Economia
As peripécias do dólar como moeda-reserva e as novas ameaças à estabilidade da economia mundial
A história da economia mundial, desde meados dos anos 1940, não pode ser contada sem compreendê-las


A história da economia mundial, desde meados dos anos 1940, não pode ser contada sem a compreensão das peripécias do dólar em seu papel de moeda-reserva universal. No imediato pós-Guerra, sob a égide de Bretton Woods, o poder do dólar sustentou três processos simultâneos:
1. A expansão da grande empresa americana e a presença das bases militares de Tio Sam mundo afora geraram o déficit na conta de capitais dos EUA, o que garantiu o abastecimento da liquidez requerida para o crescimento do comércio mundial.
2. No mesmo movimento, o Plano Marshall e a força do dólar abundante incitaram a reconstrução dos sistemas industriais da Europa e do Japão.
3. Na esteira da recuperação de suas economias, as empresas europeias e japonesas, na segunda metade dos anos 1950, moveram-se para colher as oportunidades oferecidas pelos projetos de industrialização na periferia.
No fim dos anos 1960, os desequilíbrios crescentes do balanço de pagamentos americano determinaram a desvinculação de sua moeda em relação ao ouro em 1971 e, em 1973, promoveram a introdução das taxas de câmbio flutuantes.
A continuada desvalorização do dólar nos anos 1970 colocou em apuros a supremacia da moeda americana. Essa ameaça foi enfrentada com a elevação da policy rate deflagrada por Paul Volker em 1979. A elevação dos juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda-reserva.
O gesto de Paul Volker promoveu uma nova onda de transformações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. A partir do início dos anos 1980, a valorização do dólar deflagrou o movimento de migração da indústria manufatureira americana para as regiões nas quais prevalecia uma relação câmbio/salários mais atraente. Assim, ampliaram-se os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA a China emergente.
Nas três décadas seguintes, ainda à sombra do fortalecimento de sua moeda, os EUA estimularam as políticas de abertura comercial e impuseram a liberalização financeira urbi et orbi. Assim, suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de gestores da finança e da moeda universais. Isto significa que os bancos americanos estavam habilitados a:
1. Administrar à escala global a transformação da rede de relações débito-crédito, fazendo avançar o processo de “securitização”.
2. Comandar a circulação de capitais entre as praças financeiras e, portanto, afetar a formação das taxas de câmbio e taxas de juro à escala global.
3. Intensificar as mudanças na estrutura da propriedade, ou seja, promover a concentração patrimonial e produtiva.
Um após o outro, os países de moeda não conversível promoveram a abertura financeira. Nos países centrais, a desregulamentação financeira rompeu os diques de segurança erigidos depois da crise dos anos 1930. Como sabem os leitores de CartaCapital, as restrições à finança buscavam impedir que os bancos comerciais – responsáveis pela criação de moeda – se envolvessem no financiamento de posições “especulativas” nos mercados de riqueza (ações, títulos de dívida e imóveis), com consequências indesejáveis para a solidez dos sistemas bancários.
Práticas frouxas de regulação levaram ao acirramento da concorrência entre os bancos na busca enfurecida por maiores rendimentos
A subordinação da dinâmica das economias capitalistas aos caprichos dos Mercados da Riqueza no ciclo dos anos 2000 de valorização de ativos e de expansão do crédito foi impelida por um intenso e criativo desenvolvimento das inovações financeiras. O uso de derivativos e a intensa informatização dos mercados financeiros associaram-se aos métodos de “originar e distribuir” para ampliar de forma desmesurada o volume de transações.
A conjugação entre taxas de juro baixas – asseguradas pelo movimento de capitais para os EUA – e práticas frouxas de supervisão e regulação estimulou o acirramento da concorrência entre as instituições financeiras na busca desaçaimada por maiores rendimentos. Para tanto, era fundamental ampliar os volumes de crédito a serem “securitizados” e elevar os coeficientes de alavancagem das instituições que carregavam esses ativos.
Os cuidados típicos da era keynesiana, a da “repressão financeira”, estavam voltados, sobretudo, para a atenuação da instabilidade dos mercados de negociação dos títulos representativos de direitos sobre a riqueza e a renda. Isto significa que as políticas monetárias e de crédito se ocupavam de atenuar os efeitos da valorização dos títulos de dívida e de propriedade sobre as decisões de gasto corrente e de investimento da classe capitalista. Tratava-se de evitar ciclos de valorização excessiva (e desvalorizações catastróficas) dos estoques da riqueza já existente.
No Capítulo XII da Teoria Geral do Emprego, Expectativas de Longo Prazo, Keynes tratou do assunto. “Com a separação entre a propriedade e a gestão que prevalece atualmente e com o desenvolvimento de mercados financeiros organizados, surgiu um novo fator de grande importância, que, às vezes, facilita o investimento, mas que, outras vezes, contribui sobremaneira para agravar a instabilidade do sistema. As reavaliações cotidianas efetuadas na Bolsa de Valores, embora tenham como principal objetivo facilitar a transferência de investimentos já realizados entre indivíduos, exercem, inevitavelmente, uma influência decisiva sobre o montante do investimento corrente. Com efeito, não faz sentido criar uma empresa nova a um custo maior, quando se pode adquirir uma empresa semelhante já existente por um preço menor.”
Já mencionei em uma coluna da CartaCapital que, no livro First Responders, organizado por Ben Bernanke, Henry Paulson e Timothy Geithner, assessores do Federal Reserve e do Tesouro registram as características dos mercados contemporâneos: “O sistema financeiro mudou de forma fundamental nas décadas que antecederam a crise de 2008: mais crédito e precificação de risco foram intermediados nos mercados financeiros, sob os auspícios de instituições não bancárias. Muitas dessas instituições dependem de financiamento de curto prazo nos mercados monetários atacadistas, em vez de depósitos à vista garantidos e estáveis; assim, são mais vulneráveis a uma queda na confiança dos investidores, o que pode levar à queima de ativos e ao contágio do mercado”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1204 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Armadilha ianque”
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