Economia
A mentalidade da crise
Em Davos, os senhores do planeta mergulham na melancolia


A guerra na Ucrânia. Uma economia em rápida desaceleração, fragmentação e desglobalização. O aumento do custo de vida. A mudança climática. Há muito para os grandes e bons globais começarem a discutir nesta segunda quinzena de janeiro, quando Davos recomeça após um hiato de três anos.
Estritamente falando, não é o primeiro encontro de líderes mundiais, empresários, acadêmicos e sociedade civil desde o início da pandemia, mas o evento do Fórum Econômico Mundial em maio passado foi reduzido e não muito concorrido. Como teste foi bom, mas um verdadeiro Davos acontece tradicionalmente em janeiro, quando há neve espessa no solo do vilarejo suíço a 1,5 mil metros de altitude nos Alpes. No passado, o clima no convescote oscilou entre o otimismo extremo e a melancolia desenfreada, a depender do estado da economia mundial. Neste ano, parece certo que será a segunda opção. Como disse Klaus Schwab, fundador e presidente-executivo do fórum, “crises econômicas, ambientais, sociais e geopolíticas estão convergindo e se confundindo”. O objetivo de Davos neste ano, acrescentou, é livrar-se da “mentalidade de crise”.
Isso será mais fácil dizer do que fazer. Antes de existir uma “mentalidade de crise”, havia uma “mentalidade de Davos”, na qual os encontros anuais promoviam uma forma inclusiva de globalização, e participantes de todo o mundo trabalhavam em colaboração para enfrentar problemas transfronteiriços, como as mudanças climáticas.
À medida que os riscos para a paz, a prosperidade e o futuro do planeta aumentaram, a vontade de cooperar – o espírito de Davos, como Schwab gosta de dizer – diminuiu. O relatório de riscos globais desta edição do fórum, uma publicação anual que detalha o que os especialistas consideram os riscos mais urgentes no curto e no longo prazo, foi contundente em seu alerta. “É necessária uma ação coletiva concertada antes que os riscos cheguem a um ponto crítico”, descreve o documento. “A menos que o mundo comece a cooperar de forma mais eficaz na mitigação climática e na adaptação climática, nos próximos dez anos isso levará ao aquecimento global contínuo e ao colapso ecológico.”
A percepção popular é de que o fórum econômico é uma organização secreta e sinistra semelhante a algo saído de um romance de James Bond. Na realidade, não tem poder executivo algum e é mais uma gigantesca sala de conversa global, na qual os líderes mundiais aproveitam a oportunidade para estar juntos e os executivos fazem negócios a portas fechadas. Bond sobrevoa Davos a caminho do covil de Blofeld no topo da montanha em 007 – A Serviço Secreto de Sua Majestade, mas isso é o mais próximo de um romance de Ian Fleming que o evento chega.
A urgência climática, a recessão e a guerra na Ucrânia assombram a reunião nos Alpes Suíçoso
Em vez disso, as IGWELs – reuniões informais de líderes econômicos mundiais, com a presença de primeiros-ministros, presidentes, autoridades de Bancos Centrais e altos executivos – são projetadas para ver se há uma maneira de encontrar soluções globais para problemas globais. Em certo sentido, Davos prepara o cenário para cúpulas no fim do ano, onde são tomadas decisões reais.
Alguns líderes mundiais – Donald Trump, por exemplo – usaram Davos para se gabar de como as coisas iam maravilhosamente bem em casa. Outros vão à Suíça com a intenção de mobilizar apoio para uma causa global, o que, no caso de Tony Blair em 2005, significou falar sobre a necessidade de alívio da dívida e mais ajuda para países em desenvolvimento em dificuldades.
O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, não terá seguido os passos de Blair na segunda-feira 16, embora possa ter encontrado muitas almas gêmeas entre os empresários de tecnologia e os banqueiros de Wall Street que sempre frequentam Davos em grande número. É uma frustração para os organizadores do Fórum que o governo do Reino Unido não use Davos para esboçar sua agenda global, mas o primeiro-ministro e o chanceler Jeremy Hunt acham que não seria o melhor visual conviver com a elite global, enquanto a Grã-Bretanha é tomada por uma crise de custo de vida e greves. Em vez disso, os políticos britânicos de maior destaque em Davos serão o líder da oposição, Keir Starmer, e a chanceler paralela Rachel Reeves, que aproveitam a oportunidade para mostrar como o Partido Trabalhista se tornou favorável às empresas.
Muita coisa aconteceu desde Davos em 2020, que foi dominado por uma briga entre Trump e a ativista climática Greta Thunberg. As relações entre os Estados Unidos e a China estão piores do que há dois anos. A pandemia e suas consequências tornaram os países muito mais cautelosos quanto à exposição a longas e complexas cadeias de suprimentos. A era de ouro da globalização no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 é agora uma memória que se desvanece rapidamente.
Apesar de toda a conversa de Schwab sobre romper um círculo vicioso de formulação de políticas egoístas e de curto prazo, a turma de Davos tem de lidar com um mundo que tem se “desglobalizado” e se tornado cada vez mais frágil. De certa forma, um pouco de exame de consciência e humildade não seria ruim, porque, para aqueles que lutam para sobreviver, há poucas coisas mais nauseantes do que autointitulados senhores do universo retorcendo as mãos sobre a necessidade de abordar a desigualdade. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A mentalidade da crise”
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