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Aperto financeiro nos EUA vai abalar ainda mais a frágil economia brasileira

Brasília terá de escolher entre a inflação e a recessão

Breque. O Federal Reserve promete ser duro contra a inflação nos EUA. Campos Neto, do BC brasileiro, culpa o “fenômeno global”
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Prostrada em consequência de uma recessão, da sua gestão incompetente e do negacionismo diante da pandemia, a economia brasileira sofrerá novo golpe com a elevação dos juros dos Estados Unidos anunciada pelo Fed, provavelmente a partir de março, e a descontinuação da compra de títulos públicos.

Em princípio, o choque no ­País não deverá ser tão forte quanto seria de se esperar, porque a taxa de juros local está escandalosamente alta. Não haverá, no entanto, escapatória entre uma recessão mais profunda do que aquela que provavelmente ocorreria em consequência da fraqueza da economia, ou um salto da inflação, caso se decida baixar os juros, analisa o economista Ricardo Carneiro, professor do Instituto de Economia da Unicamp. No ano passado, a inflação fechou em 10,06%, a maior desde 2015 e muito acima da meta de 3,75% estabelecida pelo BC. Segundo o presidente da instituição, Roberto Campos Neto, efeito de um “fenômeno global”.

O problema é mais profundo. “O fato subjacente mais importante é que se fez uma abertura financeira excessiva da economia brasileira e abriu-se mão do controle de capitais. O País tem uma moeda inconversível, mas não é só isso, há um problema que decorre da estrutura do sistema monetário internacional, e aí toda vez que ocorre um ciclo de liquidez mais forte, de retração ou de expansão, isso é amplificado em direção à periferia”, destaca Carneiro.

Brasília terá de escolher entre a inflação e a recessão

Os controles de capitais são regulamentos que limitam a capacidade de empresas ou famílias de converter moe­da nacional em estrangeira. A sua remoção foi parte da globalização econômica mais recente, quando os países em desenvolvimento sofreram forte pressão para abrir seus mercados ao comércio exterior e ao investimento. A generalização da liberalização da conta de capital ocorreu na primeira metade dos anos 1990 e a abertura prematura ou excessiva aos mercados de capitais internacionais “é uma receita para o desastre”, alerta o economista Barry Eichengreen, professor da Universidade da Califórnia.

O Fed tomou a decisão de elevar os juros e descontinuar a compra de ativos, porque prevaleceu a ideia de que a inflação tem caráter mais permanente. Na segunda-feira 10, o FMI publicou em seu blog o artigo intitulado “As economias emergentes devem se preparar para o aperto da política do Fed”. O FMI contempla a possibilidade de “aumentos mais rápidos das taxas” acompanhados de saídas de capital e depreciação da moeda nos mercados emergentes, mas a sua recomendação limita-se ao óbvio: “Em resposta a condições de financiamento mais apertadas, os mercados emergentes devem adaptar sua resposta com base em suas circunstâncias e vulnerabilidades”.

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O peso das mudanças da taxa de juros dos EUA para os países em desenvolvimento ou emergentes não deve ser subestimado, inclusive na sua correlação com o investimento estrangeiro direto, mostra o estudo denominado “What ­Does ­Measured FDI Actually Measure?”, de Olivier Blanchard e Julien Acalin. Os fluxos de investimento direto estrangeiro para economias de mercados emergentes, dizem os autores, parecem responder à taxa de juros dos EUA. “Isto sugere que os fluxos brutos de IDE “medidos” são bastante diferentes dos verdadeiros fluxos de IDE e podem refletir fluxos através – e não para – do país, com “paradas” devido, em parte, à otimização fiscal (legal). Isso deve ser um alerta tanto para pesquisadores quanto para formuladores de políticas”, sublinham Blanchard e Acalin.

Segundo Carneiro, se tudo se comportar de acordo com as regras, o impacto no País das altas dos juros previstas pelo Fed será menor do que era de se esperar. O BC subiu muito a taxa de juros, hoje em torno de 10%, e para o investidor externo o que interessa é a taxa nominal, não a taxa real em reais. “Ele entra, converte, aplica e sai. Só quer saber da cotação do dólar e da taxa nominal. Com uma taxa nominal dessa magnitude, é provável que não haja impactos adicionais relevantes.”

