Economia

A saúde sob financeirização: o caso das operadoras de planos de saúde no Brasil

Para além da austeridade fiscal, a crescente financeirização produz conflitos que impedem que alcancemos uma saúde pública para todos

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A pandemia nos mostrou quão fundamentais são os sistemas públicos de saúde. Para além da austeridade fiscal, a crescente financeirização produz conflitos que impedem que alcancemos uma saúde pública para todos, entendida enquanto um direito social de cidadania.

De fato, o SUS nunca chegou a fornecer acesso universal e atenção integral à população, uma vez que, desde sua criação, ele enfrentou dificuldades de financiamento. Mesmo quando o governo brasileiro aumentou os gastos públicos com saúde, como nos anos 2000, também foram adotadas políticas que acabaram fomentando a acumulação do setor privado de saúde.

A decisão do Estado de ampliar o patrocínio da acumulação capitalista no setor só pode ser entendida no contexto da crescente influência dos atores financeiros, instituições e mercados nas políticas sociais e fiscais. Essa influência não apenas molda a forma como os governos agem, mas também altera a maneira como as corporações modernas se comportam.

As operadoras empreenderam uma longa jornada, acumulando lucros e fazendo fusões e aquisições, para atingir o tamanho necessário para acessar os mercados de capitais no Brasil

É a interação entre duas dimensões que caracteriza a financeirização: o Estado abre caminho para as empresas privadas, que se alinham às necessidades dos mercados e atores financeiros e, como resultado, há um amálgama de interesses econômicos para proporcionar novas oportunidades de acumulação de capital.

Com esse pano de fundo, exploramos, em um artigo recente, como a financeirização tem afetado a organização e o comportamento das operadoras de planos de saúde privados no Brasil, tendo como foco o período de 2007 a 2019.

A primeira tarefa é compreender como a financeirização afeta essas firmas. A literatura destaca alguns fatos estilizados: há um aumento no peso dos ativos financeiros nos portfólios, assim como na participação das receitas financeiras sobre as receitas totais; o endividamento se expande; e ocorre uma redefinição da governança corporativa para favorecer os acionistas, com a adoção de práticas como a recompra de ações.

Será que podemos observar essas tendências no comportamento das operadoras no Brasil? Dedicamos nossa atenção às empresas que são líderes na oferta de planos de saúde. Conceitualmente, essas empresas são aquelas que podem influenciar a configuração e dinâmica do mercado, buscando lucros extraordinários e ditando os padrões organizacionais e operacionais a serem seguidos.

Oito firmas líderes foram selecionadas: Amil, Bradesco Saúde, Hapvida, Notre Dame Intermédica, Qualicorp, Sulamérica, Unimed-BH e Unimed Central Nacional. Juntas, elas fornecem 34,4% dos planos de saúde no Brasil – 19,2 milhões de usuários – e representam 43% do total de ativos das empresas do segmento.  Reunimos informações sobre as demonstrações financeiras dessas empresas de 2007 a 2019 na base de dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e desenvolvemos indicadores sobre: (i) o peso dos ativos e receitas financeiros no total de ativos e receitas; (ii) o peso do endividamento e da alavancagem sobre o total das obrigações; e (iii) abertura de capital e recompra de ações.

Nossa análise apontou que houve um aumento na participação dos ativos financeiros nas carteiras dessas empresas ao longo de mais de uma década, em parte motivadas por exigências regulatórias, mas com um peso muito restrito das receitas financeiras sobre as receitas totais. No que diz respeito ao endividamento, verificamos um processo de desalavancagem, na contramão do que a literatura aponta como uma subordinação aos credores. Nesse contexto, houve uma diminuição na financeirização dessas empresas?

Argumentamos que não é esse o caso. Há claramente uma crescente dependência dos mercados de ações e a reorientação de suas práticas de governança corporativa. As operadoras líderes empreenderam uma longa jornada, acumulando lucros e fazendo fusões e aquisições, para atingir o tamanho necessário para acessarem os mercados de capitais no Brasil.

Muitas delas abriram capital na bolsa de valores brasileira durante esse período e fizeram ajustes profundos nos padrões de governança corporativa para práticas orientadas para a criação de valor para o acionista. O anúncio de programas de recompra de ações pela Notre Dame e Hapvida em 2020 durante a pandemia, enquanto faziam lobby contra despesas com testes perante a ANS, é uma evidência anedótica desse processo.

Quando o governo brasileiro favoreceu a expansão do mercado de planos de saúde, essas firmas líderes se tornaram plataformas para o acúmulo de riqueza por parte dos investidores financeiros. Nossos resultados são uma primeira aproximação, mas acreditamos que iluminam questões relevantes para pesquisas futuras sobre a financeirização, em particular a da saúde.

Em primeiro lugar, acreditamos que devemos concentrar esforços na compreensão do processo de concentração de capital, bem como no papel fundamental que tem sido desempenhado pelo capital financeiro na mercantilização do SUS e na reorganização do setor privado de saúde.

Em segundo lugar, precisamos continuar a acompanhar os indicadores para verificar se essas empresas irão se engajar em novas estratégias de gestão de balanço no futuro, reproduzindo os fatos estilizados registrados na literatura.

Por fim, é preciso questionar se as firmas do Sul Global adotam padrões de financeirização diferentes daqueles do Norte Global. Replicar e refinar nossa metodologia para outros grupos de empresas e setores pode ser um campo frutífero para outras pesquisas.

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