Economia

Cabo de guerra

Ao reafirmar compromissos de campanha e questionar a rigidez das regras fiscais, Lula enfurece o mercado

Política econômica. A mudança de rota traz redução de ganhos no curto prazo e ampliação do faturamento adiante, mas o mercado exige lucro instantâneo - Imagem: Antonio Cruz/ABR e Miguel Schincariol/AFP
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Ao defender enfaticamente os interesses da sociedade, em especial da sua parcela mais pobre, Lula viu-se torpedeado pelos agentes do sistema financeiro. Em discurso proferido na quinta-feira 10, em Brasília, além de reafirmar os pontos centrais da campanha, o presidente marcou uma linha divisória, da qual garante não estar disposto a recuar: acabar com a fome, aumentar o salário mínimo e trocar o teto de gastos por outra regra fiscal.

A tarefa mais urgente, articulada tanto pelo líder petista durante a COP-27 quanto por políticos e integrantes da equipe de transição, em Brasília, é assegurar recursos extrateto da ordem de 175 bilhões de reais para manter o Bolsa Família de 600 reais por mês, assim como os 150 ­reais adicionais para os pais beneficiários com filhos de até 6 anos de idade.

Lula pediu àqueles que discutem com seriedade o teto de gastos que adotem a mesma postura em relação à questão social e indagou por que o povo pobre não está na planilha da discussão macroeconômica. “A nossa regra de ouro é garantir que nenhuma criança vá dormir sem tomar um copo de leite e acorde sem ter um pão com manteiga”, disse o presidente.

Em 143 países, a austeridade mina a capacidade dos governos de fornecer serviços essenciais ao povo

O chamado mercado não gostou. A Bolsa de Valores caiu mais de 4%, para 108.811 pontos, e o dólar subiu para 5,39 reais. “O mercado fica nervoso à toa. É engraçado que o mercado não ficou nervoso nos quatro anos de Bolsonaro”, ironizou Lula. Impelida também pelas consequências do aumento da inflação, após a queda induzida pelo governo com estimulantes de curto prazo, e por especulação, a turbulência não mostrou fôlego. Na quarta-feira 16, a Bolsa alcançou 111.649 pontos às 11h30 e o dólar estava cotado a 5,31 reais.

A reação do mercado, segundo analistas, está associada a três fatores. O primeiro deles é que a questão do limite fiscal é vista por muitos como um dogma, algo sagrado e, portanto, não suscetível às contestações acadêmicas. O segundo é que o mercado analisa o governo como uma empresa, quer enxergar a evolução das receitas e das despesas, com a expectativa de que as receitas cresçam a taxas superiores às das despesas. Hoje, com a taxa de juros de IPCA mais 6%, que é o que se paga na emissão de títulos públicos do Tesouro, e o PIB crescendo a IPCA mais 1%, fica claro que a dívida vai crescer mais do que o PIB. Isso gera preocupação, ainda mais no contexto de pressões para tornar o Bolsa Família uma exceção à regra fiscal do teto, sem formular uma nova regra.

A leitura dominante entre os participantes do mercado é de que, nesta situação, eles não conseguem fazer projeções, não têm controle. O terceiro fator é a nomeação, para a equipe de transição, de um número significativo de ex-integrantes do governo Dilma Rousseff, os quais, de acordo com alguns agentes do mercado, nutrem um sentimento de revanchismo em relação ao mercado, oposto àquele que acreditam inspirar Lula.

Debacle. No último ano de Bolsonaro, o Enem teve 3,5 milhões de inscritos, menos da metade dos 8,7 milhões de 2014 – Imagem: Patrick Marinho/Redes da Maré

As explicações acima ajudam a entender por que o mercado se mostrou complacente em relação aos furos do teto de gastos pelo governo no total de 829 bilhões de reais entre 2020 e 2022 e, somente agora, se opõe a uma fenda de 175 bilhões. “Acho que tem um elemento aí do conflito distributivo da sociedade brasileira, no sentido de que uma expansão fiscal acaba tendo um impacto de expandir o mercado interno, de permitir um mercado de trabalho mais dinâmico, que trabalhadores tenham maior poder de barganha para aumentar os seus salários, isso tudo representa uma ameaça a alguns setores da sociedade”, ressalta a economista Julia Braga, pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense e ex-assessora do Ministério do Planejamento.

Talvez exista, especula Braga, uma certa noção de macroeconomia muito contaminada por uma visão teórica específica, que vem sendo questionada no mundo inteiro, mas, no Brasil, ainda encontra adeptos ferrenhos. Ela consiste na convicção de que qualquer expansão do gasto público vai ter impacto inflacionário e que isso vai acabar em fuga de capitais ou em desmonte de posições no mercado financeiro, desvalorização cambial e consequente inflação. Acham ainda que vai ter excesso de demanda agregada e a oferta não vai conseguir acompanhar.

“É uma visão muito limitada, deturpada e caricata, porque a economia não funciona dessa forma”, sublinha Braga. Esse tipo de relação, acrescenta, acaba acontecendo somente em alguns cenários e não numa economia como a nossa, em que ainda há uma taxa de desemprego alta, salários sem aumento real por longo período e excesso de capacidade produtiva, apesar de, no longo prazo, isso nem ser um problema, porque a capacidade produtiva aumenta quando há expansão da demanda.