A subida da taxa de juros do Fed significa que os cálculos do BC e do mercado, de que a partir de meados do ano que vem seria possível baixar a taxa, não se confirmarão, estima Carneiro. Além de recessão, haverá deterioração da situação fiscal pelo aumento significativo da carga de juros devido às taxas elevadas, e ampliação da transferência de renda. “Aumentará a carga de juros da dívida em torno de 5% do PIB. Não conseguirão fazer superávit primário para pagar isso”, dispara o professor da Unicamp.

O investidor externo só quer converter a moeda, aplicar e sair

Haverá ainda uma deterioração do nível de atividade e do emprego. O País não tem restrição nem à entrada de capitais nem à saída, seja de residentes, seja de não residentes. “Com isso, criou-se uma ligação direta, digamos, do ciclo externo com o ciclo doméstico. Esta é que é a questão, por conta da abertura inaceitável, que dá a liberdade do movimento de capitais”, dispara Carneiro. O real, diz, está bem desvalorizado. Se baixar a taxa de juros, vai sair capital e desvalorizará o câmbio, aí bate na inflação. Ou seja, vai-se escolher, no fundo, entre mais inflação e mais recessão.

A inflação nos EUA está na alta mais acelerada em 40 anos e o Federal Reserve deu uma guinada neste mês, mas cortar o estímulo monetário não consertará as cadeias de suprimentos, alertou a economista Isabella Weber, professora da Universidade de Massachusetts, em artigo publicado no jornal inglês The Guardian. “O que precisamos, em vez disso, é de uma conversa séria sobre controles estratégicos de preços, assim como depois da Segunda Guerra Mundial”, sugeriu Weber, em uma tomada de posição que gerou discussão, nem sempre educada, entre seus colegas de profissão. “Não sou um fanático do livre mercado, mas isso é verdadeiramente estúpido”, reagiu o Nobel de Economia Paul Krugman.

“Weber elaborou um paralelo cuidadoso com a situação da primavera de 1946, quando Paul Samuelson, o principal mentor de ­Krugman, fez publicar uma carta no New York Times clamando por controles contínuos de preços, diante de gargalos e escassez temporários, precisamente a situação atual”, contestou o economista James Kenneth Galbraith, professor na Universidade do Texas. Minutos depois do disparo de ­Galbraith, Krugman comunicou ter deletado, com “extremo pedido de desculpas”, seu tuíte sobre o artigo de Weber.

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Sobrou até para o economista brasileiro Guilherme Magacho, da Agence ­Française de Développement (AFD), alvo de comentários agressivos após dizer, em rede social, que “essa discussão sobre controle de preços é completamente insana e reflete bem o que são os economistas de 2021. O mundo inteiro faz controle de preços, cartéis internacionais, grandes monopólios como a Amazon, todos os governos. Só não avisem os economistas porque eles dão chilique.” Magacho confessou surpresa diante “da quantidade de ofensas” que recebeu por conta dessa manifestação. Em uma economia de mercado, acrescenta, os preços são fundamentais para sinalizar aos agentes quando há escassez de oferta e, portanto, necessidade­ de investimento. “No entanto, quando nos defrontamos com situações em que poucas empresas têm bastante poder de mercado, esse mecanismo pode falhar. Quando a demanda individual da empresa é inelástica, ou seja, pouco sensível ao aumento de preços, as empresas podem se aproveitar disso para aumentar os preços e isso não leva, necessariamente, a mais investimento.” Na verdade, acrescenta o economista, ao fazer isso ela reduz a demanda, e, com capacidade ociosa, consegue aumentar sua receita à custa de uma menor produção e um menor consumo.

Essa reação é bastante comum em setores das cadeias produtivas, como fornecedores de energia e matéria-prima, pois se tratam de indústrias bastante concentradas. “O controle desses preços é praticado em muitos países, inclusive no Brasil, pois se sabe que isso tem impactos relevantes em qualquer estratégia de desenvolvimento.” A liberdade tarifária, diz o economista, pode até existir, mas não deve ser completa, pois, como essas indústrias fornecem bens e serviços para todo o restante da cadeia produtiva, o impacto de um choque positivo de preços sobre a economia pode ser devastador, e não haveria taxa de juros capaz de segurar o desencadeamento de uma espiral inflacionária.

