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Brinquedos de príncipe

Do golfe ao futebol, Mohammed bin Salman usa o esporte para limpar a imagem da Arábia Saudita

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Reforço. Benzema se junta a Cristiano Ronaldo na liga árabe – Imagem: Ittihad Club
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Nem sempre uma estrela multimilionária do esporte é um peão num jogo de poder global, mas essa foi a situação em que Rory ­McIlroy se encontrou no início de julho. O norte-irlandês, atualmente classificado como terceiro melhor jogador de golfe do mundo, teve de explicar como se sentia depois de sua longa campanha para resistir a uma competição perturbadora da Arábia Saudita terminar com o país do Golfo compartilhando o controle da totalidade de seu esporte. “É difícil para mim não sentar aqui e me sentir um pouco como um cordeiro sacrificado e sentir que me expus, e é isso que acontece”, disse.

McIlroy teria recusado centenas de milhões de libras esterlinas para participar de um torneio global pago pelo Fundo de Investimento Público saudita. O LIV Golf era uma competição baseada em equipes que parecia menos com o mundo do golfe tradicional e mais com uma ­boate de Las Vegas. As equipes, compostas por estrelas recrutadas por altas somas, eram chamadas de coisas como “Smash” e “4 Aces”. Havia música tocando nos fairways. Seu slogan era “Golfe, mas mais alto”. Donald Trump era um grande fã, e vários eventos inaugurais do LIV foram realizados em seus campos.

Também foi uma espécie de fracasso. O LIV não conseguiu garantir um contrato de tevê para sua primeira temporada. Os frequentadores eram geralmente poucos e apáticos. Apenas um jogador classificado entre os dez melhores do esporte se inscreveu. Depois, houve os processos judiciais, indo e vindo entre o LIV e o PGA Tour, a tradicional potência do jogo masculino. Foi um ano de acrimônia como o esporte elegante nunca tinha visto. E então, de repente, acabou. Na manhã do dia 6, o PGA anunciou que se fundiria com o LIV e o DP World Tour, com sede na Europa, “num acordo histórico para unificar o jogo de golfe em nível global”.

Circo. Entreter os súditos e o resto do planeta é o plano de Bin Salman – Imagem: Presidência da Rússia

A notícia foi uma bomba no mundo do esporte e gerou intensa especulação sobre se a Arábia Saudita havia efetivamente comprado o golfe. Também levantou questões sobre o que o país deseja alcançar com sua estratégia expansiva de investir no esporte profissional e até que ponto espera “limpar esportivamente” seu abominável histórico de direitos humanos.

Pois o golfe não é o único esporte que a Arábia Saudita passou 2022 tentando perturbar. No mesmo dia em que o ­acordo do LIV foi anunciado, Karim Benzema, atual Bola de Ouro, estava a caminho de Riad para negociar com o time saudita Al-Ittihad, da Pro League, um contrato de dois anos avaliado na faixa de 160 milhões de libras (aproximadamente 1 bilhão de reais). Benzema não é o primeiro, soma-se a Cristiano Ronaldo, que assinou com um clube rival, o Al-Nassr, em janeiro, e também não será o último.

Às vezes, no fim da temporada europeia, parecia que todo jogador de futebol de classe mundial mais velho estava ou seria vinculado a um clube saudita. Os salários que esses clubes, quatro dos quais agora pertencem ao FIP, podem oferecer vão muito além de qualquer coisa que os maiores clubes da Europa poderiam pagar. A influência do dinheiro saudita chegou às costas do Reino Unido com a propriedade do Newcastle United pelo FIP, enquanto o país também espera sediar a Copa do Mundo de 2030.

O fundo soberano do país tem mais de 3 trilhões de dólares

A Arábia Saudita tem um contrato de dez anos para sediar um Grande Prêmio de Fórmula 1 a cada temporada, e o boato é que eles gostariam de sediar outro. Enquanto isso, o mundo do boxe gira cada vez mais em torno de Jedá e Riad, em vez de Madison Square Garden e ­Wembley. Anthony Joshua foi um pioneiro ao levar a revanche do campeonato com ­Andy Ruiz Jr. para a Arábia Saudita em 2019. Agora ele é um dos quatro ­pesos-pesados, ao lado de Tyson Fury, Oleksandr Usyk e Deontay Wilder, cogitados para um ­megashow no país no fim do ano.

