Economia
Boleiros, uni-vos
Estafados pelo excesso de jogos, atletas da elite do futebol ameaçam entrar em greve


“Loucura.” Jules Koundé, zagueiro do Barcelona e da seleção da França, falou por sua profissão. “Se continuar assim, chegará um momento em que não teremos outra opção.” Koundé apoiou Rodri, do Manchester City, ao levantar reclamações contra a carga de trabalho de profissionais de elite na Europa. Há uma conversa séria sobre uma greve de jogadores. O meio-campista espanhol, um dos cotados a receber a Bola de Ouro de 2024, está preparado para comandar as barricadas. “Haverá um momento em que não teremos outra opção, mas vamos ver, é algo que nos preocupa porque somos nós que sofremos”, afirmou.
O meio-campista do City jogou 63 partidas pelo clube e pela seleção, 6.107 minutos, na temporada 2023-2024, seu descanso de verão e o início atrasado desta temporada ocorreram após uma distensão no tendão na final da Euro 2024. Alguns de seus colegas tiveram cargas de trabalho mais pesadas: Phil Foden foi incluído em 77 escalações de dias de jogo e fez 72 aparições, Julián Alvarez, agora no Atlético de Madrid, foi incluído em 83 escalações de dias de jogo e fez 75 aparições.
Qualquer greve, em si um processo complicado, seria organizada pela Fifpro, o sindicato global de jogadores, uma organização que soa cada vez mais militante. Nenhum partidarismo de clube aqui. Alisson, do Liverpool, apoiou Rodri, do City, e o técnico do Real Madrid, Carlo Ancelotti, ecoou Koundé, do Barça: “Peço que pensem em cortar o número de jogos, para ter competições mais atraentes”.
A Copa do Mundo de 2026 foi estendida de 32 para 48 times, enquanto as competições da Liga dos Campões e da Liga Europa da Uefa foram reformuladas para incluir oito jogos da fase de grupos, com 36 times, estendendo-se até o fim de janeiro, antes do início das eliminatórias. Esse duro processo de redução se assemelha à temporada regular da NFL. A Liga das Nações da Uefa reduziu amistosos “inúteis”, mas sua vantagem competitiva coloca mais peso nos treinadores internacionais para escalar os melhores jogadores.
O principal campo de batalha é, no entanto, a incursão da Fifa no futebol de clubes, a ampliação do torneio de equipes, antes uma competição eliminatória, para um campeonato de verão com 32 equipes, planejado para os Estados Unidos no próximo ano. Além da confirmação de Freed From Desire, da cantora Gala, como hino oficial, os detalhes permanecem incompletos, sem locais confirmados, sem ingressos à venda. Espera-se que dinheiro saudita financie o grande plano da Fifa, caso o Estado do Golfo vença a candidatura incontestada para sediar a Copa do Mundo de 2034.
Se a lista de convidados é bem clara, as mensagens recentes têm sido confusas. “Uma única partida do Real Madrid vale 20 milhões de euros e a Fifa nos quer dar essa quantia pela copa inteira”, afirmou Ancelotti a um jornal italiano em junho. “Assim como nós, outros clubes recusarão o convite.” O fato de Ancelotti e o Real Madrid terem rapidamente feito um furacão reverso – “em nenhum momento houve qualquer dúvida sobre a nossa participação” –, não fez baixar as sobrancelhas.
“Haverá um momento em que não teremos opção”, diz Rodri, do Manchester City
Uma competição longa demais? As estatísticas da Fifpro parecem avalizar a percepção. “Alguns jogadores estão vendo seu tempo de folga cair para apenas 12% do ano civil, o equivalente a menos de um dia inteiro de folga por semana, contrariando os padrões internacionais de saúde e segurança.” Eis o ponto principal. Uma pesquisa da Football Benchmark afirma: “54% dos 1,5 mil jogadores monitorados enfrentaram demandas excessivas ou altas de carga de trabalho, com um número significativo superando os limites recomendados por especialistas médicos”.
Para corroborar este fato, um relatório recente do Observatório de Futebol do Centro Internacional de Estudos Esportivos, na Suíça, afirma que “0,31% dos jogadores jogaram 61 ou mais partidas por temporada, outros 1,8% jogaram de 51 a 60 partidas, e ainda outros 6,8% jogaram de 41 a 50 partidas por temporada”. Em suma, os jogadores de futebol de elite são os mais utilizados, correm mais riscos de lesões e o perigo de ter as carreiras encurtadas. Alcançar o auge pode representar a maior ameaça à longevidade.
Após uma Eurocopa com pouco entusiasmo, a campanha da Premier League ainda sem engatar e o início da Champions League sem empolgar, o jogo foi diluído? Ou os dirigentes têm o direito de pensar que rotações de grandes e caras equipes poderiam aliviar o problema? Durante o lamentável empate de 0 a 0 entre o Machester City e a Internazionale de Milão, o banco incluía Foden, Kyle Walker, John Stones, Mateo Kovacic e Matheus Nunes. Rodri joga pelo clube com mais capacidade de lhe dar descanso, e ainda assim seu técnico escolhe não o fazer. “Não haverá uma solução porque não há intenção de encontrar uma solução”, disse Pep Guardiola durante a turnê do City pelos EUA. “Os clubes têm de viajar para levar nossa marca ao redor do mundo, para deixar outros continentes e lugares verem nossos jogadores, e nós temos de nos adaptar.”
As equações são claras. O City e seus pares empreendem turnês de pré-temporada que abrangem continentes e geram dinheiro, tendo assinado cronogramas domésticos, pegando o dinheiro extra das competições expandidas da Uefa, usando o dinheiro da tevê para pagar as crescentes demandas salariais dos agentes para seus clientes. Agora que os jogadores sentem a queimadura de forma tão significativa a ponto de considerar uma greve, os poderosos do futebol vão notar? Uma solução financeira não pode resolver um problema físico, mas, novamente, não há cura conhecida para a sede do futebol por dinheiro. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Boleiros, uni-vos’
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