Economia

“Brasil hoje não tem a posição no mercado que tinha no século XIX”

Autor de livro sobre como os trens impulsionaram a economia, pesquisador norte-americano critica as escolhas do Brasil ao longo do século XX

Ferrovia abandonada no Brasil: no início do século 20, país tinha 25 mil quilômetros de linhas férreas funcionando
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Por João Soares

Se o Brasil do século 19 era abundante em recursos naturais e não tinha a instabilidade política de seus vizinhos, por que só registrou crescimento econômico na transição para o século XX? Essa questão intrigava William Summerhill, professor do Instituto de América Latina da Universidade da Califórnia (UCLA).

Sua tentativa de responder a essa inquietação resultou no livro Trilhos do desenvolvimento, publicado originalmente em 2003, mas só agora traduzido ao português. A principal conclusão do estudo é que foi com a economia através da expansão da malha ferroviária que se liberou recursos para outros setores da economia. “Se, em 1913, o Brasil não tivesse ferrovias e usasse somente as carroças, perderia quase 20% do PIB”, aponta Summerhill.

Em entrevista à DW, ele critica as escolhas tomadas ao longo do século 20 na infraestrutura e ressalta a importância de implementar um sistema multimodal. No entanto, reconhece que a tarefa é desafiadora. “Por incrível que pareça, o Brasil não tem hoje a posição no mercado internacional que tinha no século XIX”, diz.

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DW Brasil: Como surgiu o interesse pelo sistema ferroviário brasileiro em um período tão específico?

William Summerhill: No início, não tinha um interesse específico em pesquisar as ferrovias do Brasil. O que chamava atenção, na verdade, era o fato de a economia quase não ter crescido em termos de PIB per capita no século 19, mesmo sendo um país de dimensões continentais, repleto de recursos naturais.

Era um mistério, porque o Brasil não tinha problemas de estabilidade política, como a Argentina e o México. Havia revoltas separatistas regionais, mas tinha uma estabilidade institucional de dar inveja aos outros países da América Latina. Por que, então, a economia brasileira não cresceu ao longo desse século?

O economista americano Nathaniel Leff, que começou a carreira fazendo pesquisas sobre a história econômica do Brasil, conjecturou que o custo de transporte no Brasil era tão alto que teria atrapalhado a integração de mercados regionais, pois criou um desafio muito grande para expandir a fronteira econômica além do litoral do país. Eu peguei essa conjectura do Leff e transformei em hipótese sobre a história econômica do Brasil.

Para testá-la, eu tinha que entrar nessa pesquisa sobre transportes e fazer uma comparação entre o custo de transporte com e sem ferrovias, para criar uma estimativa, baseada na análise econômica moderna, de qual era o impacto das ferrovias no Brasil. Mergulhei nessa pesquisa para tentar entender melhor o problema da falta de crescimento no século XIX e a transição para um crescimento rápido no século XX.

DW: E qual foi a diferença de custo do transporte com a introdução das ferrovias?

WS: Se, em 1913, o Brasil não tivesse ferrovias e usasse somente as carroças, perderia quase 20% do PIB. Essa porção é grande, em comparação a outros países em que pesquisadores fizeram estudos parecidos sobre o impacto econômico das ferrovias. No século XIX, o transporte terrestre era muito caro no Brasil por causa da topografia.

O transporte fluvial só possibilitou a interligação de lugares próximos. Em geral, as áreas onde havia rios muito navegáveis, como o Amazonas, não eram propícias para a produção intensiva de agricultura. Lugares com terras boas para a agricultura produtiva careciam de modos naturais e baratos de transporte. Era necessário algum tipo de melhoria em termos de transporte terrestre, devido à topografia.

Foi muito difícil sair da zona do litoral para o interior. No século XIX, isso aconteceu em poucos lugares. Tinha acontecido em Minas Gerais por causa da mineração. Mesmo assim, a topografia é de difícil transporte. A ferrovia diminuiu muito o custo de levar o produto do interior para o litoral, e os importados dos portos para o interior.

Custava menos em sentido de recursos reais – mão de obra e capitais. Por custar menos, a implantação da ferrovia soltou recursos para serem empregados em outros setores de atividade. Esta é a fonte dos ganhos em PIB per capita. Com a integração de mercados, a ferrovia reduziu distâncias econômicas. Isso gera uma especialização regional e um aumento dos ganhos com o comércio. Nesse caso, os ganhos não eram necessariamente de comércio internacional, mas também dentro do País.

DW: O crescimento econômico observado na primeira metade do século 20 é resultado desse impacto positivo das ferrovias, portanto?

WS: Por integrar mercados e ligar o Brasil com o exterior, a expansão da malha ferroviária iniciou um processo de crescimento econômico que o país não tinha antes. Por exemplo, criou condições econômicas que atraíam imigrantes para o Brasil; deslocou a fronteira agrícola para o interior e aumentou o impulso para a industrialização, por integrar os mercados. Isso chega a um pico em 1930. Na Era Vargas, o Brasil passou a substituir ferrovias por rodovias, o que foi intensificado com Juscelino Kubitscheck e nos governos militares.

