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A política do trator

Sorrateira e difícil de perceber no presente, mas brutal nos efeitos futuros, a desmontagem institucional da economia que trouxe o Brasil ao crescimento, provocada por uma visão liberal radical e inadequada às necessidades do País, multiplicará dificuldades para a retomada em um eventual governo de […]

A política do trator
A política do trator
Quem ganha? Na Argentina, assim como no Brasil, as pressões pela dolarização da economia tiveram mais a ver com os interesses da elite do que com as necessidades da economia. Assim, ela podia provocar abruptas desvalorizações da moeda e concentrar renda
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Sorrateira e difícil de perceber no presente, mas brutal nos efeitos futuros, a desmontagem institucional da economia que trouxe o Brasil ao crescimento, provocada por uma visão liberal radical e inadequada às necessidades do País, multiplicará dificuldades para a retomada em um eventual governo de oposição, preveem especialistas. O marco legal do câmbio, aprovado pelo Senado na quarta-feira 8, e a proposta de criação, no Ministério da Economia, de uma nova secretaria, para unificar a Secretaria de Política Econômica, o Ipea, o IBGE e áreas de pesquisa do antigo Ministério do Comércio Exterior, são apenas dois entre inúmeros exemplos do processo de desconstrução da infraestrutura da economia por meio de novos marcos legais, regulamentações e medidas administrativas.

O marco legal do câmbio aumenta a vulnerabilidade externa e ameaça provocar a argentinização da economia, a partir da perda completa do controle da taxa de câmbio e da expectativa de valorização sem freio do real diante do dólar. Quanto à pretendida absorção do IBGE e do Ipea para criação de uma supersecretaria no Ministério da Economia, teria conse­quências tão graves que 28 senadores de 13 partidos apresentaram uma ­Proposta de Emenda Constitucional, a ­PEC 27/2021, “para construir uma proteção legal mais robusta e considerar como instituições permanentes de Estado” o IBGE, o Inep e o Ipea, no mesmo modelo das agências reguladoras e do Banco Central.

Segundo a senadora Leila Barros, autora da proposta, “a PEC 27/2021 cria um escudo de proteção para as entidades responsáveis pela produção das estatísticas e pelas avaliações da educação e das políticas públicas nacionais, define normas e ritos para a escolha de seus dirigentes e, desse modo, impede que o governo caia na tentação de maquiar dados, inclusive para esconder a sua própria incompetência gerencial”.

O marco legal do câmbio “é uma etapa avançada do processo de dolarização que tem a ver com a abertura financeira. Estamos caminhando rápido para a dolarização e o abandono da moeda nacional”, alerta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial e colunista de CartaCapital. Na verdade, acrescenta, isso será um processo inexorável, pois estão permitindo que estrangeiros tomem crédito em reais, fazendo especulação com as moedas. “Só falta criar aqui um paraíso fiscal, não vai demorar muito. A fuga da moeda brasileira vai se dar internamente, eles estão concretizando isso”, afirma. O novo dispositivo legal “tem a ver com uma coisa muito importante, que é a soberania monetária, que afeta a soberania em geral e a capacidade dos países de executarem as suas políticas nacionais. O País vai ficar entregue. Ou será que o Banco Central brasileiro emite dólares? Será que eles não aprenderam nada?”

O marco cambial trouxe para dentro a especulação com as moedas e agora só falta criar aqui um paraíso fiscal

Na Argentina, assim como no Brasil, as pressões pela dolarização tiveram mais a ver com os interesses da elite do que com as necessidades da economia. “Esses setores têm a experiência de provocar desvalorizações abruptas para realizar transferências de renda e disciplinar a maioria da sociedade, principalmente por meio do aumento dos preços dos bens-salários, diminuindo o salário real”, destaca o economista Pablo Ferrari, da Universidade Nacional de Avellaneda, na Argentina.

A tentativa de criar uma supersecretaria no Ministério da Economia reprisa, em menor escala, o ato inicial do atual governo na área econômica, com a unificação dos ministérios da Fazenda, do Planejamento, da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e da maior parte da pasta do Trabalho, sob o comando do “superministro” Paulo Guedes. “Claramente, essa medida mostrava a falta de noção desse pessoal em relação à complexidade da gestão econômica. Desde então, todas essas áreas que ficaram sob o guarda-chuva do Ministério da Economia se tornaram disfuncionais, elas perderam a capacidade de operar”, destaca José Celso Cardoso Jr., presidente da Associação dos Funcionários do Ipea. Segundo ele, a tentativa de aglutinar o ­IBGE, o Ipea e outros órgãos à Secretaria de Política Econômica “é completamente estapafúrdia tanto diante da lógica quanto da teoria da administração pública e da gestão econômica”.

Trata-se de uma medida casuística, enfatiza Cardoso Jr., que visa criar uma espécie de superassessoria econômica para o Ministério da Economia no último ano de um governo frágil, com popularidade baixa e em período pré-eleitoral, quando ele precisa mostrar resultados. “Vemos como uma tentativa de manipular essas organizações, sobretudo o Ipea e o IBGE, tanto para evitar que elas produzam informações e análises críticas ao governo quanto para forçá-las a trabalhar para justificar a linha do atual governo”, ressalta o presidente da Afipea.

