Economia

Beluzzo e Galípolo explicam o mundo contemporâneo

Em “Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo”, a dupla de economistas cumpre o ideal iluminista de esclarecer e nos libertar dos mitos econômicos

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“Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo” é o novo livro que presenteia a seus leitores Luiz Gonzaga Belluzzo, agora acompanhado pela pena brilhante de Gabriel Galípolo. Trata-se de uma reflexão profunda sobre o mundo contemporâneo escrita com muita verve e uma linguagem acessível ao leitor não especializado.

Um tema perpassa o livro: a transformação do modo de organização do capitalismo a partir dos anos 1980 e seu impacto sobre a política, as ideias, as relações internacionais, o Brasil e até o indivíduo.

Os autores recorrem a Karl Polanyi para mostrar como, na década de 1930, o aprofundamento das desigualdades e a crise econômica profunda levaram tanto a uma reação democrática na forma do New Deal nos EUA e nas socialdemocracias europeias, quanto à experiência totalitária na Alemanha. Da vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, surgiu um projeto para internacionalizar o controle sobre as finanças e colocá-las a serviço da expansão da produção e do emprego, eliminando o veto que a fuga de capitais punha à redução de taxas de juros ou à expansão do gasto social, como propunha John Maynard Keynes.

Foi a nova correlação de forças entre o capital e a sociedade, mediada por partidos com grande participação dos sindicatos em meio à Guerra Fria, que propiciou os 25 anos gloriosos do capitalismo no pós-guerra. Ao contrário do vaticínio de velhos neoliberais como Friedrich Hayek, o controle público das finanças e a construção de uma rede de proteção contra o risco social, da sustentação da demanda agregada ao seguro-desemprego, do ensino e da saúde pública às pensões e aposentadorias, expandiu o gozo das liberdades individuais, o estímulo à inovação técnica e sua difusão, mitigou o ciclo econômico e acelerou o crescimento, inclusive nas periferias autorizadas a se industrializar, como o Brasil.

Na década de 1970, o controle social criado começou a ruir, primeiro com a livre flutuação das moedas nos mercados de câmbio e a mobilidade internacional de capitais. Na década de 1980, a eliminação das fronteiras entre os bancos comerciais e os mercados que transacionam a propriedade da riqueza existente sintetizou a emergência de um novo velho capitalismo, ainda mais financeirizado do que em sua origem, mas com potencial semelhante de criação destruidora, como afirmavam Karl Marx ou Joseph Schumpeter.

Grandes investidores institucionais, fundos mútuos e bancos de investimento, por meio do mercado de capitais, passaram a disciplinar as decisões de investimento e a administração das corporações “produtivas”. Estas operam crescentemente nos mercados financeiros, enquanto distribuem dividendos e recompram ações para financiar a inflação de ativos e canalizar rendas para os acionistas, em vez de serem financiadas pelas bolsas de valores.

Os preços dos ativos financeiros, inclusive das moedas nacionais, flutuam em ondas de valorização especulativa sucedidas por grandes crises que produzem aumento do desemprego e queda da arrecadação tributária. Embora a crise fiscal resulte das crises financeiras, os investidores salvos por tesouros e bancos centrais não demoram a exigir o corte de direitos sociais para dar “credibilidade” à dívida pública de que são credores. Ao mesmo tempo, exigem que os bancos centrais emitam moeda para dar liquidez ao emaranhado de passivos privados criados no boom e desvalorizados na crise.

A captura da política macroeconômica pela nova estrutura financeira convive com o “planejamento tributário” e a fuga de capitais para paraísos fiscais para roubar impostos dos Estados e ampliar a desigualdade. As corporações globais também usam “preços de transferência” e notas frias para reduzir impostos, enquanto transferem a montagem de bens para áreas de custos salariais, trabalhistas, ambientais e tributários menores. Isto gera pressões pelo rebaixamento competitivo do patamar civilizatório, sem que a normatização global de patamares mínimos de proteção trabalhista, social e ambiental prospere em instituições multilaterais.

Embora a migração internacional de trabalhadores em busca de melhores condições salariais e de trabalho seja muito mais tolhida do que a mobilidade de capitais, imigrantes são os bodes expiatórios da globalização do subemprego e do crescimento mal disfarçado do fascismo.

O rebaixamento civilizatório também é patente no debate econômico. As ficções neoliberais que “provam” a harmonia do capitalismo, a equivalência de poder entre os agentes e a capacidade de auto-regulação do sistema serviram ao desmonte do controle social sobre o poder econômico e à enorme transferência de riqueza para a oligarquia financeira, cujos interesses penetraram no sistema político, na mídia e na academia.

Particularmente perniciosas são as teorias que, sem compreender as relações entre consumo, poupança e investimento, advogam a concentração da renda e a austeridade fiscal como condições do crescimento econômico e do controle da dívida pública. Embora devidamente desmontadas pelo próprio FMI, foram abusadas pelos arquitetos do desastre econômico brasileiro a partir de 2015.

O austericídio brasileiro é objeto do mais longo capítulo do livro, que aborda o nocaute a que o Brasil foi submetido pela conjunção entre austeridade fiscal, elevação de preços administrados, desvalorização cambial, choque de juros e a Operação Lava Jato. Belluzzo e Galípolo partem do que devia ser óbvio: as decisões empresariais são tomadas em condições de incerteza radical, sendo “um prodígio da confiança antecipar um ‘reequilíbrio’ das condições de crescimento depois de um choque de preços dos insumos universais, choque de juros e contração dos gastos públicos”.

Os autores apontam as raízes do desastre na estrutura tributária regressiva e na combinação entre juros altos-câmbio baixo que destroçou a indústria brasileira e pressionou a dívida pública a despeito do longo período de superávits primários desde o início da década de 1990. Contam-nos que “entre 1995 e 2015, o Estado brasileiro transferiu para os detentores da dívida pública, sob a forma de pagamento de juros, um total acumulado de 3,4 trilhões de reais”.

Na sequência, economistas do mercado financeiro pediram elevação de juros para controlar a inflação de custos de 2015 em diante, mesmo que a maior recessão da história brasileira não precisasse de empurrão para destruir qualquer “inflação de demanda”. Tampouco surpreende que culpem aposentados e dependentes do gasto social pela recessão e pela consequente falência da arrecadação.

Em um tempo que a acumulação de riqueza abstrata é um fim em si e em que o dinheiro compra políticos, convenções públicas e sofistas econômicos, o livro de Belluzzo e Galípolo é um herdeiro bem-vindo do projeto iluminista, esclarecendo para nos libertar dos mitos quanto à naturalidade dos poderes econômicos que tutelam a democracia contemporânea.

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