A carga de juros da dívida aumentará em torno de 5% do PIB

O controle de preços não pode ser confundido, entretanto, com o tabelamento de preços, que se dá, geralmente, nas indústrias da ponta da cadeia produtiva. O controle de preços dos insumos, especificamente, é fundamental para garantir estabilidade e previsibilidade dos investimentos. “Imagine se indústrias mais sofisticadas, como a de máquinas e equipamentos ou a química, não tivessem previsibilidade do custo dos seus insumos, como alumínio ou energia. O custo dos novos projetos subiria muito diante da incerteza da rentabilidade, o que levaria a um apagão dos investimentos”, destaca Magacho. “No Brasil, desvalorizações cambiais abruptas são frequentes e, se as variações de preço são repassadas diretamente aos setores mais sensíveis, o resultado é um desabastecimento completo da economia. A inflação decorre não de um problema de produção agregada, mas da variação de alguns preços que são chave. Isto é o que a maior parte dos macroeconomistas não consegue entender, pois eles ficam com seus modelos agregados sem se preocupar com a interação entre sistemas produtivos”.

Um dos casos mais emblemáticos é o da dolarização dos preços estratégicos dos combustíveis fósseis em um ­país autossuficiente em petróleo. “Quando se decidiu atrelar o preço do combustível ao preço internacional do petróleo, o que ocorreu no Brasil foi exatamente esse descontrole a que me refiro. O repasse de preços pelas refinarias afetou diretamente o produtor da ponta, no caso, o caminhoneiro, que produz o serviço de transporte. Por ser formado por muitos produtores e ter menor poder de mercado, o conjunto dos caminhoneiros absorveu esses custos, levando ao desabastecimento.” O aumento do preço não levou, entretanto, a mais investimentos em refinarias e mais oferta de combustível, ressalta o economista, pois essa lógica não funciona em alguns mercados. Ao contrário, o aumento do preço desencadeou uma crise, que só viria a ser resolvida com subsídios do governo aos produtores.

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A mesma lógica, sublinha Magacho, ocorreria diariamente em diversos setores de fornecedores localizados nas cadeias produtivas se não houvesse políticas explícitas de controle de preços. Como os produtores dessas indústrias, que muitas vezes são aqueles que mais agregam valor, se encontram em mercados difusos, são eles que absorveriam os choques se não houvesse controle de preços. “O resultado não seria aumento da produção, mas gargalos na produção de bens essenciais ao funcionamento da economia. Embora, às vezes, o problema da inflação venha de pressões sobre os preços agregados, quando há flutuações de demanda, como apontado por ­Krugman para o caso dos EUA, nos países cuja moeda é volátil e os fornecedores domésticos são tomadores de preço no mercado internacional, ela vem geralmente de choques nos preços relativos, e o aumento dos juros não é capaz de controlar sozinho a pressão inflacionária.”

A dinâmica descrita pelo economista expõe o simplismo das análises de grande parte dos economistas ortodoxos sobre a inflação, que entendem como um problema a ser resolvido pelo mercado. “Quando os macroeconomistas compreenderem que o fato de eles usarem uma função de produção agregada não faz com que os produtores gerem um bem homogêneo, eles vão entender que a dinâmica de preços é muito mais sofisticada e exige uma análise bem mais complexa do sistema econômico”, sublinha o pesquisador. Função de produção agregada é, basicamente, a ideia de que os produtores de uma economia produzem apenas um bem, “o PIB”.

“Isto é muito usado para analisar se a economia está ou não com excesso de demanda ou escassez de oferta (PIB corrente ­versus PIB potencial). O problema é que muitas vezes a inflação não é de demanda, ela decorre do aumento de preço de um conjunto de bens específicos, cujo maior preço leva a uma redução de oferta (e não a um aumento). Dessa forma, o mecanismo de preços não corrige automaticamente o problema de escassez de oferta, e se entra em uma espiral inflacionária.”

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS: U.S. FEDERAL RESERVE E RAPHAEL RIBEIRO/BCB – ISTOCKPHOTO E CHARLES MOURA/PREFEITURA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS/SP – FILIPE ARAÚJO/AFP

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