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Além do acrônimo

Com certa reticência do Brasil, os BRICS ampliam o número de associados, enquanto miram uma alternativa ao dólar

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Linha de frente. Lula participou por videoconferência. Putin convidou Dilma Rousseff para continuar no comando do Banco dos BRICS – Imagem: Redes Sociais/Palácio do Planalto e Maxim Shametov/AFP
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Delegações empresariais de países dos BRICS reuniram-se em Moscou em 17 e 18 de outubro, dias antes do encontro anual dos líderes políticos do grupo liderado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Ao chegar à cidade, receberam um cartão com saldo de 500 rublos, a moeda russa, quantia equivalente a 29 reais. O cartão tinha um código “QR” e estava atrelado a uma plataforma de pagamentos criada por uma universidade estatal de São Petersburgo. Seu uso foi um teste para transações internacionais sem dólar. Ao longo do ano, a Rússia, na presidência rotativa dos BRICS até dezembro, investiu em projetos capazes de tirar do papel um sistema monetário que não precise do dólar nem do Swift, sistema de liquidação de pagamentos internacionais. Por causa da guerra na Ucrânia, os bancos russos foram banidos do Swift por Estados Unidos e Europa, os mandachuvas. Um exemplo do impacto da expulsão: cartões de crédito internacionais tradicionais, como Visa e Mastercard, não funcionam na Rússia, a menos que tenham sido emitidos dentro do país, nem permitem saques em caixas eletrônicos.

A situação foi explicada às delegações políticas que se reuniram de 22 a 24 de outubro em Kazan, a cidade da eliminação do Brasil pela Bélgica na Copa de 2018. Da perspectiva russa, uma alternativa ao dólar e ao Swift é uma necessidade imediata. Na visão do governo Lula, é algo indispensável para dotar o País, e o Sul Global, de independência econômica. “O Brasil vai impulsionar esse tema nos BRICS”, afirma o diplomata Antonio Freitas, subsecretário de Finanças Internacionais e Cooperação Econômica do Ministério da Fazenda, a propósito do comando rotativo que o País exercerá no bloco a partir de janeiro.

É um assunto tecnicamente complicado, um desafio, segundo um colaborador diplomático de Lula. A economia global é majoritariamente lastreada no dólar, anota. O “banco dos BRICS” e o “FMI dos BRICS” foram criados durante uma presidência brasileira, em 2014, mas não se deve esperar uma solução no próximo ano. É também uma questão política, teo­riza o colaborador, dado o alinhamento do PIB e da mídia brasileiros aos interesses de Washington. “É um grande enfrentamento ao dólar”, diz. “Os aparelhos ideológicos do neoliberalismo projetam uma ameaça ao poder dos EUA. Ainda se trata de um exagero, mais propaganda do que realidade. O bloco está muito distante de uma aliança ou pacto militar”, afirma Bruno Lima Rocha, professor de Relações Internacionais. “O instrumento de disputa de poder mundial é outro: o dólar.”

Reduzir a dependência da moeda dos EUA nas transações comerciais interessa a todos os integrantes

Um centenário think tank norte-americano sobre questões internacionais, o Conselho de Relações Exteriores, divulgou em 18 de outubro uma análise dos BRICS e apontou Lula como “grande defensor” de alternativa ao dólar. “É chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre os nossos países. Não se trata de substituir as nossas moedas. Mas é preciso trabalhar para que a ordem multipolar que almejamos se reflita no sistema financeiro internacional. Essa discussão precisa ser enfrentada com seriedade, cautela e solidez técnica, mas não pode ser mais adiada”, declarou o brasileiro na quarta-feira 23, na reunião de cúpula dos BRICS.

Foi um discurso por videoconferência. Na véspera de viajar à Rússia, Lula havia sofrido um acidente em casa. Caíra para trás quando estava sentado em um banco e batera a cabeça. Teve de levar pontos. Os médicos recomendaram que não viajasse. Coube ao ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, representá-lo em ­Kazan. É Vieira na primeira foto oficial dos BRICS em que não há só os quatro fundadores de 2009 (Brasil, Rússia, Índia e China) e a África do Sul (em 2011). Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã haviam sido convidados em 2023 a fazer parte. Argentina e Arábia Saudita também, mas o ultraliberal e americanófilo Javier Milei venceu a eleição presidencial argentina posteriormente e recusou o convite, enquanto os sauditas hesitam, pois não querem melindrar Tio Sam, aliado histórico.

Na conformação de 2024, os BRICS representam 33% das terras do globo, 36% da economia e 45% da população. Um desenho que se ampliará. Na próxima cúpula, no Brasil em 2025, podem comparecer mais 13 países, cuja adesão na condição de “parceiros”, categoria diferente, sem os mesmos direitos dos integrantes plenos, foi aprovada na quarta-feira 23. Da África, Argélia, Nigéria e Uganda. Das Américas, Bolívia e Cuba. Da Ásia, Cazaquistão, Indonésia, Malásia, Tailândia, Vietnã e Uzbequistão. Da Europa, Bielorrússia e Turquia.

