Economia
Ardis do dinheiro
Em seus poderes insondáveis, o dólar promove a alegria de ecologistas, pentecostais e católicos


Os estudos sobre economia monetária começam reconhecendo o caráter “originário” da função medida de valor. Ela se realiza na prática sob a forma de unidade de conta, “nome aritmético” da medida de valor.
É desta função que decorrem as demais, meio de circulação, meio de pagamento e reserva de valor. A função de meio de circulação está diretamente associada à unidade de conta. Essas duas funções executam de forma reiterada os ritos do reconhecimento social que acompanham o processo de socialização dos indivíduos privados. Livres e separados, eles são aglutinados nas relações de intercâmbio monetário: primeiro, denominar cada mercadoria particular no dinheiro ideal e, depois, submeter-se à aceitação dessa declaração pelo tribunal do mercado.
Quando sai das mãos do produtor ou do vendedor, com o preço monetário estampado na testa, a mercadoria só é confirmada como valor quando encontra um comprador disposto a realizar o seu preço. Trata-se de uma aposta. Não há aí um sistema de preços “reais” relativos que garanta o equilíbrio do sistema. Ainda hoje, os filhotes de Leon Walras sustentam a lenda da separação entre o real e o monetário. O dinheiro em Walras é apenas um numerário, um véu que encobre a realidade dos preços reais, relativos. Os preços monetários são a expressão necessária do valor das mercadorias na sociedade em que os produtos do trabalho privado são destinados diretamente para o intercâmbio.
Na economia em que a produção é diretamente para a troca, torna-se inescapável o batismo monetário das mercadorias particulares. Elas não podem sair das mãos dos possuidores sob a forma “natural” para enfrentar a aventura do mercado. Os preços correspondem a uma determinação formal das mercadorias no sentido de que elas não podem ingressar no processo de intercâmbio generalizado antes de serem apresentadas ao dinheiro enquanto medida de valor, expressão da sociabilidade entre os produtores privados de mercadorias. As mercadorias já entram na circulação com preços monetários, ou seja, não mais em sua forma material senão em sua determinação social. O dinheiro realiza a sociabilidade dos produtores de mercadorias e dos proprietários da riqueza. Nas sociedades “Dinheiristas” os indivíduos não têm existência social se não possuem dinheiro.
A função medida de valor, ao exigir a numeração monetária das mercadorias, antes da entrada no mercado, enseja a dissociação da troca em duas operações distintas, a venda e a compra. O dinheiro assume, então, sua segunda função, enquanto instrumento da realização do preço das mercadorias. Os protagonistas do processo de intercâmbio generalizado “descobrem” a possibilidade de acumular o representante da riqueza geral, a mercadoria universal, sem precisar gastá-la imediatamente na aquisição de outra mercadoria particular.
Aqui, mais uma vez, a economia capitalista monetária desmente as hipóteses de equilíbrio geral. Os chamados preços de equilíbrio supõem que nas relações de intercâmbio de mercadorias, cada vendedor está atado ao comprador como irmãos xifópagos. Venda sem compra imediata gera uma promessa de pagamento. Seria bom entender que essa promessa está registrada em um documento, uma letra de câmbio, a ser resgatada numa data futura.
No avanço das relações de intercâmbio, esses instrumentos de crédito passam a circular nos mercados de riqueza, sempre submetidos a uma avaliação que busca definir o seu valor monetário diante das incertezas que afligem os possuidores dos ativos quanto ao futuro.
Sim, o futuro é o senhor dos corações e das mentes nas economias monetário-financeiro-capitalistas. Assim é porque as decisões no capitalismo estão comprometidas estruturalmente em antecipar a valorização da riqueza mercantil-financeira. A cada momento, Comprados e Vendidos sofrem as angústias e as agruras do resultado de suas apostas.
O desejo de manter o dinheiro como reserva é barômetro da nossa desconfiança quanto ao futuro
No artigo “A Teoria Geral do Emprego”, Keynes discute as concepções de dinheiro dos economistas clássicos. Para ele, os clássicos deixaram de sublinhar as duas funções cruciais do dinheiro em uma economia monetária: como numerário, o dinheiro denomina o valor monetário de bens, serviços e contratos; como “reserva de valor” (store of wealth), o dinheiro é a forma final de acumulação de riqueza no capitalismo: “Nosso desejo de manter o dinheiro como reserva de valor constitui um barômetro do grau de nossa desconfiança e de nossos cálculos e convenções quanto ao futuro”.
Essa digressão de Maynard deveria empurrar nossa curiosidade para o sistema monetário internacional. Nesse momento, o dólar é a moeda reserva. Denomina mais de 70% das transações comerciais e financeiras no mundo. Desgraçadamente, o sistema monetário internacional é constituído por uma hierarquia de moedas, umas mais “líquidas” do que as outras. Um exportador alemão e um importador japonês dificilmente escolheriam o real como moeda de transação em seus negócios. O dólar é a moeda reserva, a moeda universal. O real é uma moeda não conversível.
Não espanta que as taxas de juro de Tio Sam aflijam suas filhas menores em todo o planeta. Isso significa que os detentores de riqueza não podem escapar dos sacolejos da moeda universal para avaliar seus ativos monetário-financeiros.
A morfologia dos movimentos de capitais é intrinsecamente pró-cíclica em sua recorrência maníaca, que vai da abundância de grana estrangeira às paradas súbitas e daí às crises financeiras e bancárias. Esse “eterno retorno do mesmo” (Nietzsche, tenha piedade) está determinado pela interação entre a liberalização das contas de capital, a posição das economias “emergentes”, vítimas da arbitragem entre juros e câmbio, e os Estados Unidos como provedores de ativos líquidos de “última instância”.
Maior dívida pública do planeta, déficit orçamentário e externo recordes! Que país é esse? Brasil? Não! Nosso grande Uncle Sam! Segundo os mágicos da teoria convencional, a moeda perderia valor, haveria fuga de capitais e inflação explosiva! E 30 trilhões de dólares de papagaios dos mais variados no balanço do Federal Reserve! Papagaios que são enjaulados no seu cofre desde a crise de 2008.
Pasmem, nas últimas semanas, há uma corrida aos títulos americanos e à valorização da grana vestida de verde e edulcorada com a proclamação In God We Trust. Em seus poderes insondáveis, o dinheiro universal – o dólar – promove a alegria de ecologistas, pentecostais, católicos! Mais curioso ainda, para deixar qualquer economista da escola das expectativas racionais em surto psicótico, os irracionais que detêm moeda correram para os Treasuries de 10 e 30 anos! Quanta irracionalidade humana, estão financiando o Tesouro americano no médio e longo prazo. •
* Manfred Back é ex-trader e professor de conomia e Mercado de Capitais do Instituto J&F.
Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ardis do dinheiro’
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