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Benefícios duvidosos

Sem provas de eficácia, as renúncias fiscais ampliam a desigualdade de renda no País

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Estudo. Chieza, do Instituto Justiça Fiscal, aponta em trabalho premiado os efeitos negativos das desonerações sobre a saúde e a educação - Imagem: ADUFRGS/Sindical e Cristine Rochol/PMPA
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A cada quatro anos, 12 meses inteiros de arrecadação da União, cerca de 400 bilhões de reais, deixam de entrar nos cofres públicos por causa das renúncias fiscais, isenções de impostos que beneficiam sobretudo empresas cujos nomes são mantidos sob sigilo e desobrigadas de comprovar os resultados prometidos pela desoneração. Pior, as renúncias ampliam a crônica desigualdade de renda do País, ao encolher a base de cálculo sobre a qual incidem os gastos mínimos constitucionais em saúde e educação e, de quebra, não se subordinam às limitações orçamentárias.

Essa é a conclusão da pesquisa “Renúncia de Receita e Desigualdades: Um Debate Negligenciado”, elaborada pela diretora do Instituto Justiça Fiscal, ­Rosa Chieza, também professora dos programas de pós-graduação em Economia Profissional e em Política Social e Serviço Social da Universidade Federal pelo Rio Grande do Sul, e pela estudante de Economia Anne Kelly Linc. O estudo foi um dos vencedores do I Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades promovido pela Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor) e a Fundação Tide ­Setubal. O propósito da premiação é reconhecer trabalhos e pesquisas que abordem o tema das finanças públicas não só a partir de uma perspectiva de sustentabilidade fiscal, mas dos efeitos sobre o desenvolvimento social e o combate à desigualdade de raças, de renda e da garantia dos direitos para a população.

O estudo não tem o objetivo de condenar a política de renúncia fiscal, diz ­Chieza, mas de incorporar as isenções à mensuração dos resultados do gasto público, até para se comprovar, ou refutar, a tese de que geram crescimento e desenvolvimento. “Nem os Tribunais de Contas monitoram e avaliam os resultados desses gastos tributários. É uma política pública, financiada com recursos públicos, cuja opacidade impede mensurar a qualidade desses dispêndios, em oposição aos demais executados por meio do orçamento. Por isso falamos de um debate negligenciado.”

Segundo o trabalho, as renúncias fiscais têm ampliado as disparidades sociais, ao reduzir o valor da base de cálculo sobre a qual incidem os gastos mínimos constitucionais em saúde e educação, principais responsáveis pela redução da desigualdade no Brasil, conforme várias pesquisas, inclusive um estudo de 2015 da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina. “Quando se consideram o total de renúncias da União e os gastos mínimos constitucionais, os orçamentos da saúde e a educação deixaram de receber 43,68 bilhões e 65,52 bilhões de reais, respectivamente, em 2020, ano em que a pandemia vitimou 194.949 brasileiros e registrou um aumento da desigualdade. Assim, a política de renúncia, ao retirar recursos de direitos sociais e transferir a grupos de maior poder e não passíveis de efetiva mensuração de resultados, tende a ampliar o fosso”, frisa Chieza. A pesquisadora ressalta ainda o descumprimento de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, segundo os quais incentivos não podem afetar as metas de resultados fiscais dos governos e, quando afetam, têm de ser compensados com aumento de impostos. “Você conhece algum caso no qual o Parlamento aprovou a renúncia de receita e ao mesmo tempo o aumento de tributos para compensar aquela renúncia?”, pergunta. “Se a LRF fosse cumprida, o cidadão tomaria conhecimento de que precisou pagar mais tributos porque o Poder Púbico abriu mão de arrecadação em favor de determinadas empresas ou grupos.”

O Brasil deixa de arrecadar cerca de 100 bilhões de reais por ano com as isenções

Além da necessidade de rigor quanto ao cumprimento das normas, as pesquisadoras propõem, dada a relevância social e econômica das políticas em saúde e educação, que se leve em conta a totalidade das desonerações na base de cálculo que define os orçamentos mínimos nestas ­duas áreas, pois a renúncia fiscal reduz os respectivos orçamentos, cujos dados são transparentes e passíveis de mensuração, entre eles o Índice de Desenvolvimento em Educação Básica e o custo mensal per capita do Sistema Único de Saúde.

Diretor do Centro de Cidadania Fiscal, Bernard Appy reforça a necessidade de se verificar se o custo da renúncia fiscal justifica o benefício invocado para a sua criação. “Sem dúvida, é preciso fazer análise de custo e de impacto das políticas de desoneração tributária”, defende. “Sobretudo, tem que tomar muito cuidado para não misturar benefício ao negócio com benefício à renda do dono do negócio.” Mentor de uma das propostas de reforma tributária empacadas no Congresso, Appy enumera várias distorções dos benefícios que acentuam, em vez de minorar, a desigualdade, como a desoneração da cesta básica. “É uma forma ineficiente de fazer política distributiva, porque, ao desonerar a cesta básica de alimentos, está se desonerando, em termos absolutos, mais o rico do que o pobre, pois o rico gasta mais do que o pobre com a cesta básica de alimentos. Então, se é o caso de entender a desoneração como ato do governo de transferir dinheiro para os indivíduos, ao desonerar a cesta básica transfere-se mais dinheiro para as famílias ricas do que para as famílias pobres.” Uma das bases da proposta de reforma dos impostos defendida pelo economista é tributar tudo por igual e vitaminar os programas de transferência de renda.

Outra distorção é a desoneração da folha de salários, que beneficia 17 setores econômicos. Todos os estudos elaborados demonstram que a iniciativa não tem efeito sobre o emprego, exceto para os desenvolvedores de software. No âmbito do Imposto de Renda, Appy cita as despesas de saúde, hoje integralmente dedutíveis. “Por que não colocar um limite, como existe para despesas com educação? A família de classe média pode deduzir o gasto com saúde, a família rica terá uma dedução até um certo nível. Geralmente, o pessoal tem seguro-saúde. Então, um seguro-saúde básico é dedutível, mas um seguro-saúde dos mais caros do mercado não deveria ser integralmente dedutível.” Na mesma linha, o especialista defende limites no caso de aposentados. “A isenção total poderia valer, por exemplo, para um aposentado que ganha 5 mil ­reais por mês. Agora, por que alguém com renda de 30 mil a 40 mil reais por mês com moléstia grave tem isenção total, enquanto quem ganha salário mínimo vai ao SUS? Isso custa cerca de 15 bilhões de reais por ano, não é pouco dinheiro.”  •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Benefícios duvidosos “

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