Outro exemplo de reformulação questionável é o marco legal das ferrovias, em vigor desde agosto por meio de Medida Provisória, que considera suficiente uma simples autorização para empresas operarem ferrovias. “A aprovação célere desse marco legal, pelo Senado, foi de uma enorme irresponsabilidade com o interesse comum. A decisão exime o Estado de exercer seu papel de formulador das políticas públicas”, dispara José Manoel Ferreira Gonçalves, engenheiro e presidente da Frente Nacional pela Volta das Ferrovias.

Fora dos trilhos. O atual marco das ferrovias escanteia de vez o transporte de passageiros. No governo Lula, o PAC remodelou bairros e cidades inteiras

Hoje, as ferrovias estão praticamente restritas à logística de grãos e minério de ferro. O transporte de itens essenciais, como produtos alimentícios e medicamentos, está fora. Essa situação pode piorar com o sistema de autorização, pois quem domina as ferrovias deve se perpetuar com a exploração do bem público por mais décadas a fio. “A lógica do lucro vai prevalecer. O transporte de passageiros, por sua vez, estará definitivamente condenado”, sublinha Gonçalves. O novo marco é uma tentativa de copiar o modelo dos EUA, de autorização com algumas regras de compartilhamento. São raros, entretanto, os casos de ferrovias que ficam de pé sem recursos públicos, chamam atenção técnicos do setor.

A PEC 187, a prever a extinção de fundos públicos vinculados às áreas social, de cultura e ciência e tecnologia, para abatimento da dívida pública, é mais uma das incontáveis propostas que dificultam cada vez mais o processo de gestão econômica. É o caso também da aprovação da independência do Banco Central. “Agora, Bolsonaro reclama porque o BC sobe a taxa de juros sem parar e isso vai encaminhar a economia de uma recessão para uma depressão, mas ele não tem o que fazer, nem ele nem o ministro da Economia. A independência total do Banco Central em relação à política, portanto à democracia, sempre foi uma encomenda do mercado. Por outro lado, a dependência do BC em relação ao sistema financeiro é completa”, chama atenção o presidente da Afipea.

No conjunto de propostas de emendas constitucionais que desde 2019 complicam a administração da economia e das políticas públicas, por reduzirem as capacidades do Estado, sobressai a PEC 188, que prevê a extinção do Plano ­Plurianual (PPA), o único instrumento de planejamento formal, em âmbito nacional, criado pela Constituição de 1988 e destinado a promover uma organização da ação estatal e uma racionalização da alocação orçamentária, mas que nunca serviu como um guia duradouro de planejamento governamental. Essa PEC, que de quebra reduz os salários dos servidores em 25%, coloca no lugar do PPA apenas a gestão cotidiana do orçamento, numa lógica de balcão de negócios, sem nenhuma concepção de alocação de eficiência, eficácia e efetividade.

Segundo Leandro Couto, pesquisador do Ipea e especialista em planejamento e orçamento, a gestão de projetos prioritários foi feita pelo PPA no governo FHC e passou para o Programa de Aceleração do Crescimento no governo Lula. No âmbito do PPA, apostou-se, entre 2004 e 2007, em outras funções, a exemplo da participação social e da gestão territorial. “Havia um projeto, na lei do PPA, de celebrar os chamados pactos de concertamento, tentativa de gestão compartilhada interfederativa, na qual governo federal, estados e municípios, em torno de um território prioritário, elegiam destinações com a ideia de que isso também influenciasse o orçamento”, destaca Couto. O fórum interconselhos, acrescente-se, é uma iniciativa de gestão participativa que foi premiada na ONU como uma experiência exitosa em gestão pública.

Proteger os órgãos responsáveis pelas estatísticas e pela avaliação de políticas públicas evita a maquiagem de dados

“No período recente, o PPA ficou sem função. O planejamento foi fragilizado, o Ministério do Planejamento e a Secretaria de Planejamento foram extintos e o governo quis acabar com o Plano ­Plurianual por meio da PEC 188”, sublinha Couto. Em lugar da orientação do orçamento pelo planejamento, há um fortalecimento do Legislativo no manejo de verbas via emendas impositivas, que estão aí desde 2014 e culminaram nas emendas de relator.

O desmonte operado pelo governo parece não ter fim. “De 14 de janeiro de 2019 até agora, o Inep está no quinto presidente. Os próprios servidores do órgão reclamam dessas sucessivas trocas de comando e das nomeações ideológicas. Dezenas de diretores do instituto pediram demissão. Além da falta de continuidade administrativa, o órgão sofre também pressão para modificar as provas do Enem”, ressalta a senadora Leila Barros. O IBGE, diz, foi alvo diversas vezes de ataques do atual governo, após divulgar dados atestando o crescimento do desemprego. Além disso, o órgão não teve condições de realizar o Censo, previsto para o ano passado, em virtude de falta de recursos orçamentários. Já no Ipea servidores denunciaram tentativa de intimidação e censura no seu trabalho.

“A possibilidade de os governos eleitos orientarem os orçamentos em sintonia com as escolhas da sociedade ganha centralidade na vivacidade democrática em tempos de perda de representatividade política”, sublinham Couto e Cardoso Jr., em estudo sobre a função dos planos plurianuais no direcionamento dos orçamentos anuais. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1188 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: ISTOCKPHOTO – PAC/MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E JORGE CARDOSO/ANTT/MINFRA

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