O fato de a prioridade ser, outra vez, acabar com a fome, dá uma medida do retrocesso dos anos de governo Temer e Bolsonaro

O economista Eduardo Costa Pinto, do Instituto de Economia da UFRJ, chama atenção para o fato de que, desde setembro do ano passado, Lula reafirma a necessidade de mexer na política de preços e na estratégia de investimentos da Petrobras, aumentar o investimento público, colocar o rico no Imposto de Renda, colocar o pobre no Orçamento e rever parte da reforma trabalhista. “Este é o cenário da reação do mercado a este discurso do Lula. Ele confirma que vai manter esses pontos e isso vai gerar uma reconfiguração distributiva entre salários e lucros no curto prazo.”

As medidas antecipadas pelo governo eleito vão valorizar os salários e, num primeiro momento, aumentar os custos. No médio prazo, contudo, as empresas, com a economia girando mais dinheiro, mais renda e mais emprego, venderão e lucrarão mais. “Mas, na lógica do mercado financeirizado, elas querem saber do presente. Elas estão lucrando muito, e assim tem sido nos últimos três anos, à custa da incorporação de pequenas e médias empresas e do arrocho da remuneração dos trabalhadores.”

A insubmissão de Lula ao mercado candidata o petista a uma posição de vanguarda no movimento crescente à austeridade, que se mantém como política econômica hegemônica mesmo após o seu fracasso na crise de 2008. Segundo o relatório Acabar com a ­austeridade: um exame global sobre cortes orçamentários e reformas sociais prejudiciais em 2022-25, da Universidade ­Colúmbia, publicado em setembro, 143 países, sendo 94 em desenvolvimento, estão implementando medidas políticas que minam a capacidade dos governos de fornecer educação, saúde, proteção social e outros serviços públicos.

Manifestações de rua contra as políticas de austeridade multiplicam-se no Reino Unido, na Hungria e em outros paí­ses da Europa. A Alemanha adotou um teto de preços do gás para o consumidor individual e manteve livre o preço para as empresas, medidas implantadas também na Áustria. A União Europeia concordou em impor um imposto temporário sobre os lucros extraordinários das empresas de energia e alguns países pretendem estender a medida também para o setor de alimentos, que obteve lucros enormes com a disparada dos preços. Todas essas medidas, cabe destacar, contrariam a regra dominante de austeridade nos gastos do governo e de entregar o comando da economia somente ao mercado.

Londres. Mesmo com a demissão de Truss, os protestos antiausteridade prosseguem – Imagem: Justin Allis/AFP

“Os cidadãos devem ser capazes de influenciar o curso do governo por meio de eleições. Se uma mudança de governo não pode se traduzir em políticas diferentes, a democracia fica incapacitada. Muitas democracias maduras podem muito bem estar se aproximando de tal situação ao enfrentar a crise fiscal”, alertam Armin Schäfer, professor de Política Comparada na Universidade de Mainz, na Alemanha, e Wolfgang Streeck, diretor emérito do Instituto Max Planck para o Estudo de Sociedades, em Colônia, no estudo Politics in The Age of Austerity. Por quase três décadas, os países da OCDE têm, aos trancos e barrancos, incorrido em déficits e dívidas acumulados. O aumento do pagamento de juros e o amadurecimento do Estado de Bem-Estar Social significaram que uma parte cada vez menor da receita do governo está disponível, hoje, para gastos discricionários e investimento social.

“Qualquer que seja o partido que assuma o cargo”, sublinham Schäfer e ­Streeck, “ele ficará de mãos atadas por decisões passadas. A atual crise financeira e fiscal apenas exacerbou o encolhimento de longo prazo da margem de manobra dos governos. Como consequência, os projetos de mudança de políticas perderam credibilidade.”

Um suporte importante para a discussão da mudança de política econômica no horizonte foi desenvolvido pelo economista André Lara Resende, um dos integrantes da equipe de transição. No texto Diretrizes de Políticas Públicas para 2023 – Elementos para uma Estratégia de Retomada do Crescimento Sustentável e Inclusão Social, Resende apresenta uma bem articulada “proposta de políticas públicas para a próxima década, cujo objetivo é a formulação de uma estratégia de retomada do crescimento, sustentável e socialmente inclusiva”. A proposição deve partir da constatação de que as políticas públicas são responsabilidade do Estado. “Sem governo e Estado competentes, não há como formular e implementar políticas públicas.” O trabalho, com cerca de 30 páginas, foi publicado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais.

Ao afirmar que a “prioridade zero” é, outra vez, acabar com a fome, Lula busca reverter o retrocesso dos governos Temer e Bolsonaro. A extrema pobreza voltou a subir, o orçamento da Saúde será o menor desde 2014, isso em meio ao recrudescimento da pandemia e com vacinação em queda. O total de candidatos inscritos ao Enem caiu de 8,7 milhões, em 2014, para apenas 3,5 milhões neste ano. Estes são apenas alguns dos indicadores mais recentes da devastação operada. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cabo de guerra “

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