Economia

assine e leia

Abalos da globalização criam espaço para a manufatura. Mas é preciso correr

Diversos países desenvolvidos estão trazendo de volta a capacidade industrial deslocada para a Ásia

Abalos da globalização criam espaço para a manufatura. Mas é preciso correr
Abalos da globalização criam espaço para a manufatura. Mas é preciso correr
Tartaruga. Dois anos de pandemia e centenas de milhares de mortos não foram suficientes para o governo estimular o setor local de farmoquímicos. Bolsonaro só se mexeu diante da ameaça de faltarem fertilizantes para o agronegócio, com poderoso lobby em Brasília - Imagem: Renato Alves/Agência Brasília e Cláudio Neves/Portos do Paraná/GOVPR
Apoie Siga-nos no

Saudada como solução universal nos anos 1980 e 1990, quando passou a ser a principal bússola da economia, a globalização não entregou o que prometia, está em crise acelerada e isso abre espaço para maior participação da indústria em países como o Brasil. Aproveitar essa oportunidade requer, porém, elevado discernimento, muito esforço e ação rápida. “O tempo urge, as pessoas não estão entendendo que não basta fazer alguma coisa, tem de fazer na velocidade e na intensidade que o mundo está fazendo, senão a gente vai ficar para trás”, alerta o economista sênior do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, Rafael­ Cagnin. “Quem chegar atrasado não vai entrar na festa.”

A guerra da Ucrânia marca o fim da globalização, segundo Laurence D. Fink, presidente do BlackRock, o maior fundo de investimentos do mundo. Vários economistas discordam, acreditam tratar-se mais de uma reconfiguração, na qual a China teria um papel a desempenhar, com 145 países, sendo 21 na América Latina, integrados à iniciativa Belt & Road, também conhecida como a nova Rota da Seda, o maior plano global de investimento em infraestrutura e energia. “Tende a ocorrer um equilíbrio muito maior entre a segurança energética, alimentar e de insumos básicos e a integração nas cadeias globais de valor”, prevê o economista-chefe da Fiesp, Igor Rocha. “Em vez de importar tudo, teremos maior equilíbrio.”

A grande questão agora é o debate de acompanhamento dos planos da Alemanha, dos EUA e da União Europeia, de maior produção nos respectivos países, vis-à-vis o que ocorria no passado, que era a superfragmentação produtiva. Um exemplo de tomada de decisão para aumentar a produção local, com o objetivo de suprir importações ameaçadas pela guerra na Ucrânia, é o Plano Nacional de Fertilizantes lançado pelo governo em março. O projeto foi acelerado na tentativa de evitar o desabastecimento interno, devido à dependência de importações, com graves prejuízos à produtividade do agronegócio, mas foi uma ação pontual decidida pela importância do setor na economia e pela força do seu lobby em Brasília.

Com as mudanças climáticas, talvez a matriz energética do País não seja mais tão “verde” quanto parece

A oportunidade de a indústria local aproveitar o rearranjo da globalização existe, concorda Cagnin, mas o Brasil tem um trabalho de casa imenso a fazer e está atrasado, pois o restante do mundo engajou-se há mais tempo. As estratégias industriais atuais têm dez anos, transcorreu uma década de manufatura avançada e quase uma década de indústria 4.0 na Alemanha, que, a exemplo dos demais países avançados, tem muito mais recursos e parte de um ponto muito melhor. A China é emergente, mas tem um “canhão” de recursos financeiros e de instrumentos institucionais para mobilizar e tornar o desenvolvimento tecnológico uma prioridade. O País não tem nem esse fundo financeiro e, aparentemente, nem a coordenação política institucional para isso, destaca o economista do Iedi.

A reformulação da concepção de política industrial é um ponto dos mais importantes a ser levado em conta nesse rumo. “A política industrial, como ficou evidente nos últimos anos, sofreu uma alteração muito forte nos seus paradigmas. Aquela referência que vinha dos anos 1950, até o fim dos anos 1970, com o modelo de substituição de importações, mudou bastante, porque houve a ascensão das cadeias globais de valor e a própria simbiose entre os setores passou a ocorrer de uma forma significativa. Os paradigmas tecnológicos mudaram, assim como daqui a 20 anos vão mudar”, destaca Rocha. Nos anos 2000, acrescenta, predominou a questão da integração das cadeias globais de valor, mas hoje o paradigma do direcionamento do Estado tem sido muito mais para uma política orientada por missões, baseada nos trabalhos da economista Mariana ­Mazzucato. Considerada uma das principais economistas especializadas em inovação, Mazzucato, autora de trabalhos influentes, é pesquisadora do Institute for Innovation and Public ­Purpose do University College London.

Segundo a Associação Brasileira de Desenvolvimento, as missões mais importantes que devem orientar a economia do País até 2030, nos padrões dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável definidos pela ONU, são: 1. Futuro digital, inteligente e inclusivo. 2. Ecossistema de inovação em bioeconomia e para a Amazônia. 3. Agronegócio engajado. 4. Infraestrutura e cidades sustentáveis. 5. Saúde como motor do desenvolvimento.

