Economia

A metamorfose da crise e a regulação dos derivativos

A crise mudou a economia nos últimos cinco anos, mas ainda não foi resolvida

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A falência do banco Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008 transformou a crise (até então) subprime numa crise financeira global.  Decorridos cinco anos desse “dia D”, essa crise ainda não foi superada na perspectiva aqui defendida. Na realidade, nesse quinquênio, ela passou por uma metamorfose, que englobou diferentes fases. A primeira e mais aguda estendeu-se desta falência ao final de 2008 e se caracterizou pela virtual paralisia do sistema financeiro internacional, que contagiou praticamente todos os países avançados e emergentes. No caso desses últimos, um dos principais canais de transmissão foi a retração dos fluxos de capitais e as abruptas depreciações cambiais. Todavia, essa fase foi efêmera. Já no segundo trimestre de 2009, emergiu a segunda fase da crise caracterizada pela recuperação dos preços dos ativos e expectativas de retomada econômica, em função das políticas fiscais e monetárias anticíclicas adotadas na fase precedente. Nesse contexto, os fluxos de capitais começaram a fluir novamente para as economias emergentes em busca de ganhos especulativos num contexto de taxas de juros historicamente baixas, expansão da liquidez nos países centrais e redução da aversão aos riscos em âmbito global.

Assim, a própria metamorfose da crise deu origem, num curto período de tempo, ao quarto boom de fluxos de capitais e de apetite por riscos desde o colapso do regime de Bretton Woods. Como nos ciclos precedentes, os principais determinantes do retorno dos capitais estrangeiros para as economias emergentes foram os chamados push factors (fatores externos), sobretudo as condições monetárias frouxas nos países centrais e, em especial, no país emissor da divisa-chave, os Estados Unidos. Ademais, a dimensão inédita das ações anticíclicas (monetária e fiscal) conseguiu evitar a depressão, contribuindo para a rápida redução da aversão global ao risco, outro condicionante fundamental da dinâmica desses capitais. Nesse contexto, as operações de currency carry trade e arbitragem de juros ressurgiram com toda força. Esse boom se sustentou (embora permeado por períodos de desaceleração) na terceira fase da crise, que teve início no primeiro trimestre de 2010, com a eclosão da crise da área do Euro e a desaceleração econômica nos países avançados (que resultou em expectativas crescente de um double dip). No segundo trimestre de 2013 parece ter emergido uma quarta fase, marcada pela saída da recessão da área do Euro e pela alta das taxas de juros dos títulos de longo prazo do tesouro americano em resposta à sinalização do presidente do Fed, Ben Bernanke, de que dará início à desaceleração da política de afrouxamento quantitativo ainda esse ano.

A perspectiva de normalização da política monetária americana resultou num movimento de liquidação de posições em ativos dos países emergentes, implicando fortes depreciações de suas moedas (alta das taxas de câmbio), em alguns casos superiores às registradas na primeira fase. Isto porque, como o sistema monetário e financeiro internacional é hierárquico e assimétrico, essas moedas (que não são aceitas internacionalmente seja como meio de troca, unidade de conta ou reserva de valor) são as primeiras a serem vendidas pelos investidores globais nos momentos de aumento da aversão ao risco.

A moeda brasileira, o Real, ocupou a primeira posição no ranking de depreciação até o final de agosto.  Essa liderança decorre, principalmente, de uma especificidade do mercado de câmbio brasileiro, qual seja, o papel fundamental do seu segmento de derivativos na dinâmica da taxa de câmbio nominal devido à sua maior liquidez e profundidade que o mercado à vista – características que estão associadas à natureza non-deliverable dos derivativos cambiais no Brasil e ao elevado grau de abertura financeira do país, que permite o livre acesso dos investidores estrangeiros a esse segmento desde janeiro de 2001. Essa especificidade potencializa a possibilidade de especulação contra o Real devido ao alto grau de alavancagem desses instrumentos. Investidores estrangeiros passaram de uma posição vendida líquida em dólar na BM&FBovespa de 63 mil contratos em 24 de maio para uma posição comprada de 232 mil contratos em 27 de julho, que equivalem a um valor nocional de US$ 11,6 bilhões (um pouco inferior ao recorde de apostas em prol da apreciação do real na fase 3 da crise, de US$ 12,7 bilhões em abril de 2011). Também vale mencionar que esse valor é quase três vezes superior ao déficit do movimento de câmbio no acumulado de junho e julho (US$ 4 bilhões).

