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A receita da instabilidade

No afã de combater a inflação, o BC provoca abalos nos balanços dos bancos e restrição de crédito

A receita da instabilidade
A receita da instabilidade
Na era liberaloide, há quem proclame “o BC é nosso!” - Imagem: Elza Fiúza/ABR
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“Pode-se enganar a todos por
algum tempo; pode-se enganar
alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo”
Abraham Lincoln

“Nos bons tempos de ­trader, seja no pregão da Bolsa de Valores, seja na mesa de operações de derivativos e futuros, eu tinha de tomar a decisão de comprar ou vender ativos financeiros em segundos, pois minutos eram coisa rara. Ali vi com olhos que a terra há de comer altas e baixas, mercado de lado (nem sobe nem cai) e o chamado circuit break, parada técnica para a volta da ‘racionalidade do mercado’. Quem opera e fecha negócio está no front. Ali se materializam infinitas opiniões de alocação de dinheiro quase ­instantâneas, e elas mudam, por vezes em fração de segundos. Nunca ouvi um economista-chefe dizer compra ou vende! Não tardei a aprender a máxima: ‘para ser trader, nunca leia as notícias ou se deixe influenciar por ninguém. Sinta o mercado, o tal mercado de que tanto falam’.”

O depoimento acima é de Manfred ­Back, ex-trader na Bovespa, professor de Economia e Mercado de Capitais do Instituto Germinare e coautor deste artigo. A lógica por trás da operação é muito simples: na visão dos traders, se alguém está disposto a vender e outro disposto a comprar, o negócio está feito. Se todos pensassem da mesma forma, nada aconteceria.

Na célebre obra Treatise on Money (Tratado Sobre a Moeda), o economista John Maynard Keynes sublinhou a importância da “divisão de opiniões”, entre baixistas e altistas, para a manutenção da estabilidade nos mercados, na qual é avaliada a riqueza capitalista. Esses mercados estão, porém, sujeitos à assimetria de poder e de informação entre os agentes “formadores de opinião” e aqueles que não têm outra alternativa senão seguir a tendência dominante. Estão criadas, assim, as condições para a irrupção de processos miméticos, que inclinam as expectativas numa determinada direção, dando origem a “bolhas especulativas”, invariavelmente sucedidas por colapsos de preços, contágio de outros ativos e moedas e intensa “aversão ao risco”. As crises recentes revelam que há momentos em que todos querem comprar e ninguém quer vender (formação de bolhas) e outros em que todos querem vender e ninguém quer comprar (crash financeiro).

O veloz desenvolvimento de inovações financeiras nos últimos anos (técnicas de hedge através de derivativos, técnicas de alavancagem, modelos e algoritmos matemáticos para “gestão de riscos”), associado à intensa informatização do mercado, permitiu acelerar o volume de transações com prazos cada vez mais curtos. Essas características, combinadas com a alavancagem baseada em créditos bancários, explica o enorme potencial de realimentação dos processos altistas (formação de bolhas), assim como os riscos de colapso no caso dos movimentos baixistas.

O FMI tem alertado: o agressivo aperto do ciclo monetário para combater a inflação reduziu a liquidez do mercado

Isto significa que, quando a opinião dos mercados está dividida, não ocorrem alterações no “lado monetário” capazes de perturbar a trajetória atual da economia. Se, ao contrário, as opiniões se concentram numa só direção, a ação do Banco Central pode não ser eficaz para estabilizar a economia. Se há uma polarização de opiniões em torno de uma posição “altista”, no auge de um ciclo de crédito, a tentativa de contrair a liquidez, mediante uma elevação das taxas de juro pode causar danos nos mercados.

A taxa de juros – critério geral de avaliação da riqueza, na medida em que exprime as expectativas de variação dos preços dos distintos ativos financeiros – tem um papel muito relevante nas decisões das empresas e bancos. Essa taxa é o instrumento monetário-financeiro que avalia e “precifica” o futuro a partir das expectativas do presente. Sua dimensão temporal é inarredável. A questão não é só discutir se a Taxa Selic de 13,75% ao ano é alta ou baixa, mas a velocidade de seu aumento de 2% até chegar a 13,75%. No afã de combater a inflação decorrente de um choque de oferta, o Banco Central ignorou que está a provocar descasamentos nos balanços dos bancos e restrição de crédito, problemas que agora começam a aparecer.

O movimento da taxa de juros afeta simultaneamente o valor das dívidas emitidas ou em processo de emissão e o valor presente dos fluxos esperados de rendimentos dos ativos (instrumentais e financeiros), provocando alterações nas relações entre credores e devedores e aumentando ou reduzindo os riscos de pagamento. Vamos recorrer às observações do recente Relatório Sobre a Estabilidade Financeira Mundial, publicado pelo Fundo Monetário Internacional, o FMI: “Depois de mais de uma década de liquidez abundante e volatilidade comprimida, o movimento global em direção a um agressivo aperto do ciclo monetário para combater a inflação elevada – abrangendo vários anos – aumentou substancialmente a volatilidade do mercado, especialmente no espaço das taxas de juro, contribuindo para uma deterioração das condições de liquidez do mercado. A deterioração das condições de liquidez do mercado pode representar riscos para a estabilidade financeira. O recente estresse dramático no mercado de gilts (títulos do Tesouro) na Grã-Bretanha mostra como o preço se move repentinamente combinado com a venda forçada e a dinâmica de desalavancagem pode levar a condições desordenadas que podem ameaçar o funcionamento e a estabilidade mais amplos do mercado”.

Para encerrar, vamos comentar uma notícia da Folha de S.Paulo, publicada em 16 de fevereiro deste ano: “O Banco Central registrou resultado negativo de 298,5 bilhões de reais em 2022. Esse número, segundo o BC, reflete uma queda de 6,5% do dólar ante o real no ano e a subida dos juros americanos (quase 90% dos títulos em moeda estrangeira são prefixados). O prejuízo do BC em operações com reservas e derivativos cambiais foi de 326,5 bilhões em 2022. Já as demais operações somaram 28 bilhões. Do total, 179,1 bilhões de reais serão cobertos por meio de reserva de resultado e 82,8 bilhões por redução do patrimônio da instituição. O Tesouro Nacional cobrirá o saldo remanescente de 36,6 bilhões”.

Diante da informação, não faltaram vozes para deplorar o “prejuízo” do Banco Central. O pensamento único e a ignorância devem ter mudado a Constituição Federal, não? O BC virou, agora, um banco comercial privado! A solução seria abrir o capital da instituição, mediante o maior IPO de todos os tempos? Vamos captar dinheiro dos brasileiros para salvar a autoridade monetária. Nos anos 1950, os brasileiros proclamavam “o petróleo é nosso”. Agora, na era liberaloide, há quem proclame “o BC é nosso”! •


*Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e consultor editorial de CartaCapital. Manfred Back atuou como trader na Bolsa de Valores (Bovespa) e é professor de Economia e Mercado de Capitais do Instituto Germinare.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A receita da instabilidade “

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