Economia

Apesar do ufanismo governista, investidores estrangeiros desconfiam do Brasil

Desde 1982, o País não assistia a uma fuga tão maciça de dólares como no ano passado

Foto: Miguel Schincariol/AFP
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Vários investidores estrangeiros resistem em fazer negócios com o Brasil e uma das consequências e do momento complicado da economia internacional é a maior lentidão na venda de estatais. A situação contrasta com o recorde de investimentos externos no ano passado canalizados para a aquisição de ativos públicos leiloados pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Para piorar, a remessa de recursos ao exterior atinge recordes e as exportações estão baixas. O Banco Central queima reservas para segurar a taxa de câmbio e, apesar de o estoque de divisas ser alto, as perspectivas de médio prazo são incertas, pois o baixo crescimento crônico, acentuado pelos desatinos de Brasília em relação ao meio ambiente e às relações internacionais, aumenta o risco de um retrocesso a médio prazo à situação traumática de vulnerabilidade externa experimentada em passado não muito remoto, conclui-se das declarações e análises de economistas e empresários na mídia e nas redes sociais.

Segundo detalhou ao jornal Valor o economista-chefe do banco suíço UBS no País, Tony Volpon, há três explicações para o retraimento do investidor estrangeiro em relação ao Brasil: 1. Ceticismo quanto à sustentabilidade do crescimento projetado pelo governo, de 2,5%, devido à frustração das estimativas anteriores. 2. Migração de investimentos da renda fixa para a renda variável em consequência da queda dos juros. 3. Preocupação crescente de investidores e fundos quanto à governança ambiental, social e corporativa do governo brasileiro. No último quesito, disse Volpon, a percepção do País “é muito negativa, em meio a questões como a das queimadas na Amazônia”.

 

A empresa inglesa de informações e análise de riscos IHS Markit, no boletim da quarta-feira 15 sobre as reformas fiscais no País, identifica risco crescente em três frentes: 1. Líderes de partidos de centro-direita no Congresso anunciam forte oposição à reforma administrativa, na esteira de protestos de sindicatos. 2. Governos estaduais recusam apoio às medidas fiscais pretendidas por Brasília com o argumento de que interromperão o suprimento de recursos fundamentais e, além disso, pressionam deputados para rejeitá-las. 3. A luta entre Bolsonaro e ex-aliados do PSL resulta na retirada do apoio destes a partes centrais da agenda governamental. Dois fatos, segundo a firma, contribuem para reduzir o risco. O primeiro é o acordo dos líderes da Câmara e do Senado com Guedes para priorizar o projeto de reforma administrativa e o segundo, a indicação de apoio por parte dos governadores à unificação de impostos depois que o governo ofereceu a realocação orçamentária adicional das receitas dos leilões de petróleo do “pré-sal”.

Ouro de tolo. A Bolsa, que não reflete a realidade, sobe, enquanto Brasília não consegue colocar em prática o plano de privatização de estatais como os Correios. Foto: Henry Milleo/Fotoarena

Acrescentem-se à lista de riscos no horizonte os prováveis prejuízos ao País, estimados por alguns analistas em ao menos 10 bilhões de dólares, em consequência do acordo comercial provisório entre os Estados Unidos e a China, que resultará na substituição, pelos americanos, de importações de produtos brasileiros por equivalentes chineses.

O acúmulo de riscos e de problemas de condução da economia afeta as contas nacionais. “Com a saída recorde de dólares em dezembro e saldo negativo no mês, de 16 bilhões, 2019 foi o ano de maior fuga de capitais desde 1982 e o déficit cambial superou o de 1999, quando FHC quebrou o Brasil e recorreu ao FMI. Não fossem as reservas cambiais acumuladas pelo PT, o FMI retornaria ao Brasil”, disse o economista Marcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo. O saldo em conta corrente ficou negativo em 61,15 bilhões de dólares no ano, o pior da história.

