Economia

A Huawei e a nova “guerra fria” entre EUA e China

A prisão da executiva da companhia chinesa transporta para o mundo da tecnologia a disputa pela hegemonia global

Sede da Huawei (Foto: Nicolas Asfouri/AFP)
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por Simon Tisdall

Culpem os britânicos, como sempre. Em 1807, no meio de uma luta com a França napoleônica, o navio da Marinha britânica HMS Leopard atacou, abordou e capturou a fragata americana USS Chesapeake, perto de Norfolk, na Virgínia (EUA). Os britânicos afirmaram que seu ato foi justificado pela presença no navio americano de quatro desertores ingleses, que eles prenderam. Mas para o presidente dos Estados Unidos na época, Thomas Jefferson, foi uma infração ilegal e revoltante à soberania e independência da República nascente, que eventualmente levou à guerra de 1812.

É justo dizer que os norte-americanos nunca esqueceram as lições tiradas da humilhação de Chesapeake – e seguiram fielmente o roteiro britânico desde então. Conforme seu poderio crescia, os Estados Unidos assumiram o direito de ampliar suas políticas além de suas praias.

Um exemplo moderno é o modo como o Departamento de Justiça processa impiedosamente os estrangeiros, como o hacker escocês Gary McKinnon, que teria burlado a lei norte-americana. A extradição de McKinnon foi finalmente bloqueada em 2012 pela então secretária do Interior britânica, Theresa May, depois de uma comoção pública.

A ameaça de Donald Trump de impor penas abrangentes a qualquer país ou indivíduo, em qualquer lugar do mundo, que ouse ignorar seu embargo unilateral às exportações de petróleo do Irã é outro exemplo de exagero de poder extraterritorial.

Como um antigo paxá do Oriente, Trump graciosamente se negou a emitir isenções a solicitantes que suplicam por socorro.

Mas o princípio geral é claro: em sua opinião, os EUA têm o direito de dirigir e controlar os atos de Estados soberanos usando ameaças, sanções e quase qualquer outro meio a seu alcance.

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Nem os estadunidenses de mentalidade liberal veem algum problema especial nos jogos de poder imperiais e presunçosos, pois quem, afirmam alguns, pode duvidar que os EUA, como guardião preeminente dos valores esclarecidos, age com as melhores intenções? Mas o poderio não é mais prevalente, ou confiável, como foi talvez 30 anos atrás. Muitos Estados contemporâneos, incluindo aliados, têm sérias dúvidas sobre os motivos e as intenções dos EUA.

O primeiro deles é a China, um rival, não um amigo, cuja reação furiosa à detenção no Canadá, por mandado judicial dos EUA, da principal executiva da Huawei, Meng Wanzhou, mostrou como as tentativas presunçosas de Washington de exercer jurisdição internacional se tornaram ultrapassadas, objetáveis e cada vez mais inexequíveis.

Meng é ostensivamente procurada por infringir as sanções ao Irã. Mas o contexto mais amplo é mais instrutivo que a suposta ofensa específica.

A Huawei é o maior fornecedor mundial de equipamento de redes de telecomunicações e o segundo maior de smartphones, com receitas de aproximadamente 92 bilhões de dólares no ano passado. Os chefes da espionagem ocidental acreditam que seu domínio do mercado e estreita associação com o regime comunista chinês representam um risco de segurança. EUA, Austrália, Nova Zelândia e Japão restringiram recentemente o uso de tecnologia da Huawei.

Na Grã-Bretanha, a companhia chinesa prometeu gastar 2 bilhões de dólares para reparar brechas na segurança que o Centro Nacional de Segurança Cibernética, filial da agência de espionagem GCHQ, teme que possa ser explorada para vigilância e coleta de informações.

Wanzhou no meio da guerra (Foto: AFP)

Leia também: Prisão de executiva ameaça trégua entre EUA e China

A promessa se seguiu a uma reunião supostamente mal-humorada no mês passado com autoridades britânicas. A Huawei insiste que nem Meng nem a empresa burlaram a lei ou representam qualquer tipo de risco de segurança.

A disputa vai intensificar as preocupações existentes sobre investimento chinês aprovado pelo Estado na próxima geração de usinas de energia nuclear na Grã-Bretanha.

Enquanto isso, em um discurso público, Alex Younger, chefe do MI6, disse que a Grã-Bretanha precisa decidir se está “confortável” usando tecnologia chinesa em infraestrutura nacional crítica. A British Telecom deu a resposta, confirmando que vai remover equipamento da Huawei de sua rede 4G.

Ainda em um âmbito maior, o pano de fundo de intensificar a rivalidade estratégica, geopolítica e econômica entre os EUA e a China está ligada à prisão de Meng, assim como a evidente desconsideração dos dois países pelo direito internacional.

O mandado dos EUA embaraçou o Canadá, em parte devido a suspeitas de que é um abuso do sistema de extradição, com motivação política. Embora a China não admita, sua ação ao deter dois cidadãos canadenses foi uma retaliação destinada a pressionar Ottawa a libertar Meng.

Não há dúvida de que Meng é uma vítima altamente simbólica dessa rivalidade global. Tipicamente desorientado, Trump entregou o jogo quando ligou explicitamente o possível cancelamento do processo contra a executiva chinesa à solução da guerra comercial EUA-China.

A intervenção canhestra de Trump, rapidamente desmentida por seu Departamento de Justiça, deixou os EUA em situação não melhor que a de Pequim.

Os dois lados parecem culpados do que significa, na verdade, uma tomada de reféns, algo que o mundo não espera de superpotências. Mas talvez não seja surpreendente. É um comportamento aprendido, por cortesia da Marinha Real britânica.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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