
Não levar em conta o efeito do rebaixamento salarial generalizado na compressão do consumo não é exclusividade do empresariado brasileiro. A falha de percepção é universal e foi denominada pelos economistas como a “falácia de composição”, que consiste em supor que o todo possui as mesmas propriedades das partes que o integram. No caso, se um empresário rebaixa os salários dos empregados, seu ganho será maior, mas, se todos os empresários tomarem a mesma decisão, cairá o consumo dos produtos fabricados pelo conjunto.
Vangloriar-se de um rebaixamento de salários que, se for um comportamento generalizado, contrairá as vendas não é a única postura empresarial contraproducente. Outra é o apoio ao governo Bolsonaro, que, além de comandar a liquidação das reservas nacionais do pré-sal e o desmonte da Petrobras, o que tende a elevar o custo dos combustíveis utilizados pelas empresas, pretende ainda reduzir unilateralmente as tarifas da indústria, de 13,6% para 6,4% em quatro anos, equiparando-a àquelas dos países desenvolvidos que contam, entretanto, com condições gerais muito mais vantajosas de concorrência global, como mostra o trabalho da CNI sobre competitividade. Segundo a Abimaq, a redução eliminaria 20% das 51 mil indústrias desse setor e extinguiria 100 mil empregos.
O desmonte do setor de petróleo sob o comando de Bolsonaro tende a elevar o custo das empresas (Foto: Ag. Petrobras)
Atribuir peso excessivo ao arrocho salarial na competitividade e descomprometer-se com o desenvolvimento econômico e social parece ser uma regra entre o empresariado local, mas há exceções. Roberto Simonsen, o maior líder empresarial desde os anos 1930, criticava a aplicação dos princípios liberais à economia, argumentando que eles não eram praticados em nenhum país desenvolvido e que o processo de industrialização nas nações avançadas contou sempre com apoio decisivo do Estado. Alertava que, enquanto o Brasil tivesse um povo pobre, mal remunerado, jamais conseguiria o desenvolvimento. A maior demonstração da hostilidade dos empresários às propostas de Simonsen foi o “apagamento” da sua memória, atestam Luiz Cesar Faro e Mônica Sinelli, autores do livro Roberto Simonsen, Prelúdio à Indústria. Após vasculhar entidades de classe e entrevistar empresários em busca de informações sobre o biografado, confessaram sua frustração: “Não tivemos êxito. O silêncio do empresariado sobre Roberto Simonsen é ensurdecedor. Ele ressoa o abandono do ideário de entrega e luta em prol do desenvolvimento nacional. É o depoimento mais expressivo: o que não figura na obra”.
Franklin Roosevelt, neto de milionários, foi o presidente dos EUA mais admirado desde Abraham Lincoln e enfrentou o ódio da sua classe por incluir no New Deal, nome do conjunto abrangente de programas executados entre 1933 e 1937 para recuperar a economia da Grande Depressão, medidas como o fortalecimento dos direitos dos trabalhadores, maior proteção social para todos os americanos e a seguridade social, que eliminou quase por completo a pobreza entre os idosos. Aplicou tratamento de choque ao sistema financeiro, reformulou as bases da indústria e da agricultura e estruturou um grande mercado nacional ao aumentar o poder de barganha dos trabalhadores, transformando-os em consumidores. Os ricos não perdoaram. A revista Time publicou, em abril de 1936, um artigo sobre a “raiva profunda” que os ricos sentiam por Roosevelt. “Independente do partido ou da região”, afirmava o dono da revista, Henry Luce, “hoje, com poucas exceções, os integrantes da assim chamada classe alta francamente odeiam Franklin Roosevelt.” Ao liderar a estruturação dos EUA modernos, entretanto, Roosevelt fez mais pelos lucros do empresariado do que todos os demais presidentes do país.
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