Economia
A política da crueldade
A ideologia fascista não aflora imediatamente nas elites, ela desliza via positivismo e racionalismo
Para ilustrar a complexidade da quadra histórica que atravessamos, consideramos pertinente a visita ao último artigo de Paul Krugman, intitulado “The Big Smirk”, ou O Grande Sorriso.
Krugman cuida de investigar a dinâmica política do trumpismo, que mora no coração do movimento Make America Great Again e tem replicado exemplares ao redor do mundo. As figuras de Javier Milei, Jair Bolsonaro, suas proles e aspirantes à replica não nos deixam mentir.
A suntuosa festividade de Halloween promovida por Donald Trump, inspirada em O Grande Gatsby, exibiu como símbolo cuidadosamente escolhido uma modelo seminua dentro de uma gigantesca taça de martini. No mesmo dia, relata Krugman:
“…42 milhões de americanos perderam o auxílio alimentar federal, enquanto 1,4 milhão de funcionários federais estão sem receber salário”.
Para muitos comentaristas, o evento expressou a alma de playboy de Manhattan que sobrevive no presidente norte-americano. A imagem entrega, à primeira vista, a ideia de insensibilidade em relação à condição de milhões de americanos em situação precária e falimentar. Nada novo no cotidiano de um ricaço de Nova York, ou de um bem-nascido dos Jardins paulistanos.
A insensibilidade e o desprezo são marcas de nascença das elites econômicas e políticas, ou costumes adquiridos pelos novos-ricos, coaches, influencers e outsiders cuja ascensão social meteórica garante o bilhete para o grupo de super-homens que escapou das inseguranças econômicas, do punitivismo judicial e do contato com a grande massa de fracassados na grande corrida capitalista.
Nada novo aos olhos dos que acreditam na infalível mão invisível do mercado e na capacidade quase darwiniana da razão e do autointeresse de selecionarem ganhadores e perdedores, super-homens e invisíveis, insensíveis e invejosos.
Nada novo não fosse a catalisação do mal-estar social como ferramenta política. Krugman descreve essa catalisação, no caso de Trump e de seus apoiadores, como prazer pelo ato da crueldade, prazer em esmagar os considerados inferiores:
“(A) única crença fundamental (de Trump) é que os Estados Unidos são um direito inato de homens brancos, heterossexuais e cristãos, e seu único prazer genuíno reside na crueldade. É essa crueldade, e o deleite que ela lhes proporciona, que une seus apoiadores mais fervorosos, num desprezo compartilhado por aqueles que odeiam e temem: imigrantes, eleitores negros, feministas e homens brancos traidores que simpatizam com qualquer um que ouse roubar seu direito inato. A capacidade do presidente de executar essa crueldade por meio de palavras e ações os deixa eufóricos. Faz com que se sintam bem, orgulhosos, felizes e unidos”.
No livro The Mass Psychology of Fascism, Wilhelm Reich assegura que a mentalidade fascista é a mentalidade do “homenzinho”: escravizado, que anseia por autoridade e, ao mesmo tempo, é rebelde. Não é coincidência que todos os ditadores fascistas tenham surgido no meio reacionário do homenzinho.
Reich demonstrou que a violência e a crueldade contra a “ralé” são o último estágio da lógica de governo fascista. Seu núcleo está na fusão entre a captura do espaço e dos meios de ação públicos por interesses privados e o desejo dos “homenzinhos” em subjugar seus semelhantes.
Os super-homens eleitos para vingar os ressentidos promovem humilhação e eliminação de opositores
A ideologia fascista não aflora imediatamente nas elites, ela escorrega pelos caminhos do positivismo e do racionalismo econômico que promove a precarização das condições de vida e a concentração da riqueza, capturando o ressentimento moral de homens e mulheres que se sentem inferiorizados e impedidos de realizar suas competências naturais diante da corrida capitalista.
O magnata industrial e o senhor feudal exploram esse fenômeno social para seus propósitos, depois de terem evoluído em um quadro geral de supressão dos impulsos de vida. A civilização mecanicista e despótica colhe do homenzinho humilhado apenas o que semeou nas massas de seres humanos subjugados, ao longo dos séculos, lançando o desgraçado nos caminhos do misticismo, do militarismo e do automatismo.
Diria outro irreverente: “Eles não sabem, mas fazem”.
Para ilustrar os passos dos que caminham nas trevas da autoincompreensão, vamos recorrer ao apólogo do escritor americano David Foster Wallace: “Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz: Bom dia, meninos. Como está a água? Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta: Água? Que diabo é isso?”
Wallace explica: “O ponto central da história dos peixes ensina que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida… Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para ser captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras ‘virtudes’. Esta não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração-padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser”.
Essa camada de homenzinhos, como os peixinhos mergulhados em seu egocentrismo, não consegue reconhecer o ambiente social em que vive. Por isso, exerce seus desejos, medos e anseios em aras de agressividade contra os demais.
A política da crueldade contra os considerados inferiores pode ser encontrada nas festividades e palanques da ultradireita, nos arroubos ostentatórios dos velhos e novos-ricos. Ela avança pela covardia dos homens e mulheres que enxergam a fusão entre democracia e livre-mercado como fórmula da liberdade e da igualdade.
Diante dos genocídios, morticínios e tentativas de abolição violenta do Estado de Direito, os covardes pedem anistia e discursam em prol do aperfeiçoamento das instituições.
Enquanto isso, os super-homens eleitos para vingar o homenzinho de seus ressentimentos promovem subjugação, humilhação e eliminação indistinta de opositores e daqueles julgados socialmente inferiores. •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A política da crueldade’
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