Essa especificidade também ampliou os dilemas de política macroeconômica enfrentados pelo governo brasileiro ao longo das diversas fases da crise. Nas fases 2 e 3, para conseguir deter a trajetória de apreciação cambial (e a consequente perda de competitividade da indústria brasileira), além de recorrer a controles de capitais e instrumentos de regulação financeira prudencial (o recolhimento compulsório sobre posições vendidas no mercado de câmbio à vista) que afetam o ingresso de recursos externos, as autoridades econômicas tiveram que adotar um terceiro instrumento de regulação financeira, visando os derivativos cambiais (o IOF de 1% sobre as posições vendidas superiores a US$ 10 mil no mercado de derivativos cambiais, que vigorou entre o final de julho de 2011 e o início de junho de 2013). Esse instrumento foi necessário para desestimular o principal determinante da apreciação cambial naquelas fases, as operações de derivative carry trade, que consistem em posições vendidas em dólar (a moeda com taxa de juros mais baixa) e comprada em real (a moeda com taxa de juros mais alta) no mercado de derivativos carregadas por investidores estrangeiros, investidores institucionais nacionais e bancos residentes (os três principais grupos de agentes que atuam nesse mercado). Assim, nesse caso, controles de capitais (que, como o próprio nome diz, incidem sobre fluxos de capitais estrangeiros que cursam pelo mercado de câmbio à vista e são registrados na conta financeira) não são eficazes. Ou seja, diante do elevadíssimo patamar da taxa de juros básica brasileira até aquele momento, o Brasil foi destino privilegiado não somente do boom de fluxos de capitais, mas também (e principalmente) do movimento de “search for yield” mediante o derivative carry trade.

A regulação dos derivativos cambiais foi eficaz, mas, em contrapartida foi vítima da mesma miopia que contamina os investidores nas fases de euforia, ou seja, a crença de que os movimentos de valorização (dos ativos e moedas) nunca se reverterão. Com isso, o CMN determinou que o IOF (que poderia chegar a 25%) penalizaria somente a especulação excessiva a favor da apreciação do real, deixando isentas as apostas excessivas na depreciação do real (posições compradas em dólar na BM&FBovespa). Se essa regulação tivesse sido simétrica, punindo os excessos dos dois lados, a depreciação do real na fase 4 da crise não teria sido tão expressiva. O IOF “market unfriendly” sobre as posições vendidas não chegou a provocar reações extremas naquele momento de euforia. Já no contexto atual, uma taxação sobre posições compradas provavelmente exacerbaria as expectativas negativas num contexto de deterioração da credibilidade da política econômica. Assim, o governo optou pela intervenção cambial mediante operações de swaps cambiais. Ironicamente, a especificidade do mercado de câmbio brasileiro (com destaque para a natureza non-deliverable dos derivativos cambiais) aumenta o raio de manobra da política cambial, que não precisou, até o momento, recorrer à venda efetiva de reservas cambiais para conter o movimento de depreciação. Todavia, vale lembrar que os swaps, embora “friendly”, oneram as contas públicas, enquanto o “unfriendly” IOF sobre as posições compradas excessivas teria um efeito positivo sobre a situação fiscal – atendendo a principal demanda atual do “mercado”.

A regulação dos fluxos de capitais (e, no caso do Brasil, dos derivativos cambiais), são instrumentos que ampliam o grau de liberdade das políticas cambial e monetária nas economias emergentes nas duas fases do ciclo (de apetite por e aversão aos riscos). Contudo, o timing da adoção de medidas regulatórias também é relevante.

*Profas. do IE-Unicamp e Associadas da Associação Keynesiana Brasileira

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