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A passos de tartaruga

O Brasil acumula perdas bilionárias com o atraso na regulamentação do seu mercado de crédito de carbono

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Retardatário. Ao menos 36 nações aprovaram regulações próprias. Se tivéssemos feito a lição de casa até o ano passado, o mercado brasileiro poderia receber 120 bilhões de dólares até 2030. O descaso com a preservação ambiental também cobra seu preço em vidas – Imagem: iStockphoto e Fernando Frazão/ABR
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A morosidade da regulamentação do mercado de crédito de carbono é o mais novo problema na extensa relação de entraves socioambientais do País, assim como a ausência de crescimento econômico e de ocupação do solo em bases sustentáveis, pregada há décadas e jamais alcançada, em que pese a repetição, no País inteiro, de desastres climáticos, a exemplo da catástrofe que devastou a maior parte das cidades do Rio Grande do Sul.

O mercado de carbono é considerado, internacionalmente, a principal interface entre as políticas públicas voltadas para a redução da temperatura global e a atividade econômica da iniciativa privada. O fato de o Brasil ainda não ter um mecanismo de precificação começa a afetar as exportações, chamou atenção a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, na abertura do seminário organizado pelo STJ, com participação do governo federal e do BNDES, em um esforço conjunto para realização de um balanço e identificação dos passos imprescindíveis à formalização legal desse mercado e sua sintonia com as normas internacionais.

Esse mecanismo permite que empresas e países compensem as suas emissões de gases de efeito estufa, que aumentam a temperatura do planeta, a partir da aquisição de créditos gerados por projetos de redução de emissões ou de captura de carbono. Os créditos de carbono são obtidos por meio de projetos para a geração de energia renovável, melhorias na eficiência energética, reflorestamento e captura de metano em aterros sanitários, entre outras iniciativas. O objetivo é transferir o custo social das emissões para os próprios agentes emissores, pressionando-os a reduzir ou mesmo eliminar suas emissões, o que ajuda a conter o aquecimento global e as mudanças climáticas. Se uma empresa poluir menos que o limite estabelecido, ela pode vender essa diferença como crédito para outra que ultrapassou sua cota. Por convenção, uma tonelada de dióxido de carbono corresponde a um crédito de carbono.

O fato de o País ainda não ter um mecanismo de precificação começa a afetar as exportações

Trinta e seis países têm mercados de créditos de carbono regulamentados, enquanto o Brasil engatinha, com projetos em lenta tramitação na Câmara e no Senado. Um exemplo de mercado regulado de carbono no Brasil é o Renovabio, voltado para o setor de combustíveis de transporte e considerado bem-sucedido.

Um dos entraves do projeto em andamento na Câmara é a pequena porcentagem das emissões abarcadas pela regulamentação. O projeto abrange apenas 26% do total de emissões de carbono no País, segundo cálculos do BNDES, em consequência da fixação de um piso muito baixo, de apenas 25 mil toneladas de carbono, para ingressar no sistema brasileiro de emissões. Outro problema é que a regulamentação proposta abarca apenas o mercado regulado, e não inclui o mercado voluntário.

Desenvolver uma regulamentação brasileira para esse mercado é crucial, visto que 48% da capacidade mundial de captura de carbono está no País e a regulação disponível, na maior parte europeia, é inadequada para comercializar os créditos gerados no Brasil, por estar relacionada a uma realidade muito diferente da nossa. “Não podemos perder mais tempo, pois já estamos muito atrasados nisso”, dispara Alexandre Betinardi Strapasson, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB. “Várias oportunidades estão passando, investimentos vão para outros países, quando poderiam estar aqui”.

Chance. Os créditos gerados podem ajudar a financiar o processo de reindustrialização – Imagem: Audi Motors Group

Há quatro desafios no mercado de carbono que exigem regulação. Primeiro, o Brasil tem potencial de ser o principal fornecedor no mundo de crédito de carbono, sob a perspectiva de oferta de crédito. Tanto em quantidade quanto em qualidade, o País pode liderar, mas é preciso aliar a essa agenda uma demanda constante e isso passa por uma regulação que proporcione segurança jurídica. O segundo desafio é o da certificação. Há poucas certificadoras internacionais e que consideram em sua metodologia uma realidade distinta de emissão de crédito de carbono, porque boa parte dessas certificações foram estruturadas segundo as necessidades de paí­ses industrializados do Norte Global. É urgente criar certificadoras no mercado nacional, acreditadas internacionalmente, para atender a realidade doméstica com metodologia adequada. O terceiro desafio é como transformar esses créditos em ativos financeiros diferenciados e derivativos capazes de fomentar uma cadeia econômica de valor. Por fim, o quarto desafio é desenvolver um mercado de garantias, o que contém um enfrentamento do aspecto jurídico, baseado nos créditos de carbono.