Com suas reservas estimadas em mais de 500 bilhões de libras (mais de 3 trilhões de dólares), o FIP pode se dar ao luxo de gastar muito. E, de acordo com Kristian Ulrichsen, pesquisador do Oriente Médio no Instituto Baker de Políticas Públicas da Universidade Rice, em Houston, Texas, esses acordos são baseados no que ele descreve como um “retorno inconvencional do investimento”. Os benefícios “provavelmente serão baseados tanto em objetivos estratégicos quanto comerciais, e o retorno pode ser tanto intangível quanto quantificável”, afirma. “O aspecto estratégico do acordo é que o golfe atinge um segmento afluente da ‘América média’ e contribui para mudar a maneira como os cidadãos pensam e falam sobre a Arábia Saudita, longe de uma narrativa enraizada no 11 de Setembro, no assassinato de Jamal Khashoggi e na guerra no Iêmen.”

Domínio. McIlroy, ídolo do golfe, não conseguiu escapar do apetite árabe, que inclui a Fórmula 1 e o boxe – Imagem: F1, Diriyah Arena e Sean M.Haffey/Getty Images/AFP

As autoridades sauditas alegaram que os investimentos nada têm a ver com geo­política. “Nós o organizamos para o povo, para a juventude”, disse o ministro dos esportes saudita, príncipe ­Abdulaziz bin Turki al-Faisal, sobre o Grande Prêmio deste ano. “Há um grande interesse, mas também uma grande participação da comunidade do reino. Quando hospedamos a luta Joshua-Ruiz Jr., havia apenas seis academias na Arábia Saudita que tinham boxe. Agora temos 57, e a participação no esporte cresceu 300%.”

É possível ter dúvidas sobre essas reivindicações. Como provaram as Olimpía­das de Londres, eventos esportivos de alto nível não garantem um legado esportivo, por mais grandiosa que seja a infraestrutura. Pontos de interrogação semelhantes pairam sobre a estratégia esportiva global. O Newcastle se classificou para a Champions League em sua primeira temporada completa sob a propriedade do FIP, seguindo um caminho traçado pelos rivais do golfo, os Emirados Árabes Unidos, e o xeque Mansour bin Zayed al-Nahyan, de Abu Dhabi, dono do Manchester City. Mas jogadas maiores no estilo LIV vêm com problemas. “O desafio com o LIV sempre será sua legitimidade como competição”, diz Omar Chaudhuri, diretor de inteligência da consultoria esportiva Twenty First Group. “Esse é um dos grandes marcadores do esporte, certo? O esporte tem que sentir que significa algo.”

Pode ser que a estratégia do FIP, impulsionada não pelos resultados financeiros anuais, mas pelas ambições de seu governante, o príncipe herdeiro ­Mohammed bin Salman, signifique que ele possa operar numa escala de tempo diferente de praticamente todas as outras partes interessadas no esporte. O grande documento de Bin Salman, Visão 2030, quer que a economia de seu país se diversifique, deixando de depender do petróleo. E mesmo que os investimentos não gerem um grande retorno agora, poderão gerar no futuro.

O domínio dos eventos esportivos será capaz de substituir a renda do petróleo?

“Acho que, do jeito que está, provavelmente não”, diz Chaudhuri sobre a chance de o futebol saudita criar um produto de sucesso financeiro. “Mas, em última análise, se você chegar a um estágio em que tenha legitimidade e controle de todo o ecossistema, certamente poderá. Os níveis de dinheiro em jogo estão completamente fora de sintonia com o que vemos em outros cenários de investimento.”

Existe uma maneira de funcionar financeiramente, sugere Chaudhuri, mas não é algo que os fãs de esportes em outras partes do mundo possam apreciar. “Se você chegar ao estágio em que tem o controle do ecossistema, fica muito mais fácil controlar os custos, gerenciar a comercialização do seu ativo e assim por diante. Não me surpreenderia se houvesse um mundo, talvez não daqui a dez ou mesmo 20 anos, talvez 40, onde do ponto de vista puramente financeiro esses investimentos façam muito mais sentido.” •

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

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