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A reação do capital

Não é possível crescer sem gasto público, mas o mercado insiste na cantilena da austeridade fiscal

A mídia não presta atenção à maior taxa de juros do mundo, queixa-se Haddad - Imagem: Marcelo Camargo/ABR
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Nunca antes no ­Brasil, a não ser nos mandatos anteriores de Lula, o dito mercado ficou tão inquieto e a mídia mostrou tanta subserviência aos interesses das instituições financeiras como aconteceu nos dias seguintes à posse do novo presidente. O alarde dos meios de comunicação em torno das preocupações de executivos e acionistas de bancos e corretoras deixou claro que, ao menos do ponto de vista desses setores, nada é mais importante para a vida e o bem-estar da sociedade do que seguir as prioridades que eles elegeram. A ordem é, ao que parece, deixar barato o terrorismo social e político da gestão precedente e incorporar como fato da vida o terrorismo econômico dos defensores da austeridade eterna.

A forte queda da Bolsa e a alta do dólar na primeira segunda-feira após a posse foi atribuída à informação de que a renúncia fiscal eleitoreira do ICMS, operada pelo governo anterior, que permitiu a redução dos preços dos combustíveis nos últimos meses, seria prorrogada por ao menos dois meses, ao contrário do que pretendia o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Os investidores receiam, com razão, uma redução dos lucros da Petrobras e consequente diminuição dos dividendos que irão receber, em decorrência da prorrogação da renúncia fiscal, isto é, da manutenção dos preços baixos dos derivados. Há, no entanto, outros aspectos a considerar.

Ao insistir na reversão imediata da desoneração, com alta instantânea dos preços dos derivados, e criticar a mudança de posição de Brasília sobre o assunto, o mercado e a mídia dão as costas ao processo decisório rotineiro em um governo democrático. A verdade é que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, está certo ao ­pleitear o fim da renúncia fiscal, para recuperar recursos fundamentais às políticas públicas, mas Lula também tem razão ao adiar essa reversão, devido ao forte ­impacto do preço dos derivados de petróleo em todo o sistema de preços e no poder aquisitivo da população, posição que prevaleceu.

A choradeira dos investidores e seus agentes, a venda em massa de ações da Petrobras, a recriminação da decisão final do governo e a sua total acolhida pela mídia mostram tanto o domínio do interesse do acionista privado no interior da empresa pública quanto o acerto do presidente Lula de retirar do programa de privatização a petroleira, assim como os Correios, a EBC, o Dataprev, a Nuclep, o Serpro e a Conab. Acrescente-se que, ao determinar o fim de várias privatizações em preparação, Lula suprime um negócio atraente para as instituições financeiras, de intermediação da venda de empresas estatais e participações acionárias, e esta é parte da explicação para a reação negativa do mercado ao governo.

A estupidez do teto de gastos teve como maior prejudicado o SUS, diz Lula

A PEC da Transição, obra de engenharia política imposta pela irresponsabilidade do governo anterior, que não previu recursos no Orçamento para pagar o Auxílio Brasil, foi apelidada por meios de comunicação, como a Folha de S.Paulo, de “PEC da Gastança”. Se não for corte, é gastança, parecem decretar o mercado e a mídia. Não explicam, porém, como seria possível retomar o crescimento sem elevar o gasto público, nem comentam o fracasso da tentativa ultraliberal de impulsionar a economia apenas com investimento privado.

Em seu discurso de posse no Senado, Lula mencionou a “estupidez do teto de gastos”, que teve como “talvez o maior prejudicado o SUS, uma das mais democráticas instituições criadas pela Constituição de 1988”. Nas declarações de agentes do mercado aos jornais ficou evidente, no entanto, o medo provocado pela derrubada definitiva da regra autoritária. Como disse um executivo de corretora ao Valor, “coloca dúvidas sobre a manutenção de uma política fiscal controlada”. Essa “política fiscal controlada”, cabe frisar, jamais existiu, pois o teto não foi respeitado em orçamento algum desde a sua instituição, apesar de a regra estar inscrita na Constituição.

