Economia
A reconstrução incontornável
Uma crítica contundente ao modelo de rentismo para os ricos e fiscalismo para os pobres
O livro Ousadia e Transformação − Apostas para Incrementar as Capacidades do Estado e o Desenvolvimento no Brasil reúne textos e entrevistas que, publicados originalmente entre 2011 e 2022, compõem uma das agendas de pesquisa e assessoramento institucional mais importantes dos seus autores, em torno dos campos do planejamento estratégico, das finanças governamentais e da gestão pública no Brasil contemporâneo.
A Parte I trata de fundamentos e atributos de uma função de planejamento estratégico público revigorada e necessária aos desafios brasileiros no século XXI. Para tanto, reforça sua centralidade política e o requalifica como a função governamental mais importante para o enfrentamento das adversidades do presente, bem como para a reconstrução do futuro. Afinal, planejamento é a arte da boa política, é função intrínseca ao processo complexo e dinâmico de governar.
A Parte II do livro apresenta críticas e defende propostas para combater e superar o regime de dominância financeira e privatização das finanças públicas que veio se consolidando no Brasil, de modo geral, desde a Constituição Federal de 1988 (CF-1988), mas com maior ímpeto desde a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2000 e a Emenda Constitucional do teto de gastos (EC 95) de 2016, esta agora substituída pelo novo arcabouço fiscal.
Ousadia e Transformação − Apostas para Incrementar as Capacidades do Estado e o Desenvolvimento no Brasil. Organizadores: José Celso Cardoso Jr. e Leandro Freitas Couto. Editora Contracorrente e Fundação Perseu Abramo (520 págs., 120 reais)
Há aqui uma crítica contundente ao modelo que se vem cristalizando no Brasil, que prioriza o rentismo para os ricos e o fiscalismo para os pobres. Diz que é preciso superar essa armadilha imposta pela aliança entre uma certa tecnoburocracia incrustada na área econômica do governo e a ideologia liberal-autoritária do mercado. As alternativas passam por processos de desfinanceirização predatória da economia, ao mesmo tempo que de desprivatização das próprias finanças públicas.
A Parte III trata de aspectos cruciais às relações entre gestão pública, controle e implementação de políticas públicas. Fundamentalmente, trata-se de explicitar e enfrentar traços histórico-estruturais que estão na raiz dos recorrentes problemas de organização e funcionamento do Estado brasileiro. São eles: o burocratismo: você sabe com quem está falando?; o autoritarismo: aos amigos tudo, aos inimigos a lei; o corporativismo: farinha pouca, meu pirão primeiro; o fiscalismo: fiscalismo para os pobres, rentismo para os ricos; o privatismo: vícios privados, prejuízos públicos; o curtoprazismo: miopia e revolução passiva como métodos de (não) solução de problemas; o escapismo: a eterna fuga para a frente; o atavismo: leis, costumes, métodos e sistemas anacrônicos; a baixa transparência dos dados, informações, processos e decisões; e o exclusivismo: baixa diversidade e representatividade sociodemográfica e territorial da burocracia brasileira.
Somados, eles ajudam a fundamentar a crítica à superficialidade e insuficiência dos diagnósticos liberais acerca do Estado nacional, bem como a justificar propostas e alternativas de enfrentamento dos problemas de fato relevantes.
Assim, como aproximação ao complexo e multifacetado tema do desempenho institucional agregado do setor público federal brasileiro, o livro apresenta uma visão de conjunto dos quatro últimos governos (Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro) para mostrar que houve um processo de perda de densidade, entre os governos Lula e Dilma (2003 a 2015), e de verdadeiro desmonte, na passagem dos governos Lula para Temer e Bolsonaro (2016 a 2022), no que diz respeito à tríade República, Democracia e Desenvolvimento.
É preciso fortalecer o planejamento, as finanças públicas e a gestão democrática
Ao fim desse tenebroso período, constata-se, como consequência direta da tentativa de destruição dos aparatos e institucionalidades de Estado, imensa fragilização político institucional e um quase colapso das condições econômicas e sociais de vida para imensos contingentes populacionais e regiões do País. Diante desse quadro de terra arrasada é que desafios imensos se colocam para o terceiro mandato presidencial de Lula (2023/2026). Para enfrentá-los, praticamente tudo, em âmbito estatal, precisará passar por processos profundos de recriação ou reconstrução, inovação e experimentalismo institucional.
Para tanto, a partir dos pilares estruturantes da ação governamental retratados neste livro, oportunidades concretas para a transformação progressiva e progressista do Estado estão dadas. É preciso fortalecer e mobilizar as capacidades governativas do Estado nacional, dentre as quais as do planejamento governamental, das finanças públicas e da gestão pública democrática, de modo que elas ajudem o atual governo a governar, ou seja, a formular e implementar o plano de governo vencedor das eleições de 2022. Essas funções não são e não podem ser vistas como meras funções burocráticas. Muito ao contrário, elas são o cerne e o veio por meio de onde a transformação positiva da sociedade pode realizar-se.
Apenas se os resultados pretendidos com o plano de governo eleito democraticamente se efetivarem é que a política – como forma de organização e resolução dos conflitos – e a própria democracia – como forma de expressão da vontade popular – poderão voltar a se legitimar junto às pessoas que a praticam e que nela acreditam. Com isso, a democracia terá cumprido o seu papel político e o planejamento governamental o seu papel estratégico. •
*Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea.
**Analista de Planejamento e Orçamento.
Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.
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