Permanece o ceticismo quanto à retomada sustentável do PIB e a agenda de reformas

A balança comercial alcançou várias marcas negativas, aponta o professor da pós-graduação da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE José Eustáquio Diniz Alves, em artigo publicado no site EcoDebate. As exportações brasileiras atingiram o recorde de 256 bilhões de dólares em 2011, caíram para 185 bilhões em 2016, ficaram em 239,5 bilhões em 2018 e baixaram para 224 bilhões em 2019. O saldo da balança comercial, que apresentou um déficit em 2014, tornou-se positivo nos anos seguintes, atingindo 67 bilhões em 2017, 58 bilhões em 2018 e 46,7 bilhões em 2019. “No ano passado houve, portanto, queda das vendas externas e do saldo da balança comercial. O País caminha para uma década de estagnação das exportações”, dispara Diniz Alves.

Emperrado. As exportações caíram, apesar do agronegócio. Foto: iStockPhoto

O fato de, pela primeira vez em 40 anos, a exportação de produtos básicos superar a de industrializados evidencia o retrocesso acelerado rumo a uma fazenda exportadora dependente das oscilações dos preços das commodities. O aumento das exportações de produtos agropecuários não significaria problema se o governo participasse com a iniciativa privada de esforços para a atualização e o revigoramento do setor manufatureiro, esmagado pela escalada da desindustrialização e da substituição de produtos, máquinas, equipamentos e serviços locais por importados.

Talvez preocupado com as hesitações do capital externo, manifestadas inclusive em Davos, Paulo Guedes anunciou no Fórum Econômico Mundial mais um filão para estrangeiros, a possibilidade de participarem das bilionárias compras feitas pelo governo, estimadas em 10% do PIB pelo Guia de Compras Públicas Sustentáveis, de Rachel Biderman. As compras públicas de um País são importante dinamizador das indústrias locais e contribuem para o desenvolvimento, mostra a história econômica.

O acordo de compras governamentais surgiu na Rodada Uruguai, entre 1986 a 1994, e é parte do movimento de liberalização e globalização da economia intensificado no período. O acordo “não contempla adequadamente as profundas e crescentes assimetrias econômicas, tecnológicas e comerciais existentes no mundo e as razões que levaram o Brasil a não assiná-lo permanecem vigentes”, alerta o segundo vice- -presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades, Reinaldo Guimarães, em artigo na revista da entidade. “Defendemos o estabelecimento de acordos quando envolvam países ou cadeias produtivas em situação de mínima simetria ou de assimetria a nosso favor. Além disso, na conjuntura atual, compensações que se destinem ao fortalecimento da produção industrial e do desenvolvimento tecnológico locais devem ser reivindicadas. Os exemplos bem-sucedidos de offset (atividades compensatórias exigidas pelos governos nacionais às empresas estrangeiras contratadas, tais como investimentos e transferência de tecnologia, entre outros) praticados há muitos anos por Bio-Manguinhos e pelo Instituto Butantan no campo das vacinas, bem como a recente negociação para a modernização dos equipamentos da Força Aérea Brasileira, são bastante ilustrativos”, sublinha.

Há problemas para absorver avanços tecnológicos. Foto: Ag. Petrobrás

No seu esforço para dar maior visibilidade às notícias econômicas favoráveis a Brasília, a mídia destacou, entre outros fatos, o aumento de 26% no Investimento Estrangeiro Direto ou, na nova nomenclatura do Banco Central, Investimento Direto no País, puxado pelas privatizações. O problema é que esse tipo de fluxo se direciona quase sempre à aquisição de empresas e outros empreendimentos prontos e amortizados, isto é, que se pagaram, em alguns casos várias vezes. Não geram empreendimentos novos nem empregos, antes o contrário, pois os compradores costumam reduzir o tamanho da companhia e promover demissões em massa. A substituição de fornecedores locais por parceiros do novo dono no país de origem costuma resultar em prejuízos para as empresas nacionais e mais desemprego. Na nomenclatura internacional são chamados de investimentos brownfield, diferentes daqueles voltados para a implantação de fábricas e aquisição de máquinas e equipamentos, denominados greenfield por iniciarem projetos novos.

Enquanto o investimento externo greenfield continua escasso, o seleto grupo das multinacionais com sede no País aumenta sua aposta não no Brasil, mas no exterior, diante das incertezas locais, diagnosticou um balanço da Fundação Dom Cabral sobre os últimos 13 anos de internacionalização das companhias. O estudo, realizado com cerca de 150 multinacionais, na maior parte manufaturas presentes em 89 países, concluiu que 71,9% de- las aumentaram seus investimentos no mercado internacional em razão do cenário brasileiro de instabilidade político-econômica entre 2015 e 2018.