Bola fora. Maduro apareceu de “surpresa” em Kazan, mas não conseguiu garantir a adesão da Venezuela ao grupo – Imagem: Alexander Nemenov/AFP

Segundo um diplomata brasileiro, os BRICS consolidaram a capacidade de atração de novos participantes, prova, prossegue, do acerto da política externa do governo Lula, que coloca os BRICS como uma das prioridades, e explicação para certa má vontade da turma de sempre. Um editorial da terça-feira 21 de O Globo diz que o grupo dos BRICS é antiocidental e serve à China. A propósito, uma empresa brasileira de aviação civil, a Total, negocia há alguns meses com uma estatal chinesa, a Comaq, a compra de aviões de passageiros. É uma transação capaz de afetar a geopolítica da aviação civil, de acordo com o CEO da companhia, Paulo Almada, que foi à China em outubro. Esse mercado é dominado pela norte-americana Boeing e a europeia Airbus. O Brasil pode abrir as portas da América do Sul à Comac.

“Ignorar os BRICS como importante força política, algo que os EUA têm sido propensos a fazer no passado, não é mais uma opção”, escreveram acadêmicos da universidade Tufts, dos EUA, ligados a uma escola de estudos sobre temas globais. Na época do artigo, agosto de 2023, os BRICS preparavam-se para convidar novos participantes, enquanto um dos conselheiros de Joe Biden para segurança nacional, Jake Sullivan, declarava que a Casa Branca não via o grupo como rival geopolítico.

A Venezuela queria entrar nos BRICS. Seu presidente, Nicolás Maduro, foi de surpresa à Rússia na terça-feira 22. Em vão. Nas negociações anteriores à cúpula, o Brasil tinha sinalizado ser contra a adesão. O motivo é o estado atual da relação bilateral. A Venezuela saiu do isolamento político e externo com a ajuda do Brasil, fiador de um compromisso entre o governo e a oposição, o acordo de Barbados, relativo à eleição presidencial realizada em agosto passado. Até hoje não se conhecem as atas do pleito, divulgação pedida pelo Brasil. A Venezuela, segundo um diplomata, agora está muito autossuficiente e acha que não precisa de ninguém.

No próximo ano, caberá ao Brasil a presidência rotativa dos BRICS

Lula recebeu uma ligação de Putin na terça-feira 22 e, segundo relatos obtidos pela reportagem, o telefonema não abordou a Venezuela em específico. O brasileiro teria feito um comentário genérico sobre por que os BRICS não podem aumentar muito de tamanho. Putin era a favor da entrada da Venezuela. No mais, quis saber da saúde de Lula e lamentou a ausência do brasileiro em Kazan. Na cúpula, o presidente russo convidou Dilma ­Rousseff a seguir à frente do Novo Banco de Desenvolvimento, o “banco dos BRICS”. A instituição tem uma chefia que se alterna entre os fundadores do grupo a cada cinco anos. O primeiro a dirigi-la havia sido indicado pela Índia em 2015, o economista Kundapur Kamath. O segundo, pelo governo Bolsonaro, Marcos Troyjo, um diplomata. Com a volta de Lula ao poder, houve um acordo nos BRICS para permitir ao País trocar Troyjo sem mexer no mandato a vencer em 2025. Caberá aos russos apontarem outro nome para o posto, e Putin quer Dilma. Os demais fundadores do grupo precisam concordar.

O banco tem atuado em linha com o objetivo dos BRICS de criar alternativas ao dólar e ao sistema financeiro controlado pelo Ocidente. O atual plano estratégico, válido até 2026, tem o financiamento ao setor privado como uma diretriz e, para cumpri-lo, prevê o uso de moe­da local, ou seja, a divisa do país em que a empresa financiada estiver. O motivo é simples. O custo de empréstimos em dólar é afetado sempre que o Fed, o Banco Central dos EUA, mexe na taxa de juros. Impacto que pode ser direto, no juro do empréstimo, ou indireto, via câmbio. “É muito importante disponibilizar financiamento em moeda local através de plataformas específicas”, afirmou Dilma em reunião com Putin na terça-feira 22.

O NBD tem hoje uma carteira de empréstimos de 33 bilhões de dólares, direcionados a cerca de cem projetos. ­Dilma considera que o banco está ainda na “adolescência” e que seus eixos de ação mais importantes são três: financiamento em moeda local ao setor privado, apoio ao Sul Global e concessão de crédito focada em infraestrutura, industrialização e transferência de tecnologia. “Concordamos em, conjuntamente, tornar o Novo Banco de Desenvolvimento um novo tipo de MDB no século XXI”, diz a declaração final da cúpula dos BRICS. MDB é uma sigla em inglês para “Banco de Desenvolvimento Multilateral”.

O encontro foi usado por Putin para mostrar que seu país não está isolado internacionalmente. Quando assumir o bastão dos BRICS, o Brasil levará para o grupo a lista de temas apresentada durante o comando rotativo do G-20: combate à fome e à pobreza, enfrentamento da mudança climática, reforma da ONU e taxação global dos ricaços. •

Publicado na edição n° 1334 de CartaCapital, em 30 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Além do acrônimo’

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