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Cara ou coroa

A Argentina paga com yuans parte da dívida com o FMI e reabre o debate sobre a desdolarização do mundo

Cara ou coroa
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Alternativa. Fernández acertou com Xi Jinping operações de swap na moeda chinesa. Massa, o ministro da Economia argentino, e Lula conversaram sobre o uso de outras opções além do dólar nas transações comerciais entre os países – Imagem: Rao Aimin/Xinhua/AFP e Redes sociais
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O Fundo Monetário Internacional, ao que parece, não é mais aquele do tempo do domínio absoluto do dólar e dos Estados Unidos sobre os demais países, e essa é uma boa notícia para o Sul Global, inclusive para o Brasil, apesar de não termos mais dívidas com a instituição desde o segundo governo Lula. O pagamento ao FMI, no começo do mês, de uma parcela do débito da Argentina equivalente a 1 bilhão de dólares, com uso de yuans em lugar da moeda estadunidense, configura um desafio à hegemonia do dólar em uma escala difícil de dimensionar por aqueles que medem a redução da tutela monetária norte-americana global apenas pela observação do aumento do uso da moeda chinesa nas transações comerciais.

A Argentina pagou também o equivalente a 1,7 bilhão de dólares por meio de Direitos Especiais de Saque, a moeda do FMI, formada por uma cesta das principais moedas do mundo. O yuan é uma das cinco moedas que os países podem utilizar para cumprir com as suas obrigações com o Fundo. “O pagamento dos vencimentos de junho foi feito sem o uso de dólares”, confirmou o ministro da Economia e candidato presidencial ­Sergio Massa, ao jornal El País. O governo prossegue as negociações para a reestruturação da sua dívida e pediu a reformulação das metas definidas com o FMI em 2022, que não conseguiu cumprir devido à pior seca da história, com perdas no cultivo de soja e outras culturas superiores a 20 bilhões de dólares. As eleições gerais estão marcadas para outubro.

O dólar ainda é francamente dominante, mas as mudanças se dão aos poucos

A proporção de yuans nas trocas comerciais internacionais em geral tem aumentado, mas ainda é muito pequena na comparação com a parte realizada em dólar. É preciso levar em conta, entretanto, que a quitação de débito de um país com a moeda de outro põe em xeque uma das principais razões de ser do FMI, o seu papel de credor de última instância, supervisionado de perto pelos Estados Unidos que, com 16% dos votos dos países-membros, controlam as decisões mais importantes da instituição, que exigem maioria de 85%. O fato de os dois países envolvidos na quitação serem integrantes do Sul Global, e de um deles ser a segunda potência mundial, acrescenta ineditismo à operação. “A possibilidade de pagamento em yuan é um passo importante, em um momento crítico”, afirma o economista ­Bruno De Conti, professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Brasil-China, da mesma universidade. Entre inúmeras consequências, diz, há o questionamento da visão habitual de que o FMI é o emprestador de última instância do planeta, visto ter sido esse um dos principais motivos da sua criação, em 1944, na conferência de Bretton Woods, como uma das instituições internacionais mais importantes do pós-Segunda Guerra Mundial.

“A China está emprestando para a Argentina pagar sua dívida com o FMI. Ou seja, é como se a China, neste caso, estivesse sendo o emprestador de última instância, por meio das suas linhas de swap. Isso não é, portanto, uma transformação menor. Aconteceu agora com a Argentina, episodicamente, mas pode vir a ocorrer com outros países muito endividados e se repetir com a própria Argentina”, sublinha De Conti. No fim das contas, prossegue o economista, é como se a Argentina estivesse trocando dívida com o FMI por dívida com a China. As linhas de swap foram negociadas pelo presidente Alberto Fernández com o presidente Xi Jinping no ano passado, em Pequim.

Pressão. Os EUA usam o dólar para pressionar a Rússia, que acaba de romper o acordo com a Ucrânia de exportação de grãos – Imagem: Redes sociais

Outro aspecto relevante é que a operação ocorre em um cenário de escassez plena de dólares, devido à crise financeira e ainda por causa da seca que reduziu a entrada de divisas provenientes das exportações, principalmente daquelas de soja. “É um cenário limite, em um ano eleitoral, com o ministro da Economia Sergio Massa como candidato”, pondera o professor da Unicamp.

Em encontro no início deste mês, Lula e Massa reforçaram os compromissos de avanço na desdolarização concretizada em transações bilaterais com moedas locais e uma estratégia em comum, que inclui a reindustrialização, em um possível acordo entre a União Europeia e o Mercosul. No recente encontro Celac-UE, essa pauta foi reafirmada.

