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Castelo de cartas

Um mesmo padrão liga a Lojas Americanas à Ambev e à Eletrobras, que Lula gostaria de reestatizar

Tentáculos. Sicupira, Lemann e Telles conseguiram o comando da Eletrobras em uma operação de privatização heterodoxa mesmo para os padrões brasileiros - Imagem: iStockphoto e Editora Sextante
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Um mês após a revelação do rombo de 20 bilhões de ­reais e de dívidas de 43 bilhões na Lojas Americanas, o problema parece longe de uma solução e, ao contrário, agrava-se a cada dia. Até a terça-feira 7, não havia sinal do 1 bilhão de reais que os acionistas Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles prometeram colocar no caixa, a título de empréstimo, para estancar a sangria da empresa, em recuperação judicial desde o dia 19. Uma quantia que está longe do mínimo recomendado por especialistas para dar fôlego à companhia, de cerca de 15 bilhões de reais, na forma de aumento de capital, não de empréstimo.

Sem dinheiro, com capacidade de endividamento e reputação abaladas e em guerra contra os bancos dos quais é cliente, a Americanas afunda rápido em um processo que ameaça contaminar outras empresas do grupo, entre elas a Ambev. A varejista demitiu parte dos 43 mil trabalhadores no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, prepara cortes em São Paulo e colocou em risco milhares de fornecedores. Em Campinas, 60 pequenas e médias empresas que mantêm relações comerciais com a Americanas podem enfrentar problemas de caixa nos próximos meses, alertou a AG Antecipa. O problema desdobrou-se em uma crise política, com o questionamento da privatização da Eletrobras, entregue no ano passado ao mesmo trio bilionário em uma operação polêmica. Na terça-feira 7, o presidente Lula mandou a Advocacia-Geral da União rever o contrato de privatização porque “foi feita uma bandidagem para que o governo não volte a adquirir maioria na Eletrobras”. Segundo vários operadores do mercado, a privatização da holding de energia foi “não clássica”. Houve um aumento de capital, o Tesouro não subscreveu e permitiu que o mercado subscrevesse, e ainda passou o controle para os donos da 3G Capital, associados uns aos outros mediante um acordo de acionistas.

Até agora, os principais acionistas da varejista se limitaram a pedir desculpas e dizer que nada sabiam

Dias antes, Lula havia criticado ­Lemann, segundo o presidente, “vendido como suprassumo do empresário bem-sucedido”, mas que agora “pode sofrer as mesmas consequências de Eike Batista”, preso em 2017 acusado de corrupção e lavagem de dinheiro. “O mercado fica nervoso, muito irritado diante de qualquer palavra que se fale sobre a área social, mas agora um deles joga fora 40 bilhões de ­reais de uma empresa que parecia ser a mais saudável do planeta e esse mercado não fala nada, ele fica em silêncio”, disparou.

Considerada “a maior fraude da história corporativa do Brasil” pelo respeitado gestor de investimentos Luis ­Sthulberger, diretor da Verde Asset, o escândalo da Americanas mancha a elevada reputação do trio bilionário, considerada inabalável após décadas de jornalismo de negócios laudatório. Um comitê independente que investiga as causas do rombo de 20 bilhões concluiu que “há fortes indícios de prática de fraude”. A Comissão de Valores Mobiliários abriu vários inquéritos para investigar os fatos. Há evidências de comportamento questionável do trio bilionário, antes e depois de a crise ­explodir. A Americanas teria tentado sacar 800 milhões de reais do BTG horas antes do escândalo ser detonado, em 11 de janeiro. Segundo os jornais, a operação só não aconteceu porque o pedido foi feito a funcionários sem autonomia para realizá-la de imediato. Em represália, o BTG declarou o vencimento antecipado de uma dívida de 1 bilhão de reais da varejista com o banco. “Os três homens mais ricos do Brasil, ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial ‘do bem’, foram pegos com a mão no caixa daquela que, desde 1982, é uma das principais companhias do trio”, disparou a instituição financeira em uma petição na Justiça, dois dias após o estouro da crise. No segundo semestre do ano passado, diretores venderam 244 milhões de reais em ações da empresa, meses antes da revelação do buraco no balanço.