A obsessão em relação à política de austeridade radical desconsidera a expressiva geração de superávits primários nos governos Lula, com uma média ­anual de 3,4% do PIB. Comprovadamente ineficaz e indevidamente constitucional, o teto de gastos era a única regra fiscal do mundo com aquele status. Uma anomalia que funcionou como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos governos durante os sete anos em que vigorou e, não fosse a sua derrubada por Lula, continuaria por mais 13 anos.

É importante destacar que, para o mercado, tanto a PEC dos Precatórios, que inverteu as expectativas positivas quanto a uma redução da relação dívida/PIB, quanto a PEC Kamikaze, outro nome da bilionária compra de votos, ambas do governo Bolsonaro, e a PEC da Transição, do ­atual governo, de urgência urgentíssima para aplacar a fome, tratar doenças e resolver outras necessidades de dezenas de milhões de pessoas, têm exatamente a mesma importância por aumentarem gastos, apesar de tratarem de desembolsos com finalidades completamente diferentes. O problema não está, contudo, em uma propalada insensibilidade do mercado diante da urgência do gasto social, mas na sua regulação insuficiente e na submissão da mídia aos interesses das instituições financeiras.

O problema não são os interesses do mercado, e sim a subserviência dos meios de comunicação – Imagem: Nelson Almeida/AFP

Nervoso diante do fim do teto, da suspensão das privatizações, de um suposto risco de revisão da reforma da Previdência, de mudanças no marco regulatório do saneamento, do cancelamento de isenções tributárias, o mercado e a mídia dão de barato, no entanto, a alta radical dos juros no Brasil, provocada pela “farra eleitoral” de 300 bilhões de ­reais promovida pela administração anterior, lembra Haddad. Os juros aumentaram de 2% para 13,75% e o País, apesar de ter uma inflação menor que a dos EUA e dos países europeus, tem hoje a maior taxa de juros real do mundo.

A elaboração de um novo arcabouço fiscal, conforme definido na PEC de Transição e prometido por Haddad para este semestre, é fundamental para encerrar o “eterno debate” sobre a questão da política fiscal, chama atenção o economista Fábio Terra, professor da Universidade Federal do ABC e do Programa de Pós-graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia. “PEC da Gastança sugere farra com dinheiro público, uso de recursos públicos sem limites e propósitos. É uma péssima designação. Foge aos olhos de quem utiliza essa expressão, que as despesas a mais autorizadas pela PEC da Transição têm limite, não implicam gasto público sobre o PIB maior e têm finalidades específicas criteriosamente delimitadas, sobretudo uma política social que busca melhorar as condições de vida da população mais pobre, abandonada nos últimos quatro anos”, destaca o economista.

Os adeptos da expressão desconsideram que a PEC não implicará crescimento expressivo do endividamento público, que os gastos autorizados pelo Congresso se destinam aos mais pobres e a investimentos com alta capacidade de dinamizar a economia e, assim, melhorar a atividade econômica privada e o potencial arrecadatório público. “A gastança que se constata é a de palavras e análises rasteiras e míopes”, dispara Terra. O professor da ­UFABC sublinha o fato de que a política fiscal dos governos Lula concretizou uma “coordenação pragmática”, com uma atração do investimento privado que permitiu, inclusive, o enfrentamento anticíclico da crise ­subprime de 2008. Essa coordenação incluiu “uma boa conexão das políticas monetária, fiscal, cambial e de transferência de renda e dessas políticas com as necessidades e capacidades do setor privado”.

Os governos anteriores de Lula geraram superávits de 3,4% do PIB, em média, todos os anos

Apesar de os juros medidos pela taxa Selic permanecerem acima de dois dígitos entre 2003 e 2009, caindo para menos de 10% apenas quando o Brasil foi contaminado pela crise do subprime, o investimento agregado foi recorde no período. “A explicação é que a política fiscal construiu o Projeto Piloto de Investimentos até 2005, que mapeou necessidades e áreas estratégicas de investimento, e depois tornou-se o Programa de Aceleração do Crescimento, na passagem de 2006 para 2007. Com o PAC, o investimento público se harmonizou com o privado e isso fez com que o investimento sobre o PIB em 2008 e em 2010 fosse recorde desde os anos 1980, apesar dos juros altos”, ressalta. Em paralelo, o Bolsa-Família e a valorização do salário mínimo puxaram o consumo privado e estimularam a iniciativa privada.

