Economia

As acrobacias de Edmar Bacha

O Plano Real venceu a inflação, mas ao custo da sobrevalorização da moeda nacional e da desindustrialização

Enfatiotado. Será que Bacha, colega de farda de Merval Pereira, almeja um Brasil pequeno? A abertura comercial, o câmbio valorizado e os juros altos liquidaram elos das cadeias produtivas. (Foto: Ricardo Borges/Folhapress e A.Mirza/ILO)
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A entrevista do economista Edmar Bacha à Folha de S.Paulo causou desconforto nas hostes progressistas. Na manchete do jornal paulistano, Bacha proclamou que “Bolsonaro é risco à democracia e Lula é risco à economia”. Os economistas do PT, Aloizio Mercadante e Guilherme Mello publicaram, também na Folha, uma resposta civilizada e bem argumentada.

Vou arriscar aqui algumas considerações sobre a entrevista de Bacha. A minha caminhada se inicia com a primeira estocada do ilustre economista, tão ilustre que enverga o fardão da Academia Brasileira de Letras. Nessa fatiota ele desfruta da companhia do não menos ilustre e ilustrado Merval Pereira. O primeiro presidente da Academia, um certo Machado de Assis, sentir-se-ia recompensado. (A mesóclise é uma homenagem ao meu ex-companheiro das Arcadas, Michel Temer).

Peço desculpas ao leitor pela digressão reverencial, mas, diante de figuras tão ilustres, não poderia omitir o autor do conto O Alienista, aquele que narra as peripécias de Simão Bacamarte.

As classes conservadoras não aprendem nem se lembram de coisa alguma

Retomo o fio da meada. Bacha dispara: “Lula é um risco à economia. As últimas declarações que ele, Lula, tem dado mostram que ele não aprendeu nada. Tem se posicionado contra a austeridade fiscal, contra a abertura da economia. Os assessores dele são todos retrógrados, estão todos nessa linha de recuperar o Brasil grande, não aprenderam nada”. (Devo entender que o ilustre acadêmico almeja um Brasil pequeno? Não creio.)

Mais adiante, Bacha afirma que “ao longo desse longo processo de construção e consolidação do Plano Real, trabalhos extraordinários foram constituídos. Não só no combate à inflação; na construção de instituições fortes, programas importantes de distribuição de renda”.

Não há como contestar as proezas extraordinárias do Plano Real. O sucesso inegável no combate à inflação foi acompanhado de uma proeza também extraordinária, o rápido e intenso processo de desindustrialização.
Nos anos de 1990, um novo ciclo de liquidez internacional e a escalada chinesa na produção de manufaturas baratas ensejaram a almejada estabilização do nível geral de preços e proporcionaram a chamada Grande Moderação. Imagino que o ilustre e ilustrado Edmar Bacha tenha conhecimento dos trabalhos do Bank of International Settlements (BIS) a respeito da contribuição chinesa para a estabilização do nível de preços à escala global.

Em Pindorama, as classes conservadoras e conversadoras não aprendem e – ao contrário dos Bourbons – tampouco se lembram de coisa alguma. Diante da pletora de dólares, passaram a salivar com intensidade e a patrocinar as visões mais pitorescas a respeito das relações entre desenvolvimento econômico, abertura da economia e política fiscal e monetária. Aproveitaram a abundância de dólares para matar a inflação, mas permitiram a valorização do câmbio, sob o pretexto de que a liberalização do comércio e dos fluxos financeiros promoveria a alocação eficiente dos recursos.

Nessa visão bacharelesca, os ganhos de produtividade decorrentes das mudanças no comportamento empresarial diante do câmbio valorizado seriam suficientes para dinamizar as exportações, atrair investidores externos e deslanchar um forte ciclo de acumulação. Mas, na vida real, a abertura comercial com câmbio valorizado e juros altos suscitou o desaparecimento de elos das cadeias produtivas na indústria de transformação, com perda de valor agregado gerado no País, decorrente da elevação dos coeficientes de importação – sem ganhos nas exportações – em cada uma das cadeias de produção. Para juntar ofensa à injúria, essa forma anacrônica de abertura afastou o Brasil do engajamento nas cadeias produtivas globais.

Com tal estratégia, o crescimento da economia brasileira foi pífio. O investimento estrangeiro em nova capacidade deslocou-se para regiões mais atraentes, como a China, onde as políticas cambial e monetária favoreceram as iniciativas de política industrial e construíram o caminho para o rápido crescimento da exportação de manufaturados. Os dados da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostram que a China avançou velozmente na sua participação nas exportações mundiais. Suas vendas externas evoluíram de menos de 2%, em 1998, para 10,4%, em 2012. Figura em primeiro lugar no ranking dos grandes exportadores, superando a Alemanha, o Japão e os Estados Unidos.

A partir de 2003, no primeiro governo Lula, ainda à sombra de uma política monetária conservadora, o País executou uma política fiscal prudente com queda das dívidas bruta e líquida como proporção do PIB. A acumulação de reservas construiu defesas para prevenir os efeitos de uma eventual crise de balanço de pagamentos. Isto foi proporcionado por uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável, que levou às alturas os preços das commodities.