O mercado de carbono tem potencial de gerar um grande volume de divisas. Se o Brasil já tivesse aprovado sua regulamentação no ano passado, poderia receber 120 bilhões de dólares até 2030, segundo estimativas da WayCarbon e da Câmara de Comércio Internacional. Há outros benefícios. “Se na perspectiva do sistema financeiro os créditos de carbono puderem ser oferecidos de forma flexível, ágil e segura como garantia para projetos econômicos, isso vai ajudar no financiamento da neoindustrialização”, ressalta Walter Baère de Araújo Filho, diretor jurídico do BNDES.

O Brasil destinou até agora 10 bilhões de reais do Fundo Clima e 250 milhões de reais do Fundo Amazônia para o enfrentamento das mudanças climáticas, mas a insuficiência desses recursos fica ainda mais evidente diante dos volumes de financiamento alocados para o mesmo fim, em moeda equivalente, para a Agenda Verde dos EUA, de 2 trilhões de reais, e para o European Green New ­Deal, da União Europeia, também de 2 trilhões de reais. O abismo entre os valores mostra, segundo Araújo Filho, a necessidade urgente de apartar do debate fiscal brasileiro os recursos necessários para a agenda de enfrentamento da emergência climática.

Com um piso muito baixo, a proposta debatida na Câmara abrange apenas 26% do total de emissões de carbono no País

O alerta faz sentido. Enquanto países avançados aportam enormes volumes de recursos para conter as mudanças climáticas, o que predomina no Brasil, tanto no debate econômico quanto nas decisões dos políticos, é o fundamentalismo fiscal. Ou seja, a ideia de que o mais importante é o governo obter, em qualquer situação, superávit fiscal, e que isso seja feito com a manutenção da maior taxa de juros real do planeta. “Não se fala em como reconstruir o Rio Grande do Sul, no investimento em estruturas resilientes sustentáveis para prevenir tragédias. Isso é investir na geração atual e na sobrevivência das gerações futuras”, frisa o diretor do BNDES.

Efeitos da não regulamentação do mercado de crédito de carbono irrompem no noticiário com frequência crescente. Na terça-feira 21, o Centro de Análise de Crimes Climáticos, organização sem fins lucrativos com sede na Holanda, denunciou uma operação que envolve dois grandes projetos de carbono na Amazônia brasileira, com créditos vendidos para Gol, Nestlé, Toshiba e PwC. Os procuradores suspeitam que os projetos podem ter sido usados para obtenção e lavagem de dinheiro proporcionado pela retirada ilegal de madeira de áreas protegidas, segundo denunciou a plataforma Sumaúma. No mesmo dia, a Folha de S.Paulo apontou que a Petrobras teria ocultado o contrato de compra de créditos de carbono gerados por projeto cuja área, na Amazônia, teve desmatamento crescente.

Um exemplo contundente do que o funcionamento pleno do mercado de carbono poderia atenuar, ao estimular a produção e a conservação de cobertura vegetal, é a ocupação irracional do solo. Francisco Milanez, diretor técnico e científico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, ressalta que muito se comenta sobre a situação do Rio Grande do Sul e a crise climática, mas não se fala “do que mais interessa”.

Modelo. O Renovabio, voltado para a descarbonização dos transportes, é um caso de sucesso no cenário nacional – Imagem: Lucas Ninno/GOVMT

Ele elenca seis pontos: 1) uma floresta chega a absorver 150 a 200 milímetros de água, o que refaz os córregos, as nascentes, o lençol freático e artesiano. Sua retirada acelera a velocidade do fluxo da água da chuva, porque não há mais mata para segurar; 2) no lugar da floresta, pratica-se agricultura primitiva, copiada da Europa inadequadamente, porque o clima aqui é outro, e compactam o solo. O solo fica mais impermeável, principalmente nas regiões basálticas, onde o terreno é argiloso; 3) a terra compactada perde a estrutura físico-química, criada pelos microrganismos, e fica como cerâmica. A água não penetra no solo, escorre rápido e provoca enchente, que é uma questão de velocidade da água que chega no rio. Se ela chegasse devagarinho, não dava enchente, porque haveria vazão, mesmo com vento Sul; 4) a mata ciliar, caso existisse, protegeria grande parte do solo que está sendo arrancado. Como ela não existe mais, o solo que é arrastado vai para o fundo do rio, faz o assoreamento; 5) o resultado é que com cada vez menos chuva, tem mais enchentes porque os rios estão mais rasos. Não há como dragar os rios de um estado, o que se draga é um trecho de um canal; 6) o que aconteceu no Rio Grande do Sul não é um problema do volume de chuvas de agora, que é menor do que o volume de água de 1941. A diferença é que os rios estão assoreados.

A destruição ambiental fez a água em menor volume extravasar mais. “É uma construção humana”, um fruto do desmatamento, ressalta Milanez. “Há soluções, mas não é o agricultor isolado no campo que irá encontrá-la. É o Estado que tem de ter uma visão para incentivar a mudança.” •

Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A passos de tartaruga’

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