Seria precipitado, entretanto, concluir que o pagamento feito ao FMI indica que a substituição do dólar pelo yuan como moeda chave do globo estaria prestes a ocorrer. “Números muito eloquentes mostram que a moeda chave do globo continua a ser o dólar e isso não deve mudar no curto prazo. O sistema monetário internacional é caracterizado por uma certa inércia, portanto as mudanças são lentas. Não se deve cair nesse exagero”, alerta o economista.

É inegável, contudo, a existência de um processo em curso de aumento da importância do yuan, com um passo relevante entre 2015 e 2016, quando o FMI incluiu a moeda chinesa na sua cesta de moedas dos Direitos Especiais de Saque, uma decorrência do aumento da importância da China para a economia global, em particular para o comércio. A novidade de a Argentina pagar uma parcela da sua dívida em yuan é um passo adicional nessa direção. “Esse fato específico faz parte de um debate geopolítico muito mais amplo, em relação à funcionalidade do sistema monetário com base no dólar, particularmente por países mais sensíveis do ponto de vista geopolítico, como a Rússia em primeiro lugar, mas a China junto”, destaca De Conti. É um reforço do discurso da necessidade de desdolarização das economias nacionais, um passo importante no momento em que processos de reindustrialização se generalizam no mundo.

Há outras iniciativas de países do Sul Global para reduzir a dependência da moeda dos EUA

Linhas de swap em yuan foram criadas logo depois da eclosão da crise dos subprimes, quando a China ampliou as políticas de internacionalização da sua moeda em várias frentes, inclusive com a criação de centros offshore. Uma das estratégias utilizadas foi a abertura dessas linhas de swap para prover liquidez em moeda chinesa a outros países. O Brasil foi incluído, mas esses swaps não foram renovados, enquanto a Argentina renegociou e ampliou essas linhas, para uso comercial ou outras finalidades.

A recente proposta dos EUA de retomar o sequestro das reservas cambiais e dos depósitos de ouro da Rússia no exterior para pressionar Vladimir Putin a recuar na guerra da Ucrânia tende não só a multiplicar as iniciativas de desdolarização como a aumentar a fila de países que pretendem fazer parte do bloco dos BRICS, liderado pela China e composto por Brasil, Índia, Rússia e África do Sul. A Argentina figura entre os primeiros lugares na lista de interessados em aderir.

O Brasil está entre aqueles que encamparam o discurso da desdolarização, mais especificamente do uso das moedas locais para transações bilaterais, tanto que acaba de firmar um acordo com a China em operações comerciais em reais e yuans. No lado oposto, a secretária do Tesouro dos EUA, ­Janet Yellen, questionou, no mês passado, a proposta de criação de uma moeda dos Brics

Ameaça. Yellen critica a ideia de uma moeda comum dos BRICS – Imagem: Brandon Payne/Banco Mundial

Um ingrediente relevante para o inédito pagamento ao FMI é o fato de a Argentina ter um centro de transações offshore de yuan, em Buenos Aires. Há vários desses centros espalhados pelo mundo, um deles instalado no Chile e o próximo a ser aberto no Brasil, conforme definido em acordo firmado durante a visita oficial do presidente Lula à China, em abril. Os centros permitem a troca direta entre yuans e a moeda local, sem passar pelo dólar. “Isso tira o dólar da jogada, tem redução de custos de transação, mas contempla também o intuito de evitar a moeda hegemônica nesse esforço de desdolarização”, ressalta De Conti.

Segundo a embaixada da China na Argentina, o centro de transações offshore em yuan de Buenos Aires é uma sucursal do Banco Industrial e Comercial do país asiático, que em 2015 foi autorizado pelo Banco Popular da China, o banco central, a atuar como uma instituição de compensação para negócios em yuan no país latino-americano. A prática facilita o uso do yuan em transações bilaterais entre a China e a Argentina e também a promoção do comércio e do investimento, segundo a embaixada. Um ano antes, as duas nações firmaram o acordo de swap cambial em yuans equivalentes a 11 bilhões de dólares, renovado desde então. “Essa quitação da Argentina no FMI significa que o yuan está funcionando como moeda reserva, de pagamento internacional. Eles estão avançando em cima da hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional. A substituição de uma moeda por outra começa assim. É preciso lembrar que, um pouco antes do fim da Primeira Guerra Mundial, o dólar começou a disputar com a libra e foi ganhando peso”, explica o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial desta revista. A estabilização alemã, prossegue Belluzzo, foi feita com empréstimo em dólar, pelo Banco Morgan. “Por isso o Banco dos BRICS é importante, porque pode ampliar esse movimento, por meio do crédito denominado em yuan e pela emissão de yuans também. Ou de qualquer outra moeda do banco. Isso é um sinal ainda mais sensível. O sistema monetário é um sistema bancário.” •

Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.

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