Os danos causados pela crise da Americanas à economia e à sociedade são de grande monta. A empresa teve sua nota de crédito cortada pelas agências de risco para o grau especulativo da noite para o dia e suas lojas são alvo de ações de despejo. O ensaio de conversa dos maiores acionistas com os bancos credores, no que seria uma tentativa de resolver os problemas, restringiu-se, até agora, à apresentação de justificativas e reafirmações de inocência, segundo fontes dos credores. O Itaú BBA ressaltou em relatório que os “impactos relevantes nos mercados de crédito e de capitais reforçam a cautela” e registrou um aumento das taxas mensais das linhas de crédito para desconto de duplicatas entre 0,1% e 0,3%, além de redução do prazo dos financiamentos, maiores seletividade e exigência de garantias, com risco de elevação da inadimplência. Dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais, a Anbima, apontam o crescimento dos saques dos fundos de renda fixa. Os bancos aumentaram suas provisões para devedores duvidosos. A disputa reverbera nos tribunais, com o rumoroso descumprimento, pela Justiça do Rio de Janeiro, de uma decisão de um tribunal paulista de apreensão de e-mails de 42 executivos da Americanas, a pedido de advogados do Bradesco. Na terça-feira 7, as ações da companhia fecharam em 1,17 real na Bolsa, queda de 13,97% apenas nesse dia. A cotação é um décimo do preço de fechamento de 12 reais registrado no pregão de 11 de janeiro.

Contaminação. A fraude na Americanas respinga em outra companhia gigante do trio bilionário, a Ambev – Imagem: Tânia Rêgo/ABR e Cristiano Santanna/Ambev Brasil

Há entre seis e sete versões sobre qual o modo de operação específico utilizado para cometer a fraude, mas sabe-se que envolveu a manipulação de contas. A Americanas tinha entre 15 bilhões e 17 bilhões de reais em financiamentos a fornecedores feitos por meio de bancos, e que, em vez de constarem como dívida financeira no balanço, foram lançados como dívidas com fornecedores, ressaltou o site especializado Reset. Além disso, esse volume de dívida bancária não estava totalmente refletido na chamada “conta fornecedores”, que relaciona essa categoria de valores devidos. Cada vez que a Americanas pagava juros aos bancos por conta dos financiamentos a fornecedores, a contabilidade da empresa subtraía esses juros do total daquela conta. Com uma despesa financeira artificialmente menor, sublinha o Reset, os lucros divulgados ao longo de anos, que foram a base para o cálculo dos dividendos distribuídos aos acionistas, estavam superavaliados.

O encaminhamento acima não foi uma decisão aleatória de um subalterno, mas a concretização de uma estratégia da cúpula da companhia, sugere esta passagem de Dobre Seus Lucros, de Bob Fifer, apontado como livro de cabeceira de Telles: “Um método fácil de favorecer o balanço da sua empresa este ano é atrasar seus pagamentos. A maioria dos fornecedores prefere esperar para receber a perdê-lo definitivamente como cliente. Passe a pagar suas contas em 45 dias, depois 60 dias, depois em três ou seis meses, no caso dos fornecedores mais tolerantes. Nunca pague uma conta até que o fornecedor pergunte por ela ao menos duas vezes. Certos fornecedores chegam a levar até dois anos para reclamar o pagamento de uma conta”.

A crise da Americanas reavivou, inclusive na mídia internacional, aspectos polêmicos da saga dos bilionários donos da Ambev na formação do maior grupo de cervejarias do mundo. Segundo sublinhou Nick Corbishley, do site Naked ­Capitalism, “Lemann, Telles e Sicupira têm um histórico de burlar ou quebrar as regras e normas de negócios e práticas contábeis não apenas no Brasil. Em 2005, eles foram acusados de abusar do poder de controle após distorcer os objetivos do plano de opção de compra de ações da empresa de bebidas Ambev. Os três gestores foram “também acusados, como diretores da Ambev, de terem violado seus deveres fiduciários para com a empresa”. Semanas atrás, surgiu a suspeita de que a cervejaria deve bilhões de reais em impostos no País. A Associação Brasileira da Indústria de Cerveja, representante de pequenos produtores, acusou a multinacional de acumular 30 bilhões de reais em créditos tributários aos quais não tem direito.

A fraude contamina o financiamento às empresas, pois os bancos estão mais seletivos

O que aconteceu na Lojas Americanas repete “o que se viu no escândalo da Kraft Heinz”, que consistiu em “prática de fraude por manipulação de informações contábeis”, ressalta o BTG na petição mencionada. Em 2013, a 3G Capital comprou a Kraft, em associação com o badalado empresário estadunidense Warren Buffett, operação que mais tarde deu origem à Kraft Heinz, uma das maiores empresas de alimentos do mundo. Em 2019, a companhia anunciou perdas de 15,4 bilhões de dólares e um investidor a processou, sob a alegação de que os executivos da 3G Capital se envolveram em negociações com informações privilegiadas antes da avalanche de más notícias. O processo acabou arquivado, mas alimentou a percepção de que os executivos burlaram as regras. Pouco depois, revelou-se outro rombo, de 1,2 bilhão de dólares. Em 2021, os reguladores federais dos EUA anunciaram um acordo com a empresa sobre o que classificaram como “anos de declarações financeiras falsas”. “De 2015 a 2019, a ­Security Exchange Comission alegou que a Kraft Heinz estava usando todo o arsenal de práticas contábeis obscuras para suavizar seus resultados, que incluíam reconhecimento de descontos não ganhos de fornecedores, manutenção de contratos de fornecedores falsos e enganosos e registro de economias de custos onde não havia nenhuma. A empresa, que concordou em pagar 62 milhões de dólares em multas, relatou deliberadamente lucros falsos e depois se gabou dos supostos ganhos para a comunidade de analistas, de acordo com a SEC”, destaca David Gelles no livro O Homem Que Quebrou o Capitalismo: Como Jack Welch Destruiu o Coração e Esmagou a Alma da América Corporativa – e Como Desfazer o Seu Legado, que destaca as peripécias dos donos da 3G Capital na condição de pupilos diletos do magnata norte-americano.