Atraso. A manufatura avançada engatinha no Brasil, onde as péssimas estradas provocam perdas de 2 bilhões de reais por ano da safra de grãos – Imagem: Intel Oregon/EUA e GOVMT

Do ponto de vista ambiental, o Brasil está muito bem posicionado, devido a matriz energética e vários outros pontos, “mas é arriscado contentar-se com isso. Em primeiro lugar, porque, com as mudanças climáticas, talvez a nossa matriz energética não venha a ser tão verde assim”, destaca Cagnin. No ano passado, o governo acionou as usinas termelétricas e importou gás natural, e isso tem impacto ambiental negativo. “É preciso ampliar a performance ambiental nos processos produtivos, no sistema industrial, na agricultura. O mundo está reduzindo a pegada de carbono no processo produtivo industrial e na produção agrícola, mas o Brasil, não. A situação ambiental confortável está muito concentrada na nossa matriz hidrelétrica, no fato de termos florestas gigantescas e estamos perdendo progressivamente essa vantagem perante os que estão fazendo mudança tecnológica, incorporando digitalização para que o processo produtivo deles seja mais verde.”

Um dos setores de maior potencial em uma nova política industrial é o de insumos para o complexo da saúde, destaca Rocha. “Basta ver o estímulo que foi dado pela questão das vacinas”, diz. “Outro setor que pode se desenvolver, muito associado ao paradigma da descarbonização, é o do hidrogênio, tanto o verde quanto o azul. O Brasil tem uma possibilidade promissora a partir das energias renováveis e do desenvolvimento regional que pode ser feito no Nordeste, das fontes de energia renováveis. É um caminho interessante para desenvolver e pensar num plano de modernização da frota automotiva, mobilidade urbana. Acho que são assuntos que podem nos próximos anos integrar essa pauta.”

A heterogeneidade de critérios nas decisões governamentais é um complicador adicional. “A questão dos fertilizantes foi resolvida da noite para o dia, mas não houve a mesma mobilização em relação a farmoquímicos, a despeito dos dois anos de pandemia e da quantidade de mortos no Brasil. O País depende de fertilizantes importados, apesar de ter uma das maiores produções agrícolas do mundo, assim como depende da importação de insumos farmacêuticos, embora tenha o SUS, um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo”, sublinha Cagnin.

A fragmentação produtiva típica da globalização foi expressiva nos anos 2000, mas a partir de 2010 esse movimento perdeu intensidade. Primeiro, porque alguns países viram que, a despeito de estarem integrando elos de maior valor agregado na cadeia global de valor, uma fragmentação muito forte tendia a ser contraproducente. O pensamento, diz Rocha, era as nações avançadas projetarem o design, entregarem a produção para os países mais baratos em termos de mão de obra e, desse modo, se associarem aos elos de maior valor da cadeia global de valor. O grande problema é quando se direciona a produção excessivamente para algumas regiões e, por meio do processo de engenharia reversa, perde-se também o design (a engenharia reversa é o desmonte de uma máquina ou produto, em geral importado, para descobrir como funciona e passar a produzi-lo localmente). “Isso aconteceu na indústria de software estadunidense, que foi redirecionada para a Índia, e em diversas indústrias de bens de capital que foram redirecionadas para a Ásia. Era uma questão, portanto, que suscitava certo incômodo de alguns setores industriais mundo afora. Aí a gente se deparou com a pandemia.”

Uma evidência da reversão da fragmentação produtiva característica da globalização, destaca Cagnin, é o chamado reshoring, ou ações e medidas de governos de países desenvolvidos, inclusive dos EUA, de trazer de volta para o seu território nacional a capacidade produtiva industrial e, sobretudo, dos produtos tecnologicamente mais avançados, e, consequentemente, mais estratégicos para a revolução tecnológica em aceleração, que eles haviam deslocado para o Oriente.

O fator geopolítico nas decisões que envolvem a economia ganhou mais peso com a pandemia e a guerra na Europa, mas há muito tempo ele é crítico. Entre 2012 e 2014, diz Cagnin, os países desenvolvidos retomaram estratégias industriais ou políticas industriais de forma mais explícita, e com componente ou conteúdo tecnológico acentuado. Reconheceu-se a importância da indústria para se estabelecer uma trajetória de crescimento mais sustentável e com efeitos mais positivos sobre distribuição de renda e o poder de compra da população, criação de empregos de qualidade. “Isso foi consenso na saída da crise de 2008-2009 e para se alcançar tal objetivo, era preciso dar um salto tecnológico que restabelecesse as condições de competitividade diante do avanço, sobretudo chinês, e do Leste Asiático de uma forma geral. Há um componente geopolítico desde o princípio.”

O investimento em infraestrutura faz parte de praticamente todas as políticas industriais no mundo e é um dos setores com grandes deficiências no Brasil, onde estradas péssimas provocam a perda de 2 bilhões de reais no transporte de grãos todos os anos. As necessidades são muitas e décadas de defasagem em investimentos e tecnologia são um complicador. Em infraestrutura de Telecom, por exemplo, o Brasil tem um longo caminho a ser percorrido em relação aos paradigmas 4G e 5G, ainda não conseguiu fazer o alinhamento na fronteira tecnológica dos países desenvolvidos, está na lanterna. As rodovias demandam modernização tecnológica também. No transporte ferroviário, a eletrificação precisa ser explorada. “Temos de entender que a nossa infraestrutura ainda tem muitos gargalos. É preciso, primeiro, pensar em como resolver os gargalos para, depois, pensar na modernização. A gente não passou da primeira casa”, lamenta Rocha. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1204 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nova oportunidade”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo