Economia

A reforma trabalhista que estimula conflito e judicialização

O projeto apresentado pelo governo Temer entrega a sindicatos de fachada o poder de reduzir direitos

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As mudanças propostas para as leis trabalhistas seriam mínimas e até justificariam uma reflexão mais detida, ou certamente a expectativa de que empregados e empregadores a elas gradualmente se acomodassem, não fosse a confusa e mal disfarçada tentativa de revogar, pela atuação de sindicatos não raro debilitados por sistema sindical parcialmente esclerosado ou pela crise de empregabilidade, direitos historicamente conquistados e convertidos em preceitos constitucionais ou legais no Brasil e em tantos países que investem na evolução de seu patamar civilizatório por meio da afirmação dos direitos sociais.

Há aspectos positivos no projeto de lei que é encaminhado ao Congresso Nacional, a exemplo da elogiável intenção de elevar as multas administrativas aplicáveis aos empresários que deliberadamente descumprem as obrigações trabalhistas.

Também parece justa a pretensão de igualar o período de férias dos empregados contratados a tempo parcial aos empregados com jornada integral; e é bem aventurada, a meu sentir, a proposta de modificar os artigos 2º e 19 da Lei 6.019/1974 para finalmente permitir que o trabalhador temporário possa ser diretamente contratado pela empresa tomadora dos serviços, sem a (onerosa) terceirização a que se obrigavam os empregadores há mais de quarenta anos – e, nesse ponto, de modo a permitir que as empresas de trabalho temporário se consolidem no mercado como uma alternativa (não imposta) de gestão empresarial, à semelhança do que sucede em vários países europeus.

Afora esses aspectos, e desafortunadamente, o projeto de lei encaminhado pelo Poder Executivo não dissimula o interesse de entregar à generalidade dos sindicatos o poder de reduzir direitos trabalhistas instituídos recentemente em nossa ordem normativa.

É curioso notar que não houve, por parte da Presidência da República, algum esforço para tentar reestruturar o sistema sindical brasileiro, que data do início do século passado e preserva regras de investidura e financiamento de entidades sindicais forjadas para atender a um modelo corporativo e autoritário que, naquele tempo, inseria os sindicatos como órgãos do Estado e por isso os queria únicos por categoria e base territorial, além de sustentados por imposto que é hoje eufemisticamente chamado de contribuição sindical.

Há de se ponderar que não é fácil mexer nessa estrutura, de origem fascista, sem comprometer a força de sindicatos que, apesar dela ou sabendo valer-se de suas pontuais virtudes, revelam-se idôneos e com inquestionável capacidade de negociação, a exemplo do que ocorre a metalúrgicos, bancários, petroquímicos, postalistas, aeronautas e tantos outros.

O que não se pode esconder é que, segundo o IBGE (censo 2001/2002), metade dos sindicatos brasileiros jamais participou de negociação coletiva e sobrevive, portanto, essencialmente para arrecadar a contribuição sindical obrigatória.

A esses sindicatos de fachada, em número tão expressivo, também se estaria entregando a tarefa de suprimir ou reduzir direitos que a lei considera indisponíveis porque afetos ao valor social da livre iniciativa e à existência digna – princípios jurídicos que os artigos 1º, IV e 170 da Constituição consagra e associa ao postulado universal da dignidade humana.

Uma pergunta inevitável: de quando datam os direitos trabalhistas que o novo art. 611-A da CLT, segundo o projeto de lei enviado pelo Poder Executivo, propõe sejam flexibilizados? A resposta pode surpreender: as regras sobre férias remontam a 1977, com mudanças importantes por meio da ratificação pelo Brasil da Convenção 132 da OIT (em 1999) e também de alterações na CLT ocorridas em 2001. 

Os artigos da CLT que tratam de jornada e do banco de horas foram introduzidos pela Lei 9.601, de 1998. A Lei 10.101, que regula a participação em lucros e resultados, foi editada no ano 2000. As horas de deslocamento, ou horas in itinere, foram convertidas em lei em 2001, após longa evolução jurisprudencial. Os dispositivos da CLT que versam sobre intervalo intrajornada sofreram ajustes a partir de 1994. Em rigor, data de 1943, ou de antes disso, apenas o modelo monista de organização sindical, cujo aperfeiçoamento não parece interessar – malgrado a ele se pretenda oferecer a prerrogativa de promover o derretimento dos direitos previstos em lei.

Sob enfoque acadêmico, a escolha dos direitos que poderiam ser flexibilizados, a partir do dispositivo (art. 611-A) proposto no citado projeto de lei, parece um convite à formação de novos litígios. A começar pela cabeça do artigo, que prediz terem as convenções e acordos coletivos “força de lei” quando tratarem de tais ou quais temas. Na verdade, as convenções e os acordos coletivos sempre têm a mesma força da lei em relação a todos os temas, e vice-versa.

Com base no caput do art. 7º da Constituição, prevalecerá sempre a norma que mais tenha avançado na proteção do trabalhador quando duas ou três dessas normas houver regulado, por exemplo, “trabalho remoto”, “remuneração por produtividade” ou “registro da jornada de trabalho”.

Para não incorrer nesse erro reducionista, o art. 3º.3 do Código de Trabalho português preferiu enumerar os direitos que não podem ser afastados por regulamentação coletiva (entre eles incluindo a duração diária e semanal do trabalho e o tempo de intervalos ou de repouso, inclusive férias) em vez de catalogar, como faz o projeto de lei ora comentado, os direitos que podem ser regulados por norma coletiva. Todos podem.

O que às vezes não parece percebido, pelos arautos da reforma trabalhista no Brasil, é que leis e normas coletivas, indistintamente, submetem o seu conteúdo, aqui e no resto do mundo ocidental, ao exame de validade pelo Poder Judiciário (como aliás reconhece o texto proposto para o art. 611-A, §4º). Só o mundo do trabalho permite que a eventual inapetência ou demora do legislador estatal seja suprida pela autodeterminação dos atores sociais, por meio de norma genérica e abstrata.

Não há novidade, portanto, na ênfase ao “princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”, salvo se o interesse for o de desvirtuar a finalidade do direito à proteção por normas coletivas de trabalho e precarizar, por essa engenhosa via, a tutela do trabalhador que participa, por vocação ou por instinto de sobrevivência, da relação sempre assimétrica de emprego.

O primeiro direito a ser flexibilizado, pela proposta do Poder Executivo, seriam as férias, especialmente quanto à possibilidade de serem partidas em três pedaços, um deles equivalente a duas semanas. A exigência de que um dos períodos de ferias seja de no mínimo duas semanas revela a fonte de inspiração do governo: a Convenção 132 da OIT – Organização Internacional do Trabalho.

O Brasil ratificou a Convenção 132 da OIT e isso a faz revestida de supralegalidade, segundo o STF. Em seu art 8.1, a Convenção 132 autoriza o fracionamento de ferias somente mediante autorização “pela autoridade competente ou pelo órgão adequado de cada país”. Difícil entender que lei ordinária poderá revogar essa regra supralegal, ou seja, hierarquicamente superior a qualquer lei.

 Outro direito passível de flexibilização seria o “cumprimento da jornada de trabalho, limitada a duzentas e vinte horas mensais”. Não entenderam, tudo indica, que o empregado recebe 220 horas por mês porque nelas estão incluídas as horas de labor e igualmente as horas de repouso remunerado (em domingos e feriados). O cálculo é muito simples: 44 h/sem ÷ 6 dias/sem = 7,33 h/dia x 30 dias/mês = 220 horas/mês.

Ao multiplicar por 30 (dias/mês), apura-se, portanto, a quantidade de horas trabalhadas e também as de repouso remunerado. Não há fórmula matemática que permita trabalhar-se 220 horas/mês sem extrapolar-se o limite de 44 horas/semana estabelecido pelo art. 7º, XIII, da Constituição. O mês, no calendário gregoriano, não pode ter mais de 31 dias e, portanto, contém no máximo 4,4285 semanas (31 ÷ 7), o que equivale ao máximo de 194,85 horas de trabalho (4,4285 x 44 h). Supõe-se que o projeto de lei não pretenda derrogar o limite constitucional de 44 horas de trabalho semanais, nem a lógica aritmética.

A Justiça do Trabalho tem validado cláusulas normativas que dispõem sobre horas in itinere (ou horas de deslocamento casa/trabalho) ou sobre progressões horizontais (não se sabe por que o projeto de lei trata o “plano de cargos e salários” como se não fosse ele uma espécie de “regulamento empresarial”) sempre que não resvalam para além dos lindes do absurdo, ou da razoabilidade, a exemplo de cláusulas que reduzem a quinze minutos o tempo de cinco horas de deslocamento casa/trabalho (sem transporte público) ou de cláusulas que autorizem o empregador a violar acintosamente o princípio da isonomia ao promover, sem qualquer critério objetivo (único ou alternativo), alguns empregados em detrimento de outros que, até mais antigos, prestam serviço em iguais condições. Espera-se que o projeto de lei não pretenda legitimar o abuso patronal, onde houver.

A existência de cláusula que defina quais os direitos que continuarão vigorando (ou seja, revestir-se-ão de ultra-atividade) após o termo final de vigência da convenção ou do acordo coletivo deve mesmo ser estimulada, como pretende o projeto de lei. Isso não impede que a ultra-atividade prevaleça sempre que a norma coletiva for omissa.

Assim está consagrado na Súmula 277 do TST e acontece em inúmeros países que valorizam e incentivam a negociação coletiva (se não há ultra-atividade, o empregador obtém a revogação de todos os direitos historicamente conquistados pela categoria pelo só fato de recusar-se a participar da negociação coletiva de trabalho).

Alguns direitos que foram incluídos entre os susceptíveis de flexibilização carecem de algum esclarecimento: se a participação em lucros e resultados não pode ser paga em mais de duas parcelas no mesmo ano civil (art. 3º, §2º da Lei 10.101/2000), como poderia o mesmo acordo coletivo que instituiu a PLR estabelecê-la mediante pagamentos “não inferiores a duas parcelas”?

Se é de fato rigorosa a adesão ao Programa de Seguro-Emprego (Lei 13.189/2015), pode a convenção ou o acordo coletivo relativizar esse rigor e assim onerar as finanças públicas sem observar o princípio da legalidade? Há realmente “banco de horas” se está prevista a conversão em hora extra do tempo excedente da jornada legal? 

Vale a pena citar ainda a previsão de que o intervalo intrajornada poderá ser de apenas trinta minutos, se assim dispuser norma coletiva. O art. 71 da CLT, não sendo derrogado, continuará condicionando a redução do intervalo mínimo de uma hora à fiscalização do Ministério do Trabalho – hoje encimado pelo governo que apresentou o projeto de lei – a fim de o órgão fiscalizador verificar se a redução do intervalo dá-se em empresa que oferece refeitório e condições adequadas, sem cobrança de horas extras, ou seja, sem prejuízo da saúde física e psicológica do trabalhador; fora isso, teremos sindicatos débeis ou debilitados que ajustarão jornada extraordinária e exaustiva, com meia hora de intervalo, em troca de um fardo de potes energéticos, talvez de um vale-jazigo.

A propósito, o projeto de lei prevê a exigência de cláusula compensatória explícita sempre que flexibilizados direitos trabalhistas relacionados ao salário ou à jornada, inclusive quando envolverem a prorrogação de turnos ininterruptos de revezamento. Bons auspícios!

A medida está em consonância com copiosa jurisprudência que entende nula tal flexibilização quando evidenciado que não houve qualquer contrapartida em favor dos trabalhadores. A anulação da cláusula compensatória quando anulada a cláusula de flexibilização atende ao princípio da equidade e, a meu ver, a proposta, no que toca à relativização de direitos indisponíveis, poderia ter-se resumido a esse ponto.

É uma pena, enfim, que a Exposição de Motivos da proposta governamental faça remissão ao art. 7º, XXVI, da Constituição, este a consagrar o direito fundamental de trabalhadores a convenções e acordos coletivos de trabalho. As normas coletivas servem à melhoria da condição social do trabalhador urbano ou rural, conforme enuncia o art. 7º, caput, da Constituição.

Somente uma interpretação pedestre de tal preceito (art. 7º, XXVI, da CRFB) poderia conduzir à exegese de que haveria, por simetria, um direito fundamental de empresas reduzirem ou eliminarem direitos trabalhistas por meio de normas coletivas que estariam imunes à análise de sua validade, inclusive quanto à conformidade com os valores e princípios constitucionais. Embora pareça démodé, dá-se ao emissor da proposta a presunção de inocência.

 

*Augusto César Leite de Carvalho é ministro do Tribunal Superior do Trabalho e professor de Direito do Trabalho no Instituto de Educação Superior de Brasília, na pós-graduação da UnB e no Mestrado em Direito da Universidade Autônoma de Lisboa. Mestre em Direito Constitucional e Doutor em Direito das Relações Sociais)

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