Nas condições descritas acima, seria desejável buscar uma combinação câmbio-juro real mais estimulante para o avanço das exportações e para o investimento nos setores mais dinâmicos do comércio mundial. Estes seriam passos decisivos para a integração do País nos fluxos de exportação e importação exigidos pela nova configuração da indústria global.

Trajetórias. Na China, as políticas cambial, monetária e industrial puxaram as exportações de manufaturados. O Brasil ficou para trás desde a revolução da automação iniciada nos anos 1970. (FOTO: STR/AFP e Hendrik Schmidt/DPA/AFP)

O Brasil encerrou os anos de 1990 e atravessou a década seguinte com uma regressão da estrutura industrial, ou seja, não acompanhou o avanço e a diferenciação setorial da manufatura global e, ademais, perdeu competitividade e elos nas cadeias que conservou.

A crise de 2008 acirrou a concorrência mundial na proporção em que os mercados se contraíam, o que deixou ainda mais patente a fragilidade da inserção externa da economia brasileira. Para quem tem um conhecimento elementar dos processos de industrialização e expansão industrial das economias emergentes, a manutenção do câmbio sobrevalorizado ao longo de muitos anos é um erro crasso de política econômica que afeta negativamente a política fiscal e a política monetária.

A última moda nos círculos bem-falantes e bem informados (?) é pregar a integração da indústria nativa às cadeias globais de valor e clamar pelo aumento da produtividade. Essas recomendações equivalem às campanhas em defesa da saúde contra a doença.

A redistribuição espacial da manufatura foi impulsionada por duas forças complementares: 1. O movimento competitivo da grande empresa transnacional para ocupar espaços demográficos de mão de obra abundante. 2. As políticas nacionais dos Estados soberanos nas áreas receptoras.

A participação da indústria brasileira no PIB caiu de 35,8%, em 1984, para 15,3%, em 2011. Em 2014, escorregou para 13%. O leitor poderá comparar o índice brasileiro com os indicadores de alguns países (dados da ONU de 2010): China (43,1%), Coreia do Sul (30,4%), Alemanha (20,8%).

Essa queda seria natural se decorresse dos ganhos de produtividade obtidos ou difundidos pelo crescimento da própria indústria, como ocorreu em países de industrialização madura, como os Estados Unidos (13,4%). Mas não foi isso que se observou no Brasil.

Desde o crepúsculo dos anos de 1970, no momento em que ocorriam as revoluções tecnológicas da informática, dos contêineres e da automação – companheiras da intensa redistribuição da capacidade produtiva manufatureira entre o centro e os emergentes –, a indústria brasileira ficou para trás.

A perda de dinamismo da industrialização brasileira provocou, desde o início dos anos de 1990, uma reação extremada nas hostes liberais: abrir a economia e expor os empresários letárgicos aos ares benfazejos da globalização. O silogismo em que se desdobra a premissa é grotesco em sua simplicidade: se a indústria brasileira perdeu a capacidade de investir ou de se modernizar, a solução é submeter a incompetente à disciplina da concorrência externa.

Tal estratégia de desenvolvimento, em geral associada às recomendações do Consenso de Washington, está apoiada em quatro supostos:

a) A estabilidade de preços cria condições para o cálculo econômico de longo prazo, estimulando o investimento privado.
b) A abertura comercial (e a valorização cambial) impõe disciplina competitiva aos produtores domésticos, forçando-os a realizar ganhos substanciais de produtividade.
c) As privatizações e o investimento estrangeiro removeriam gargalos de oferta na indústria e na infraestrutura,­ reduzindo custos e melhorando a ­eficiência.
d) A liberalização cambial, associada à previsibilidade quanto à evolução da taxa real de câmbio, atrairia poupança externa em escala suficiente para complementar o esforço de investimento doméstico e para financiar o déficit em conta corrente.

Manter o câmbio sobrevalorizado durante anos é um erro crasso de política econômica

Subitamente, a economia brasileira – sob inspiração desse ideário – foi colocada diante da seguinte realidade, inédita no pós-Guerra: redução drástica da proteção efetiva provocada pela queda de tarifas associada a uma forte sobrevalorização do câmbio e taxa real de juros muito alta.

Um estudo encomendado pela União Europeia revela aspectos importantes do processo de internacionalização dos anos de 1990 e 2000: 1. Nos países em desenvolvimento, os benefícios do investimento estrangeiro – tais como absorção de tecnologia, adensamento de cadeias industriais, crescimento das exportações – dependeram das políticas nacionais. 2. Os países em desenvolvimento que cresceram mais e exportaram melhor foram os que conseguiram administrar uma combinação favorável entre câmbio desvalorizado e juros baixos.

Na era da arrancada chinesa, é superstição acreditar que a abertura financeira e a exposição pura e simples do setor industrial à concorrência externa são capazes de promover a modernização tecnológica e os ganhos de competitividade. Nesse jogo só entra quem tem cacife tecnológico, poder financeiro e amparo político dos Estados Nacionais. O resto está na arquibancada batendo palmas.

Publicado na edição nº 1175 de CartaCapital, em 16 de setembro de 2021.

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