O caso da Lojas Americanas e os precedentes da Ambev e da Kraft mais do que justificam, do ponto de vista do governo, o questionamento da privatização da Eletrobras. “O negócio está cheio de inconstitucionalidades, mas o Tribunal de Contas da União fingiu não ver. É óbvio qual o método de gestão deles. A Americanas não foi a primeira nem será a última empresa prejudicada. Na Eletrobras farão as mesmas coisas, com certeza”, dispara Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. “A CVM e o Judiciário não veem irregularidades, o Ministério Público finge que não vê, resta a este governo entender que a Eletrobras é um problema. E que não adianta enfiar a cabeça na areia como avestruz.”

O especialista prossegue: “Das duas uma, ou eles estatizam a Eletrobras agora, em um processo mais ou menos controlado e que eles conseguem precificar de maneira planejada, ou então vai estourar daqui a dois ou três anos de modo semelhante ao caso da Americanas e eles vão ser obrigados a assumir, porque a empresa é prestadora de serviço público. Só que, neste caso, o prejuízo será muito maior e a crise, mais ampla”. O problema, diz ­Bercovici, é que o governo ainda não acordou para esse fato. Fazer um acordo de acionistas não é solução, explica, porque o primeiro minoritário que se sentir prejudicado entra com uma ação aqui e nos EUA alegando que a reestatização vai prejudicar os interesses deles, que foi uma manobra para controlar a empresa sem poder. É preciso aprender com o caso da Vale, que o governo não quis reestatizar e resultou nas tragédias de Brumadinho e Mariana. Quanto às fraudes cometidas pelo grupo na Americanas, dificilmente poderiam ajudar o governo a reaver a antiga estatal. “O único jeito, que iria repercutir indiretamente na Eletrobras, é se esses bilionários fossem impedidos de atuar no mercado financeiro. Por meio, por exemplo, de uma condenação por parte da CVM ou da sua equivalente nos EUA, a SEC. Neste caso, eles continuarão sendo proprietários de ações, mas terão de passar a gestão para outros”, ressalta Bercovici. •

Outro lado

“Em uma notícia publicada em 01/02/2023, a Ambev foi acusada indevidamente por uma associação formada por algumas cervejarias concorrentes de ter um suposto “rombo” em suas demonstrações financeiras. 

A acusação é falsa e acreditamos que foi promovida de forma oportunista e irresponsável.  

A notícia foi publicada sem que a veracidade dos fatos fosse devidamente checada e sem que a nossa posição fosse ouvida.

Calculamos nossos créditos tributários com base na legislação e nossas demonstrações financeiras estão de acordo com as regras jurídicas e contábeis, com ampla transparência sobre os litígios tributários envolvendo a companhia.

Mais informações sobre os referidos litígios podem ser encontradas nos diversos documentos divulgados pela Ambev ao mercado, incluindo o item 4.6 do Formulário de Referência (2021), o Formulário 20-F (2021), as Demonstrações Financeiras (2021) e o Formulário de Informações Trimestrais – ITR referente ao 3º trimestre de 2022.

Litígios tributários devidamente divulgados são muito diferentes de um suposto “rombo”.

A notícia induz o leitor a erro.  Não existe “rombo” algum. Temos litígios tributários em que divergimos da interpretação do Fisco. Esses litígios são o reflexo da complexidade do sistema tributário brasileiro e uma realidade de muitas empresas. 

Além disso, a própria imprensa esclareceu que o valor mencionado se refere a discussões de todo o setor de refrigerantes, e não apenas da Ambev.

Somos uma empresa brasileira que expandiu internacionalmente e hoje opera em comunidades em 18 países, com uma cultura baseada na ética e gerando impacto positivo nas comunidades onde vivemos e operamos. 

Temos muito orgulho das nossas origens, e de a Ambev ter construído uma cultura organizacional própria, que há alguns anos vem evoluindo como parte da nossa jornada de transformação do negócio. Essa evolução inclui a visão de crescimento compartilhado com o nosso ecossistema e as nossas comunidades e o incentivo à colaboração, escuta ativa e visão de longo prazo. 

Estamos aqui e sempre estaremos ao lado dos brasileiros.”

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Castelo de cartas “

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