Além do retraimento das inversões externas que não se destinem à mera aquisição de instalações prontas, com cadeias de fornecedores e rede de consumidores em funcionamento, e da aposta crescente das multinacionais brasileiras nas suas operações externas, constata-se uma penúria nunca vista no investimento público, tradicional catalisador das inversões privadas. A proposta orçamentária para 2020, de 22,7 bilhões de reais, em valores corrigidos, é menos da metade dos 42,7 bilhões aplicados em 2007, no início da série da Secretaria do Tesouro. 

Idade Média. Os ataques à ciência e ao conhecimento afugentam os cérebros. Cada vez mais doutores buscam oportunidades fora do País. Foto: iStockPhoto

O raquitismo do crescimento do PIB resultante da política econômica vigente mostra-se ainda mais preocupante quando se examinam os dados per capita, como fez o economista e ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa. “Devemos fechar a segunda década do século XXI com expansão zero do PIB per capita. Mesmo que a economia surpreenda e cresça 3% neste ano, o desempenho do PIB per capita entre 2011 e 2020 será o segundo pior desde que temos estatísticas econômicas sobre a nossa renda por habitante”, aponta Barbosa em artigo publicado no blog do Ibre/FGV. O recorde de baixa do PIB per capita ocorreu entre 1980 e 1990, com variação negativa de 3,9% na década e média anual de menos 0,4%.

Os riscos ao investimento externo, a renúncia deliberada em promover investimentos públicos, pesquisa e desenvolvimento e a postura relutante quanto à coordenação de investimentos privados são o caminho certo para desastres econômicos e sociais. Segundo vários economistas que se manifestaram diante da declaração do ministro da Ciência, Marcos Pontes, de que a tecnologia 5G só começará a ser implantada em 2022, o atraso liquidará a possibilidade de empresas de tecnologia no Brasil. As consequências são graves para um país que não chegou a implantar a terceira revolução industrial, que inclui a microeletrônica, enquanto os concorrentes avançados e os emergentes bem-sucedidos aceleram na quarta revolução e alguns deles iniciam a etapa 6G. Há relatos de que grandes fazendeiros pediram a fabricantes de tratores e outras máquinas agrícolas a retirada de tecnologia de ponta por não terem utilidade em várias regiões do País, devido a problemas de cobertura, velocidade e instabilidade da internet, situação causadora de enormes danos, cabe acrescentar, também para a rede de escolas públicas estaduais e municipais.

Outra chance perdida: a entrada na tecnologia 5G não acontece antes de 2022

A temida fuga de cérebros, reflexo do desmonte governamental perpetrado nas áreas da pesquisa científica, do desenvolvimento tecnológico e do ensino superior, fundamentais à inovação e ao avanço industrial e social alcançado por todos os países avançados e emergentes bem-sucedidos, volta a assolar o País. Aumenta a cada dia a procura de bolsas no exterior por parte de mestres e doutores com pós-graduação concluída em universidades brasileiras, assim como o número de pesquisadores que Idade Média. Os ataques à ciência e ao conhecimento afugentam os cérebros. Cada vez mais doutores buscam oportunidades fora do País optam por encadear vários doutorados em outros países para escapar da falta de perspectivas na academia e no mercado de trabalho brasileiros.

Bloqueado pelo governo no seu avanço científico e industrial, o País permanece atolado no desemprego e na compressão do consumo sob aplausos dos empresários beneficiados com o arrocho salarial e a precarização do trabalho. “Governantes como os presidentes Bolsonaro e Trump”, dispara o mais recente relatório da ONG Oxfam, “perseguem agendas políticas que conduzem a uma maior distância entre os que têm e os que não têm. Oferecem políticas como redução de impostos para bilionários, obstruem medidas para enfrentar a emergência climática, o racismo, o sexis- mo e o ódio às minorias.” A Organização Mundial do Trabalho prevê que o Brasil continuará com 12 milhões de desempregados pelos próximos cinco anos. Diante da cantilena do “agora vai”, resta a pergunta: para onde? 

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