Cabe ressaltar, neste momento de reclamações e temores empresariais, que a atual gestão detém a experiência dos governos anteriores de Lula. Segundo Terra, o presidente “coordenava muito bem as expectativas empresariais, nada era feito de forma voluntarista ou como surpresa, tudo era conversado, compreendido, comunicado, ou seja, coordenado. A coordenação era pragmática, não impunha ao setor privado o que ele deveria fazer, mas o trazia a participar, o que chamamos de crowding in no economês”.

Foi a melhor época de crescimento do País nos últimos 40 anos, destaca o professor da UFABC, e foi muito eficaz para combater os efeitos da crise do ­subprime. Os setores público e privado estavam numa mesma direção econômica, de mãos dadas. “Quando isso é bem feito, como nos governos Lula I e II, a economia deslancha. Em dezembro de 2008, o desemprego estava ao redor de 6%, foi a 9% em março de 2009, com o Brasil atingido pela crise, e encerrou 2009 em 6% novamente. Eis o que coordenação gera, sucesso econômico.”

Os defensores da austeridade parecem não se importar com a qualidade da merenda escolar – Imagem: GOVMT e Paulo H. Carvalho/Ag.Brasília

Terra sugere que o ­atual governo siga o que se fez na passagem de Lula I para II, com a lógica do PPI-PAC. Levará um bom tempo até o País se livrar de todos os efeitos perniciosos do atual arcabouço fiscal. “As três principais regras fiscais precisam ser revistas: a regra de ouro, a meta de resultado primário prevista na lei de responsabilidade fiscal e o teto de gastos”, sublinhou a economista Esther Dweck, professora da UFRJ, em debate na Unicamp na véspera da sua nomeação como ministra de Gestão e Inovação do governo Lula.

Neste ano, diz, mesmo com uma recuperação da economia e arrecadação tributária recorde, a regra do teto de gastos está impondo cortes. Não por acaso, no último relatório trimestral, entregue em novembro, o governo propôs mais um corte, muito associado a um crescimento das despesas obrigatórias, pelo represamento anterior das filas da Previdência, que foram sendo reduzidas mais recentemente e isso aumentou as despesas obrigatórias e exigiu um corte nas discricionárias. E a composição dos gastos federais acaba recaindo sempre sobre as duas principais despesas que não são totalmente obrigatórias, saúde e educação e investimentos, que já estavam em um patamar bastante reduzido.

O novo arcabouço fiscal, que o governo prevê concluir ainda no primeiro semestre, deve considerar os seguintes princípios, de acordo com Dweck: 1) É preciso substituir todo o conjunto de regras fiscais existentes; 2) Há necessidade de se levar em conta uma taxa de crescimento real positiva dos gastos, para evitar o efeito recessivo de uma norma como o teto de gastos; 3) Deve-se contemplar a possibilidade de existência de um piso, a ser observado mesmo em situações em que seja necessário algum tipo de redução de gastos. Esse piso deveria ser, no mínimo, o crescimento populacional, para evitar a queda do gasto per capita como ocorreu nos últimos anos; 4) Deve-se levar em conta o ciclo eleitoral; 5) É recomendável não prever a priori o tamanho do Estado, isso tem de ser feito pela política; 6) É indispensável que o governo tenha capacidade de atuar em momentos de crise; 7) Requer-se muita transparência quanto a indicadores e metas fiscais, mas não com periodicidade bimestral e sim com base em um plano que permita garantir uma trajetória sustentada da dívida de médio e longo prazo; 8) É preciso evitar que o emaranhado de regras seja utilizado para criminalizar a política fiscal e repensar o arcabouço fiscal para se aproximar de uma meta de inflação. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A reação do capital”

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