As rodovias têm algumas vantagens para certas categorias de produtos, no sentido de ir do portão da fábrica à porta do consumidor. Isso é muito flexível. Para outras categorias de carga, a ferrovia é mais eficiente. No mundo moderno, observamos redes de transporte multimodal. O Brasil ficou com muitas rodovias, transporte de caminhão, e diminuiu muito a importância do transporte de longa distância pelas ferrovias.

No final do período que eu pesquisei, o Brasil tinha 25 mil quilômetros de ferrovias funcionando. Hoje, tem mais ou menos 30 mil quilômetros, e os especialistas da área dizem que só metade dessa malha está em operação. Ou seja, há menos ferrovias ativas hoje do que em 1913. E não era uma malha muito densa naquela época, tinha ainda mais chão para cobrir.

Isso gerou custos, e figura no “custo Brasil”. As filas para descarregar produtos nos portos são recorrentes. Essa dificuldade e o custo elevado para transportar as cargas são um entrave na cadeia produtiva do Brasil.

O desenvolvimento dos projetos certos nos lugares certos ajudaria bastante a aliviar esse congestionamento no setor real da economia brasileira. Não é o caso de usar só ferrovia sem rodovia ou o contrário. São substituições e complementos ao mesmo tempo. O modelo multimodal é imprescindível. Sem avaliar nenhum projeto específico, creio que o Brasil careça de ferrovias.

DW: Que lições o Brasil de hoje pode tirar desse período de crescimento econômico impulsionado por investimentos em infraestrutura?

WS: O modelo estabelecido ao longo do século XX, em que o governo era a principal fonte de investimentos nos projetos de infraestrutura, acabou para o Brasil. Além disso, o Estado brasileiro demonstrou que não era o gestor mais eficiente para esse tipo de atividade. Pode participar, mas indiretamente, para regular.

Para retomar o crescimento sustentável de investimentos na infraestrutura ao longo prazo, vai precisar da poupança do setor privado, inclusive capitais de fora do Brasil. O desafio é o seguinte: por incrível que pareça, o Brasil não tem hoje a posição no mercado internacional que tinha no século XIX.

Quando o país começou a atrair capitais para ferrovias, todos tinham confiança no ambiente econômico do Brasil. O governo não tinha dado calote em nenhum dos empréstimos em Londres. Ao longo desses cem anos, foram muitos casos, começando no início do século XX. Além disso, há um problema de estabilidade macroeconômica.

Fazer um programa de garantia de juros, como no passado, não vai dar o mesmo resultado hoje em dia. Deve-se pensar em maneiras criativas de convencer possíveis investidores externos de que o Brasil não vai dar calote no investimento que eles fazem na infraestrutura daqui. Este é um dos principais desafios para qualquer governo que venha após as eleições.

DW: O que pode ser feito, concretamente?

WS: Basicamente, entrar numa corrente de reformas que sirvam para aumentar a produtividade e eficiência da economia brasileira. É preciso mostrar ao mundo e aos brasileiros que o governo está lá para facilitar um bom desempenho dos mercados, aumentos de eficiência e inovação. É a melhor forma de sinalizar que a economia brasileira e o Estado estão criando um ambiente propício para investimentos novos e geração de empregos.

São investimentos que não geram benefícios enormes de curto prazo, e essa paciência é politicamente difícil. Tem o “ciclo eleitoral de negócios” que há em toda democracia, mas o ambiente de incerteza econômica no Brasil fica exacerbado, e aumenta ainda mais esse problema.

A taxa de poupança privada é muito pequena no Brasil. Portanto, não gera recursos suficientes para alimentar a necessidade de investimento real na economia. Por isso é que eu falo em aumentar o grau de confiança dos investidores estrangeiros.

O País vai precisar da poupança deles, tal como no século 19. O problema é que, assim como naquela época, tem muitos países querendo atrair a poupança dos países mais ricos, ou dos países onde você encontra taxas de poupança elevadíssimas, como a China. Não é só o Brasil que está buscando recursos para investir, concorrendo no mercado internacional.

DW: Com uma produção agroexportadora concentrada no interior, há rotas com grande potencial de retorno, certo?

WS: Claro que sim. Tem um projeto em discussão há um tempo, o chamado Ferrogrão, para ligar o interior ao porto de Miritituba, no Pará. O transporte fluvial, quando existe, é muito barato. Ligar diretamente o interior ao mar pelo rio, para escoar a produção, é muito melhor do que tentar ligar diretamente o interior ao litoral.

Alguns projetos públicos no Nordeste e Minas Gerais estão parados porque estouraram o orçamento, sem previsão de término, e imagino que o custo será muito alto em relação aos benefícios. As áreas promissoras são aquelas onde você já encontra produção e pode aumentar a produtividade delas reduzindo o custo do transporte.

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