Agricultura familiar não é o mesmo que assentamento sem terra

Indígenas, sem terras e quilombolas precisam de todo o apoio possível das iniciativas públicas e privadas. Assistencialismo se for o caso

Da parte da iniciativa privada, apenas vender insumos, não receber, ficar reclamando e mandar lavradores que nada têm para cartório, não leva a nada

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Pensamo-nos muito fortes na atividade agropecuária. E realmente somos, sobretudo, considerando o baixo nível de subsídios e incentivos que recebem os brasileiros comparados aos de outros grandes produtores mundiais.

E as taxas de juros do crédito rural, perguntarão nossos adversários na Organização Mundial do Comércio (OMC)? Merreca. Só faltava aos agricultores brasileiros de altos riscos com pouca proteção, serem financiados em base a taxas de mercado. Estratosféricas, no dizer de quem produz, e insuficientes, de quem usa a falácia dos juros altos no combate à inflação para obter arbitragens gordurosas e bônus de fins de ano envelhecidos 18 anos.

Nos últimos dez anos, o sucesso da agropecuária tem origem no melhor aproveitamento de inegáveis fatores naturais, uso intensivo de tecnologia, pensamento e trabalho de homens e mulheres que, organizados de forma mais autônoma do que conduzida, construíram uma divisão social do trabalho capaz de competir no mercado internacional e produzir alimentos, fibras, produtos florestais e energia renovável para a segurança alimentar do País.

Ainda que não haja perigo dessa cadeia desmoronar em décadas futuras, ela sofrerá atribulações cíclicas, que vistas assim do alto não parecerão significar muito, mas sob a lupa poderão desarrumar ainda mais arranjos locais produtivos ora em desenvolvimento com o rótulo, pouco entendido, de agricultura familiar.

Nas crises cíclicas que virão, além dos lugares-comuns, como modais de transportes de menores custos, estradas, portos – essenciais, mas de longo tempo para maturação – será necessário que o agropecuarista proteja seu custo de produção.

As Bolsas de Chicago e Nova York não poupam ninguém quando há excessos de oferta, nem os olhares preocupados de William e Renata, a novidade, perdoam quando faltam ou ficam caros tomates e feijões.


A equação vale tanto para a agropecuária de exportação, empresarial, da grande propriedade – deem lá o rótulo que quiserem – como, em medida até mais grave, para aquela tarjada familiar.

Será a enésima vez que repetirei: agricultura familiar tem pouco a ver com assentamentos e movimentos sociais de sem terras, como insistem em estigmatizar as folhas e telas cotidianas.

Grande parte da primeira está estabelecida em bases sólidas e modernas de produção. Alcança índices sociais muito melhores do que os verificados no meio urbano. Desenvolve-se com sabedoria tecnológica e alguns bons programas governamentais de apoio. Querem contestá-la? Antes olhem para os municípios onde ela predomina.

Assentados, indígenas, sem terras e quilombolas precisam de todo o apoio possível das iniciativas públicas e privadas. Assistencialismo se for o caso, doações de produtos orgânicos de baixo impacto ambiental e custos, campos de experimentação, instrução técnica e educacional para a boa gestão.

Da parte da iniciativa privada, apenas vender insumos, não receber, ficar reclamando e mandar lavradores que nada têm para cartório, não leva a nada. Não sonhem transformá-los em campeões mundiais de produtividade por que assim exigem as relações capitalistas no mundo rural.

Também vale a pena viver de trabalho e produção dignos sem, um dia, ser enterrado numa cova com palmos medida, como um Severino de Maria, como João Cabral de Melo Neto presenteou a literatura brasileira.

Da parte do governo, o apoio deve, inclusive, se estender ao plano jurídico para punir quando não se cumpre as exigências dos programas que os beneficiam, ou para defendê-los, quando vítimas de equívocos de posse, frutos de lambanças cartorárias seculares.

No aqui já citado livro “O Mundo Rural no Brasil do Século 21”, o capítulo 4, escrito por Maria Thereza Macedo Pedroso, tem título “Experiências internacionais com a agricultura familiar e o caso brasileiro”.

Questionando o mau uso do termo, a engenheira-agrônoma, mestre em desenvolvimento sustentável e pesquisadora da Embrapa Hortaliças, propõe “delimitar o grupo para permitir ações governamentais em base a análises científicas”.

Explica: “nitidamente reflete os descaminhos, os desencontros e as insuficiências decorrentes dessa fragilidade histórica, seja pela ação governamental incompleta e muito recente [década de 1960], seja pelo escasso conhecimento cientifico [Ciências Sociais] acumulado sobre o assunto”.

A pesquisadora joga parte da culpa pelo equívoco do termo na esquerda, que supostamente teria visto “rebaixamento social” na expressão pequena produção, trazendo ao imaginário nacional a ideia de família, “mais simpática em termos sociais e até religiosos”.

Ah, essa esquerda danadinha e cheia de truques.


Reconhece, porém, a necessidade do governo criar um segmento a permitir políticas específicas de apoio. Já é um avanço. E se permite comparar-nos a EUA e União Europeia, pois considera-nos em estado tecnológico semelhantemente avançado.

Antes de ir para as comparações internacionais, mais uma vez, alfineta o que ela chama de “setores politizados situados à esquerda”.

“Como se a mera nomenclatura pudesse contrapor-se à força dos processos econômicos e financeiros”.

Volto ao capítulo da pesquisadora. Se não mudar de ideia.

 

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